Por Diosmar Filho[1]
O diálogo integra o desafio de pensar a Encruzilhada ao Humanismo no Sul, não aceitando viver a Barbárie, porque sua essência é a manutenção da dimensão temporal do genocídio humano.
E as recentes visitas no Recôncavo baiano contribuíram com o desafio. Começando pela visita ao Território Quilombola de São Francisco do Paraguaçu e Boqueirão[2] nas margens do Rio Paraguaçú, nas terras de Dona Maria das Dores e Altino da Cruz – sentir o prazer da luta pelo direito na terra e a transformação nos(as) sujeitos(as).
Lá se vão dez anos que conheci, em Salvador, na recepção da CESE[3] Seu Altino, no encontro recebi o convite para lutar contra os grileiros das terras onde se firmou a ancestralidade dos povos africanos. Na resposta, um sim imediato!
Aproveitando do momento em São Francisco, visitei o Território Quilombola de Salamina Putumuju[4], uma viagem de 35 minutos de barco – rio abaixo. Não demorei em Salamina, logo alertaram do tempo e da maré – já que sou verde para o balanço do mar. O tempo suficiente para renovar as perspectivas sobre lutar na terra – em única mensagem os sujeitos afirmaram que: a vida deles é cuidar do conquistado pelo direito ancestral.
Na viagem entre os territórios quilombola avistei um farol no Rio Paraguaçú – um ponto, uma lanterna de orientação para os quilombolas e moradores dos limites e caminhos para alcançar as cidades de Maragogipe, Cachoeira e São Felix pela Baía do Iguape.
O farol aguçou as ideias sobre a Encruzilhada ao Humanismo e sua imagem levou a pensar sobre a Lanterna dos Afogados, um ponto para a escala global e da corporeidade no espaço. Do lugar, vi o processo histórico que ilumina e encoraja homens e jovens de regiões no continente africano para o Genocídio Negro no Mar Mediterrâneo, sonhando com as terras jovens da Europa Ocidental. Assim como as percepções existenciais do homem diante do brilho-autônomo da mulher negra no território brasileiro, ampliando o Feminicídio contra as Mulheres Negras.
Para melhor entender essa Lanterna dos Afogados, reporto aos pensadores(as) negros(as), que caminharam na produção de ideias e análises da política de eliminação planetária dos corpos negros no espaço pelo silencio bárbaro.
E o professor Milton Santos, na aula proferida no Programa Roda Viva, em 1999, introduz a crítica essencial à globalização para análise das escalas.
A humanidade durante dois séculos sonhou com a possibilidade de uma ciência a serviço do homem, e quando isso obtém exatamente esses objetivos, digamos assim, são deixados de lado para que essa globalização, que nós estamos presenciando sirva a um número extremante limitado, não só de pessoas, mas também de um número limitado de empresas e a número limitado de instituições.[5]
O professor deixou claro que o período é perverso e que a ciência junto com a técnica, ao invés de melhorar a qualidade de vida, tem sim espacializado o genocídio humano.
As pessoas estão sendo proibidas de circular! Só o capital se move por meio das empresas e instituições internacionais no espaço geográfico, homogeneizando as pessoas nos padrões que as imobilizam e violentam, reprimindo o Ser. Estabelecendo na região, no território e no lugar, a representação secular do Norte que decide quem deve comer e morrer geograficamente.
A questão se aprofunda com os dados da Organização Internacional para Migrações (OIM)[6] parceria da ONU, segundo a agência até o dia 22 de junho de 2016, morreram no Mar Mediterrâneo 2.861 pessoas. Os números são dos corpos alcançados pelas missões de resgate, não corresponde ao real número de mortos.
A agência informou ainda que 19 migrantes da Etiópia morreram sufocados dentro de um container de um caminhão que estava indo da África do Sul para a Zâmbia. O porta-voz da OIM, Joel Millman, afirmou que “esse foi o pior caso com mortes já visto nessa região”. Segundo ele, 76 sobreviventes, incluindo crianças, foram levados para abrigos especiais. As autoridades disseram que houve um aumento significativo do número de migrantes em situação irregular tentando entrar na Zâmbia, vindos particularmente de países da região do Chifre da África.[7]
Pela OIM, cerca de 214 mil migrantes e refugiados venceram as barreiras naturais e dos Estados racistas no Mar Mediterrâneo, alcançando as terras da jovem Europa Ocidental pela Itália, Grécia, Chipre e Espanha.
O movimento dos jovens africano é o questionamento do escritor senegalês Boubacar Boris Diop, porque lutam para ser parte do genocídio? Ser a estatística da barbárie? Ao darem as costas à violência dos políticos no território africano, lançam os corpos negros ao mar.
Não há solução, se você coloca as economias de joelhos com a cumplicidade de dirigentes políticos, que você mesmo instalou no poder, é claro que as pessoas vão morrer e assim tentar reagir. Evidentemente, uma coisa que não pode parecer estranha, é a energia que os jovens africanos empenham para morar na Europa. Porque não utiliza para ficar no seu país e lutar contra o sistema político corruto?[8]
A compreensão do Diop ajuda a pensar a escala da corporeidade com a ação do homem negro em umas das principais denúncias do Movimento de Mulheres Negras no Brasil: o silêncio dos homens negros frente ao feminicídio. Como afirma a historiadora Valdecir Nascimento[9] na explicação das dimensões da ação das mulheres negras a partir do Feminismo Negro.
