Será que entramos no tempo da sociedade planetária, ensaiada e não vivida como antes?
A questão nos coloca diante da complexidade, mas vamos tentar no mínimo um diálogo pela encruzilhada e os caminhos existentes para a materialidade de uma sociedade planetária.
Nos caminhos seguidos nos últimos 40 anos as sociedades adentraram pelo desenvolvimento cientifico e técnico para que a comunicação e interação pela transmissão fosse uma realidade vivida on-line. A vida em escala planetária sente em graus diferentes as novas formas e estruturas estabelecidas. Saímos da vida analógica e entramos de vez na Parabolicamará, uma imagem versada e proseada por Gilberto Gil, que observou:
Antes mundo era pequeno, porque Terra era grande, hoje mundo é muito grande, porque Terra é pequena, do tamanho da antena.
A nova realidade move as pessoas nos lugares pela materialização das formas e estruturas gestada e pensada por quem ali não está e tampouco viverá. O capital garante a liberdade de movimentar-se por fronteiras e sociedades com ações postas por imagens e sons. Vivemos a globalização em escalas diferentes. Então, caminhamos para uma sociedade planetária?
Não! O trajeto feito no período de globalização não nos leva, pois essa dependeria da elevação da cidadania. O professor Milton Santos[2] chamou atenção que precisávamos retomar o debate sobre humanismo. Na era economicista, a cidadania que vivemos é a do consumo.
O alerta do Milton Santos fundamenta a análise sobre o espetáculo midiático da vida dos povos, que marcham com as condições possíveis, derrubando as guaritas para existirem dentro das fronteiras segregacionistas ‘democráticas’ ocidentais.
As condições não justificam esperar o desenvolvimento onde vivem. Querem fazer parte do bem-estar, querem a divisão da riqueza ex/apropriada pelo colonialismo e neocolonialismo em suas terras.
Se não existe esperança lá, resta como um último suspiro buscar um lar e um futuro pelo mar ou pela terra. O importante é conseguir se apresentar do outro lado da fronteira.
A busca por um lar seguro é a possibilidade de encontro com humano. As vítimas dos processos históricos esperam acolhimento ao seu sofrimento. E é aí que se coloca a encruzilhada ao humanismo: que tipo de lar essas sociedades têm a oferecer aos que tiveram negado o direito à vida por séculos? A relação sempre foi de assistência à sobrevivência. No entanto, o desafio é posto: como criar espaço aos diferentes na terra estabelecida para iguais?
É nesse ponto que vem a reflexão sobre a sociedade e o Estado brasileiro como um lar, um lugar de acolhimento de povos diferentes, vítimas do mesmo processo histórico com qual passou na sua formação socioespacial.
Quando se pensa, fala e pratica no Brasil ações voltadas ao acolhimento das vítimas dos processos de negação da vida, fica por hora a sensação que estamos falando de um Estado estruturado no humanismo.
O tratamento dado pela sociedade e o Estado brasileiros (em sua divisão federativa) aos imigrantes e refugiados da América (Haiti, Bolívia, Peru, Cuba, Venezuela, Jamaica, Chile, Colômbia e etc.) e da África (Senegal, Congo, Gana, Guiné Bissau, Angola, Moçambicano, Nigéria, Quênia, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e etc.) não será diferente da ação desumana aplicada à população negra e aos povos indígenas, e qualquer representação – fora do que é pensado ao longo de séculos como civilidade brasileira.
O tratamento dado pela sociedade e o Estado brasileiros aos imigrantes e refugiados da América e da África não será diferente da ação desumana aplicada à população negra e aos povos indígenas.
Para aprofundamento da questão, trago ao diálogo o trabalho da geógrafa e pesquisadora Lia Osório Machado[3], que há 20 anos publicou o artigo Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930) [4].
