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Angela Davis em Salvador: um dia para além desse tempo

Por Donminique Azevedo

Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia. 25 de julho de 2017. 14h. Apesar da chuva que ameaçava cair com mais intensidade, uma fila já se formava no arredores do Canela, bairro nobre da cidade de Salvador (BA). Na entrada do espaço: risos, abraços e muita conversa. Uma dúvida pairava no ar: “será que o espaço caberia todo mundo?”.

À medida que o tempo passava, o burburinho e a fila só aumentavam. Um andar acima, um grupo de jornalistas, em sua maioria negras, aguardava pela chegada daquela com notoriedade mundial por lutar pelo direitos das mulheres e por ser uma das pioneiras a estabelecer a correlação entre o racismo, o sexismo e classe, aquilo que, atualmente, é definido como interseccionalidade.

Pouco antes das 15h, Angela Davis chegou para a coletiva de imprensa – evento midiático que ocorreu com uma energia bem diferente daquela que nós jornalistas costumamos participar.

O momento estava para além desse tempo. Não somente porque a entrevistada é uma notória mulher negra com engajamento político a favor do povo negro e que propõe a construção de um futuro mais justo e igualitário. Não apenas porque essa mulher integrou o Partido Comunista dos Estados Unidos e o Partido dos Panteras Negras e, hoje, é uma das importantes vozes no mundo a denunciar o racismo institucionalizado. Tão somente não foi porque era o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

Foi diferente porque os nossos passos vêm de longe e aquele momento reunia mulheres negras que trilham caminhos para o nascimento/surgimento de uma sociedade com mais equidade e menos genocida. Trajetórias estas marcadas por muitas violências, desde África.

Foto Nunah Alle_Mídia NINJA

Angela Davis  foi presa e perseguida em 1970. O encarceramento da ativista resultou na campanha mundial “Libertem Angela Davis” à época. Hoje, é umas das mulheres que encampam o debate sobre o abolicionismo penal. Além disso, denuncia o encarceramento em massa da população negra como mecanismo de controle e dominação.

Brasil possui a quarta maior população prisional do mundo

“Como alguém que trabalhou com esse sistema em boa parte da minha trajetória, eu, juntamente com outras pessoas que estão engajadas nessa luta, percebi que essa punição que está associada ao encarceramento tem mantido ligações muito óbvias com o sistema de escravização. Essa relação entre o sistema carcerário e a escravidão não é só questão de estabelecer analogias entre esses dois sistemas. É uma questão de genealogia. Assim como aqueles que acreditavam que o sistema escravocrata deveria ser mantido como instituição – mas que deveria ser transformado em uma instituição mais humanizada – esse argumento não faz nenhum sentido. Então, ao argumentar em prol da reforma do sistema carcerário é simplesmente um argumento que visa manter o racismo e a repressão do encarceramento e do aprisionamento. Portanto, a abolição é a estratégia que abraçamos. A abolição nos leva a fazer perguntas não só sobre esse sistema de punição, mas também sobre a sociedade que constitui esse sistema de punição”, pontuou Davis, enquanto no andar de baixo o acesso era liberado para o público que aguardava na fila.

Faltando alguns minutos para às 16h e quase todos os lugares da Reitoria já estavam ocupados. Era um problema. Ainda tinham muitas pessoas do lado de fora e a caminho. As laterais foram liberadas. Restava apenas um corredor e a área próxima ao pleno. Menos de uma hora depois o salão foi ocupado. Completamente ocupado pelo público que esperava do lado de fora. Todas e todos queriam participar da conferência  “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”.

Foto Nunah Alle_Mídia NINJA

Laila Oliveira, integrante da Auto-organização de Mulheres Negras de Sergipe REJANE MARIA, veio de Aracaju para Salvador para as atividades previstas para a data que dão visibilidade às lutas contra o racismo, machismo, misoginia e demais formas de opressão. Era uma das mulheres que aguardavam na fila desde às 13h. Para a militante, grávida de cinco meses, valeu a pena o deslocamento, pois a apresentação de Davis foi precisa. “Sai do discurso da criminalização porque já é o discurso que o sistema faz com a nossa população. Cabe a nós, mulheres negras, remarmos na direção contrária de pensar na possibilidade de abolição mesmo, pois somos maioria no sistema carcerário, que é uma forma de nos matar”.

Durante a conferência, Angela falou da emoção de estar na Bahia pela quarta vez, sendo a 6ª no Brasil. A escritora, professora e filósofa destacou a importância do movimento de mulheres no Brasil.  “Tenho acompanhado recentes situações que ocorreram  dentro do movimento de mulheres negras. Me parece que nesse momento contemporâneo as mulheres negras brasileiras representam o futuro do movimento.  As mulheres negras brasileiras têm uma história bastante longa em envolvimento em lutas em prol da liberdade, como tem sido simbolizado, por exemplo, através da continuidade da Irmandade da Boa Morte”.

Neste sentido, Davis mencionou o legado de Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzales, Luiza Barros, Dona Dalva Damiana de Freitas, Vilma Reis, Mãe Stella, dentre outras. Enfatizou ainda que as estadunidenses precisam aprender mais com as brasileiras, principalmente com o movimento de trabalhadoras domésticas.

As mulheres negras representam a possibilidade da esperança e do futuro – Angela Davis

Em um discurso atento às intersecções entre política, cultura, raça e gênero – considerando, inclusive, as questões locais e regionais – Angela Davis chamou a atenção para violações de direitos humanos que estão ocorrendo na Bahia, a exemplo da situação do Quilombo Rio dos Macacos, que há mais de 40 anos vivencia problemas  por conta de uma disputa territorial com a Marinha. [Entenda a luta da comunidade quilombola de Rio dos Macacos: https://goo.gl/3Vq7SJ ]

BRANCO SAI E PRETO FICA?

Quando do acesso ao salão da Reitoria, algumas pessoas reivindicaram que homens e mulheres brancas, nesta ordem, levantassem das cadeiras para mulheres negras sentassem, principalmente as idosas. “Essas tensões raciais são importantes nesse momento porque é um resgate da autoestima, do protagonismo da população negra. Esse espaço é para todos, mas, principalmente para o nosso povo. A gente não pode ficar secundarizado nesse espaço. A gente já fica secundarizado lá fora, no mercado de trabalho, nas instituições, nas unidades de saúde”, considerou Laila Oliveira.

“Acho que não é uma tensão. É um sentido de imposição, na verdade. Durante muito tempo foi tenso para gente. Agora, nada mais justo que tensionar para o outro lado, mas não é nada agressivo, que vá machucar ninguém, não é nada que mata, que prende”, disse a estudante da Universidade Federal de São Carlos Dandara Sousa. 

Três pessoas brancas foram abordadas para falar sobre o assunto. Todas (duas mulheres e um homem) informaram que preferiam se abster da questão.

A conferência foi promovida pelo Coletivo Angela Davis da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o Odara – Instituto da Mulher Negra e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

“A professora Ângela Figueiredo convidou a gente para participar como parceiras dessa ação. Esse momento é muito importante não apenas pela presença de Angela Davis – que é essa mulher referência – mas para mostrar para toda a sociedade baiana que nós, mulheres negras do Brasil, estamos organizadas e em luta cotidianamente”, considerou Alane Reis, jornalista e ativista do Odara Instituto da Mulher Negra.

Donminique Azevedo é repórter do Portal Correio Nagô.

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