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(NÃO) ESTAMOS SOZINHAS/OS. AINDA BEM!

Por Zelinda Barros*

Estive num evento recentemente e, enquanto aguardávamos o início da cerimônia, comecei a conversar sobre amenidades com uma pessoa conhecida. Num dado momento, ela comentou sobre o episódio em que um homem negro, numa festa black, chegou acompanhado por uma mulher branca, com quem dançou animadamente, sem se preocupar com os olhares de reprovação. Essa mesma conhecida também comentou, indignada, sobre as mulheres negras que estavam com homens brancos na festa e chamou a ambos, negros e negras acompanhadas por brancas/os, de “palmiteiros”. Não sei se ela não lembrava do fato ou queria apenas me provocar para que emitisse opinião, mas argumentei que eu mesma sou casada com um homem branco e que muitas mulheres negras não se relacionam com homens negros por falta de oportunidade, não por rejeição a esse tipo de relacionamento. E com a expressão “falta de oportunidade” não quero simplesmente afirmar que os homens negros rejeitam mulheres negras e preferem as brancas, como é comumente afirmado, como também apontar para a incompatibilidade de interesses, projetos, etc.

As narrativas sobre esses relacionamentos inter-raciais costumam ser, em grande parte, contaminadas pelos conceitos prévios de quem observa e se mostra pouquíssimo preocupado/a em saber como as pessoas envolvidas efetivamente pensam e vivem esses relacionamentos. Reconheço que o racismo faz com que muitas/os mulheres e homens negros deixem de ver a seu/sua “igual” como um par afetivo-sexual possível, mas há outros aspectos que precisam ser destacados, pois muitas opiniões a respeito, que faziam sentido em períodos anteriores, atualmente são insuficientes para dar conta de uma realidade que sofreu transformações ao longo das últimas décadas. Diante da importância deste assunto, não somente para as pessoas envolvidas num relacionamento deste tipo, mas para a sociedade como um todo, volto a propor uma reflexão sobre o tema, abordado na dissertação de Mestrado defendida por mim em 2003.

Ainda hoje há relacionamentos em que as pessoas têm seus papéis rigidamente definidos segundo o gênero, mas é necessário atentarmos para as transformações pelas quais passaram o casamento e os relacionamentos afetivo-sexuais nas últimas décadas, pois essas mudanças contribuíram sensivelmente para o modo como muitos relacionamentos, inclusive os inter-raciais, atualmente se estruturam.

Apesar do racismo e do patriarcado continuarem operantes, há casais que conseguem estabelecer uma relação em que a busca por igualdade é a tônica. A representação social de uma pessoa negra como um par indesejado, seja homem ou mulher cis ou trans, não está presente no relacionamento inter-racial assumido publicamente, o que faz com que esse tipo de união desafie o racismo, em vez de reiterá-lo. Uniões inter-raciais homoafetivas – ainda que muitas continuem reproduzindo o padrão heteronormativo, também desafiam os padrões de gênero e raciais socialmente impostos.

Não podemos desprezar a importância dos movimentos feministas (em suas mais diferentes expressões) na indução dessas mudanças. A defesa do direito ao livre exercício da sexualidade, da união por afinidade e do prazer sexual recíproco são elementos-chave em boa parte dos relacionamentos ocorridos na atualidade. A negociação entre os/as parceiros/as pode, inclusive, garantir a exigência ou não de fidelidade, que passou a valer para ambos, não somente para as mulheres. As escolhas afetivas deixaram de ser determinadas exclusivamente por imposições familiares e o constrangimento dessas escolhas pela raça é menor ou inexiste em alguns contextos, ainda que o racismo continue operando em nossa sociedade. A opção por permanecer sozinha/o, ou eventualmente acompanhada/o, também é algo bastante comum e valorizado contemporaneamente, e isso não necessariamente significa que a pessoa assim se comporta por ter sido desprezada como par. Para essas pessoas, vale o ditado: “Antes só do que mal acompanhada/o!”.

Enquanto o entendimento sobre as relações inter-raciais estiver marcado por uma perspectiva dicotômica, muito pouco contribuiremos para a luta antirracista. É reducionista a explicação dos relacionamentos inter-raciais como sendo motivada apenas por uma insatisfação do/a parceiro/a negro/a consigo próprio/a. Há negros e negras muito bem resolvidos em relação à sua negritude e que convivem com pessoas não-negras.

Desejar que as pessoas negras se reencontrem afetivamente e rompam com os grilhões impostos pelo racismo não requer uma abordagem monolítica e prescritiva, forma de considerar os relacionamentos que aprisiona os sujeitos e suas possibilidades de ação em esquemas previamente determinados. Além de autoritário, esse modo de enxergar a realidade limita as possibilidades de existência do ser humano negro, que já é tão afetada pelo racismo. Por outro lado, não podemos perder de vista que a união entre pessoas negras que se amam e se respeitam assume um caráter político importante na luta contra o racismo antinegro, pois reafirma a nossa capacidade de amar uns/umas aos/às outros/as e possibilita a construção de relações em que a empatia do par branco em relação ao racismo sofrido pelo par negro dá lugar ao compartilhamento da experiência vivida entre negros/as, que é um elemento poderoso na construção desse tipo de parceria.

O conteúdo desta coluna é de responsabilidade dX autorX.

Nascida em Salvador, mas de Santiago do Iguape (Cachoeira/BA) por afinidade e filiação materna. Antropóloga Feminista Negra, ciberativista, Especialista em Educação a Distância, Mestra em Ciências Sociais e Doutora em Estudos Étnicos e Africanos. Pesquisadora do Coletivo Angela Davis (UFRB).

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