Lia Osório contextualiza as ideias e percepções do pensamento geográfico e a estruturação das relações socioespacial no Brasil. Com abordagem temporal, apresenta caminhos percorridos em 60 anos entre a Lei do Ventre Livre no século XIX e a Revolução de 30 século passado. No espaço e tempo se materializam processos como: a oficialização da política de migração; a regulamentação do trabalho livre; a abolição da escravatura; e a instituição da República.
Os eventos se amparam na valorização de leis científicas que alicerçam na tábula rasa a unidade e identidade nacionais em padrões hegemônicos de civilidade. Ao longo do processo, os intelectuais brasileiros se deslocam da Europa aos Estados Unidos na busca de aprimorar conhecimentos e domínio das teorias que assegurassem o “progresso”. O que possibilita a oficialização da eugenia das raças como política de Estado, pois só pelo embranquecimento da população, se alcançará a civilização.
O rico e necessário artigo da professora Lia Osorio colabora com os diálogos teóricos e acadêmicos sobre as contribuições científicas na formação de sociedades como a brasileira. O serviço prestado favoreceu no posicionamento da Geografia no ambiente acadêmico. A ciência, em sua epistemologia, não foi diferente aos projetos nacionalistas para unidade nacional, modernização e inserção do “processo civilizatório”. Ressalvando, conforme a autora, que não foi a única ciência a esse serviço, pois, a economia, por exemplo, tem sido bem mais mobilizada para exercer esse papel no século 20, como foi a Historia durante o século 19.[5]
Na atualidade vivemos a midiatização de eventos pontuais, resultantes da presença de imigrantes e refugiados, que buscam no Brasil um lar como Nação capaz de prover a estes a humanidade.
O Mistério do Trabalho e Emprego (MTE), em 2015, através da Coordenação Geral de Imigração (CGIg) e a Coordenação Nacional de Imigração (CNIg), publicou o Relatório 2015 – Autorizações concedidas a estrangeiros no Brasil[6]. Um estudo analítico preliminar dos fluxos e fixos de estrangeiros em território nacional, que ajuda a compreender como a política racista se estruturou nas relações socioespaciais e perdura na condição de determinante no acesso as fronteiras.
Pelos dados da CGIg entre os anos de 2011-2014, foram autorizados no país o trabalho temporário e permanente de 245.843 estrangeiros, acentuando que:
Em 2014, os Estados Unidos seguem como o país, no qual seus nacionais mais solicitaram autorizações para trabalho no Brasil (5.841 autorizações temporárias e permanentes). Com relação aos países que mais solicitaram autorizações temporárias foram os nacionais dos Estados Unidos (5.742) e Filipinas (4.542). Rio de Janeiro e São Paulo compõem as Unidades da Federação para onde mais solicitações foram feitas (19.121 Rio de Janeiro, 2014 e 16.557 São Paulo, 2014)[7]
Quanto aos dados de trabalho permanente o relatório esclarece.
A Itália lidera o número de autorizações de trabalho permanente (444, em 2013 e 456, em 2014) seguida por Portugal (458, em 2013 e 319, em 2014) e Japão (372, em 2013 e 404, em 2014). Na soma dos dois anos, Portugal e Japão ficam praticamente empatados, respectivamente 777 e 776, sendo que na série histórica 2011-2014 Portugal fica à frente do Japão, 1557 e 1451. A Itália destaca-se na RN84 – estrangeiro investidor pessoa física em atividade produtiva no Brasil -, enquanto o Japão na RN62 – executivos integrantes de direção de empresas no Brasil, exceto concomitâncias. São Paulo é o principal destino dessas autorizações.[8]
Comparada as autorizações temporárias e permanentes, os cidadãos dos EUA, Europa (Ocidental) e Ásia (representada por suas transnacionais) são maioria no acesso ao país. As solicitações por cidadãos sulamericano são baixas, devido parte significava dos Estados integrarem o MERCOSUL, os cidadãos são amparados pelo Decreto nº 28/02 – Promulgado pelo Decreto nº 6975 de 07/10/2009, que garante livre permanência e trabalho na região, contudo.