No lançamento do projeto Dijor[10] a mesma trouxe para o centro a responsabilidade do homem negro em dois planos: no primeiro reconhecendo o feminicídio contra as mulheres negras; e no segundo precisam se juntar ao processo de denúncia e ativismo contra a violência que mata e oprime a individualidade e a coletividade das mulheres negras em todos os espaços da sociedade. Os planos foram potencializados nas últimas décadas pela socióloga Luiza Bairros[11], que também denunciou a força do patriarcado sobre o homem negro, o considerado homem de segunda classe.
Esses planos são referência para a pesquisadora Emanuelle Góes[12] que os evidencia pelos números do Mapa da Violência: os dados de 2015 mostram que entre 2003 e 2013 as taxas de homicídio de brancas caíram de 3,6 para 3,2 por 100 mil – queda de 11,9% –, enquanto as taxas entre as mulheres e meninas negras cresceram de 4,5 para 5,4 por 100 mil, aumento de 19,5%.
Esses dados demonstram que as mulheres negras não estão sendo atingidas pelas políticas públicas de enfrentamento a violência contra a mulher, ou seja, essas políticas não reconhecem a situação de vulnerabilidade vivida pelas mulheres negras que são incrementadas pelo racismo.[13]
O genocídio dos homens e jovens negros e o feminicídio contra as mulheres negras é o alerta de Fanon (2005) sobre a cultura nos Estados Nacionais colonizados. A luta contra o colonialismo precisa ter reserva para próxima batalha, porque a aceitação da independência se tornou a tática de manutenção dos seus pensamentos na sociedade colonizada.
Portanto, a barbárie irá justificar a manutenção do genocídio e feminicídio, invisibilizando 500 anos de racismo político das sociedades europeias ocidentais na ex/apropriação da vida e do patrimônio de povos na África e nas Diásporas.
E os homens e jovens negros, pelas relações socioespacial no continente africano e no Brasil, terão que se conscientizar que são vítimas do racismo e perpetuadores do machismo, que impacta na vida das mulheres negras por meio de violência e violações, onde a sua capacidade de sujeito autônomo na sociedade tem na imagem de sucesso o patriarcado.
Nesse ponto, o farol no rio Paraguaçú é a outra globalização do Milton Santos – a humanidade dos povos no lugar que escolheram viver, não o lugar que precisam viver para ser parte integral da sociedade do consumo.
Por fim, a intersecção do racismo e do sexismo age em escala global e na escala da corporeidade para extinção da representação negra no espaço e da sua humanidade. O que coloca os Territórios Quilombolas como centrais no desenvolvimento das ideias sobre Encruzilhada ao Humanismo, frente à luminosidade que afoga o brilho negro no farol do Norte.
[1] Geógrafo, professor, ativista do Movimento Negro – E-mail: ptfilho@gmail.com
[2] Em dezembro/2007 foi publicado pelo INCRA o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação do Território Quilombola de São Francisco do Paraguaçu no município de Cachoeira, a comunidade aguarda a titulação definitiva das terras.
[3] Coordenadoria Ecumênica de Serviço.
[4] Em agosto/2014 o INCRA emitiu a titulação de 1,4 ha da Fazenda Salamina para o Território Quilombola de Salamina Putumuju no município de Maragogipe. Desde dezembro/2010 o território já tem o Decreto Interesse Social publicado para titulação pela Presidência da República Federativa do Brasil.
[5] Transcrição feita da fala do professor Milton Santos no Programa Roda Viva (1999) da TV Cultura da Fundação Padre Anchieta – São Paulo.
[6] Disponível em: http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2016/06/migrantes-mortos-no-mediterraneo-ja-chegam-a-28-mil-em-2016/#.V6kU–srLIV Acesso em: 08.08.2016
[7] ONU, 2016.
[8] Transcrição do filme documentário Encontro com MILTON SANTOS ou: O Mundo Global visto do lado de cá. Filme de Silvio Tendler – CALIBAN, 2006.
[9] Militante do Movimento de Mulheres Negras e Coordenadora Executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra – Salvador, Bahia.
[10] Lançamento do Projeto Dijor pelo Odara (Ba), Nizinga (MG) e ACMUN (RS) – dia 17.07.2016 no Auditório Milton Santos no CEAO/UFBA, cidade do Salvador.
[11] Militante fundadora do MNU e do Movimento de Mulheres Negras e ex-ministra da SEPPIR do Governo Dilma Rousseff (2011-2014).
[12] GÓES, Emanuelle Freitas. Não Sou Uma Mulher? Mulheres Negras, Gente ou Bicho? Blog População Negra e Saúde. Disponível em: http://populacaonegraesaude.blogspot.com.br/2016/03/nao-sou-uma-mulher-mulheres-negras.html Acesso em 08.08.2016.
[13] Idem.