A Venezuela foi o país que mais solicitou autorizações na série histórica de 2011 a 2014, sendo 624 em 2013 e 449 em 2014. Seguindo pela Argentina que teve 468 solicitações em 2013 e 316 em 2014. Já entre os países associados do MERCOSUL o Peru (433 solicitações) aparece como o primeiro na solicitação de autorizações de trabalho seguido pela Colômbia (359, 2014).[9]
Quanto os dados de residência em caráter humanitário, a CNIg apresenta que no período de 2011-2014, foram autorizados residência para 11.440 cidadãos. A maior parte das nacionalidades são: Haiti – 9.530; Bangladesh – 1.246; Senegal – 409; Gana – 142; Paquistão – 93; Guiné Bissau – 59; Republica Dominicana – 33; Angola – 24; Serra Leoa – 17; Bukina Fasso – 17. O conjunto dos países pode ser observado no Gráfico I.
Confrontados os dados de residência humanitária com os de visto temporário e permanente (residência) no mesmo período. Os com reconhecimento humanitário representam apenas 4,7% do total de estrangeiros registrados no território nacional.
Fica escuro duas hipóteses sobre a pátria amiga: ou não tem sido opção dos que buscam porto seguro; ou os processos para reconhecimento do humano não se difere dos Estados ao norte. Já que os EUA e a Europa (Ocidental) midiatizam os eventos para que as ações de fechamento das fronteiras e exportação ao caos tenha legalidade.
Fonte: CCIG/CNIg/MTE
As hipóteses levantadas nos ajuda na atenção a origem dos cidadãos que recebem a residência humanitária, conforme o Gráfico II que não tem mudança nos primeiros da fila já apresentados no anterior, o Haiti lidera seguido por Bangladesh e Senegal. Em seguida são os de origem europeia: França – 583, Reino Unido – 471, Portugal – 319, Itália – 275, Espanha – 243. Depois a América do Norte com: Canadá – 232 e EUA – 228. Os demais não representam mais que 100 cidadãos com residência humanitária.
Fonte: CCIG/CNIg/TEM
A situação favorece a midiatização de fatos que se relaciona com o cotidiano da totalidade da população negra brasileira, os atos racistas são noticiados como se houvesse compromisso com o humanismo. Dando tranquilidade para que a elite nacional se posicione frente ao Estado em suas escalas, para alertar que a busca pelo lar não deve se torna uma realidade.
Com isso os atos envolvendo cidadãos de origem Africana ou Andina em território nacional, são noticias em situação de Big Brother, sem nenhuma atenção aos direitos internacionais que o Estado é signatário.
Por isso, não podemos achar que a Barbárie nos ajuda caminhar, é preciso reconhecer a Encruzilhada ao Humanismo, os diferentes querem ter direito de viver nos ambientes construídos por meio da ex/apropriação de suas riquezas, porém, os lares são projetados para os iguais.
Enfim, o projeto de civilização moderna não comporta a diferença, assim, as sociedades e Estados onde o genocídio pela raça/cor é legal – não se pode esperar atos de humanidade para todos que representam identidades ameaçadora ao “progresso civilizatório”.
Texto de Diosmar Filho, geógrafo, professor e pesquisador. e-mail: ptfiho@gmail.com
NOTAS
[2] Documentário Milton Santos – Por uma outra Globalização. Caliban, 2002.
[3] Professora do Departamento de Geografia, UFRJ/CNPq.
[4] MACHADO, Lia Osorio. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930). In.: CASTRO, Iná de Elias de. GOMES. Paulo Cesar da Costa. CORRÊA. Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 15ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 309-352.
[5] Idem. p. 349
[6] CAVALCANTI, Leonardo; TONHATI, Tânia; OLIVEIRA, Antônio Tadeu (Orgs.) Autorizações concedidas a estrangeiros. Brasília: Relatório, 2015. Disponível em URL: http://portal.mte.gov.br/obmigra/home.htm.
[7] Idem. p. 11
[8] Idem. p. 12
[9] Idem. p. 14