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Prefeito pode entregar chave da cidade à Jesus? Veja o que diz especialista em Direito

Recentemente, deixando de lado os princípios do Estado Laico, prefeitos brasileiros, em ações orquestradas, decidiram entregar as chaves de suas respectivas cidades às figuras centrais do Cristianismo. Os atos foram decretados em Sapezal (MT), Santo Antônio de Pádua (RJ), Alto Paraíso (RO), e o de maior repercussão nacional ocorreu no Centro-Sul da Bahia, na cidade de Guanambi. Reflexo da ausência de respeito às liberdades religiosas, as posturas dos chefes do executivo municipal desrespeitam a Constituição Federal, além de estimular à intolerância. Para ampliar o debate sobre o tema, a  repórter Donminique Azevedo, do Portal Correio Nagô, entrevistou o professor de Direito da Universidade Federal da Bahia, advogado e coordenador da Aganju – Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica, Samuel Vida.

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Samuel Vida também atua como coordenador e pesquisador do Programa de Pesquisa e Extensão da UFBA sobre Direito e Relações Raciais. Foto: acervo pessoal

Correio Nagô – Qual o panorama político e histórico da liberdade religiosa no Brasil?

Samuel Vida – A liberdade religiosa é um tema de alta complexidade que mostra as fragilidades, os limites da própria pretensão da civilização europeia de se apresentar  como portadora de valores universais. A Modernidade apresentou para o mundo um projeto eurocêntrico, absolutamente referenciado em valores culturais e em expectativas comportamentais, estéticas, políticas, discursivas da tradição de parte da Europa. E o discurso fundante da Modernidade é um discurso sobre liberdade religiosa. É interessante perceber como, através desse tema, nós percebemos toda a falácia da Modernidade e a persistência do que alguns autores têm chamado de “herança colonial”, legado cultural, epistemológico, político, institucional, que continuou para além do fim da colonização. A colonização formal se encerra com a declaração da independência dos países latino americanos, no século XIX; africanos, século XX, mas a colonialidade continua porque as estruturas culturais e políticas que operam nessa sociedade ainda são aquelas de matrizes eurocêntricas. O debate da liberdade religiosa é um dos que mais evidencia isso. Primeiro pelo fato de que se fala em uma liberdade religiosa que, em verdade, nunca chegou a ser senão uma espécie de ecumenismo cristão. O máximo que se conhece de respeito à diversidade religiosa se encerra, se esgota nos limites das variedades de cristianismo que se desenvolveram nos últimos séculos. Quando a expressão religiosa transita por um território não cristão começam os problemas. Esses problemas vão desde o desprezo – um não reconhecimento na plenitude dos direitos e das possibilidades de expressão, de atuação – até o ódio religioso que vem se propagando de forma mais intensa nas últimas décadas com o crescimento do neopentecostalismo em direção às religiões de matrizes africanas no Brasil.

Há uma política de perseguição, de destruição, de ataques físicos, de ataques morais cotidianos a essas religiosidades. Nós podemos perceber que, do ponto de vista mais geral, a ideia da liberdade religiosa esconde uma hegemonia cultural que só admite a extensão dos direitos à liberdade religiosa para aqueles que são similares, para aqueles que pensam a partir da matriz judaico-cristã “europeizada”e que se chama hoje de cristianismo. O segundo aspecto diz respeito à falta de detalhamento, de discussão mais aprofundada sobre contornos, alcances da liberdade religiosa como um direito. Quase sempre a discussão se limita a afirmar uma garantia genérica instituída por via constitucional de que todos têm direito a exercer suas religiosidades e a segunda normativa determinando que o Estado não deve se envolver com as religiosidades. Na prática isso não é respeitado. A prática da primeira enunciação que diz que todos são livres para exercer as suas escolhas religiosas não se concretiza na vida real porque há interferências diversas, tanto de ordem privada, quanto de ordem pública. No que diz respeito à garantia da laicidade estatal, não se desenvolveram mecanismos eficazes, para de fato, estabelecer a cessação dos vínculos que historicamente relacionam igrejas cristãs e o Estado.

O que nós assistimos é um processo de promiscuidade que tem se aprofundado nas últimas décadas com a organização das bancadas cristãs, tanto evangélicas quanto as católicas, que vêm disputando espaço político, lançando candidatos, participando da vida política institucional a partir de um prisma religioso. Isso não é uma novidade no Brasil, no sentido mais geral, porque há uma presença de padres na vida política do País desde a época do Império, mas há uma agudização com as organizações recentes de partidos neopentecostais, como PRB, PSC. Nós temos um grande problema a ser enfrentado, a ser estudado, a ser tratado, do ponto de vista político e jurídico.

CASO GUANAMBI

O prefeito de Guanambi (BA) justificou que o ato não fere a laicidade do Estado. Como o senhor avalia essa postura e a justificativa dada após a repercussão?

No que concerne ao decreto do prefeito Jairo Magalhães de Guanambi, nós temos uma nítida demonstração de como a laicidade é frágil porque o prefeito em um gesto absolutamente descabido decreta a entrega das chaves da cidade à Jesus Cristo, numa clara manifestação de preferência religiosa, que não cabe na dimensão de um Estado Laico. Não cabe sequer invocar a ingerência de qualquer variante religiosa na condução da gestão pública ou no cumprimento dos deveres e atribuições concernentes às funções. Portanto, trata-se de um episódio que mostra como é natural para esses setores a confusão entre Estado, coisa pública, gestão e religiosidade. Tanto que alguns políticos neopentecostais vêm falando que pretendem construir no Brasil uma “jesuscracia”. O que mostra claramente essa confusão e pretensão de misturar essas esferas que deveriam estar efetivamente separadas.

A natureza ilegal e inconstitucional do decreto salta os olhos de qualquer analista e, portanto, já provocou uma iniciativa do Ministério Público de questionamento, que deverá levar a revogação do decreto, mas eu acho que tem uma importância esse episódio por servir de alerta para a necessidade de debater esse problema. Não é um caso isolado. Tanto que no mesmo dia uma prefeitura do Rio de Janeiro, em Santo Antônio de Pádua, o prefeito Josias Quintal também decreta a entrega dos destinos da cidade à Deus, em um decreto similar. Curiosamente, tanto Jairo Magalhães quanto Josias Quintal são prefeitos do PSB (Partido Socialista Brasileiro), o que provoca uma certa curiosidade porque supostamente é um partido de orientação esquerda, o que causa mais espécie mais ainda, porque mostra que essa perspectiva de mistura da religiosidade com a política está saindo da esfera formal dos partidos políticos evangélicos e ganhando terreno em outros partidos, inclusive partidos de esquerda.

Caberia alguma sanção para o prefeito de Guanambi, ou pode ocorrer apenas a revogação do ato?

A atitude pode ser passível de responsabilização em diversas esferas, já que a dimensão de deveres e de responsabilidades inerentes ao cargo exigem uma outra postura, portanto, não apenas a anulação do ato, o que por si, carece apenas de um pronunciamento formal, porque ele é nulo, originalmente nulo, ele não tem qualquer efeito jurídico – mas a própria responsabilização por uma manifesta atitude de violação da Constituição e de atingimento aos direitos fundamentais.  Não se pode tolerar que o chefe do executivo seja o promotor, ainda que indireto, da intensificação de hostilidade, de cerceamento que já existem na sociedade, que podem ser fortalecidos quando encontram eco no poder público. É bom salientar que, inclusive, no decreto o prefeito fala em cancelar pactos com outras divindades, ou seja, ele sugere uma distinção detrimentosa para outras formas religiosas que não estejam de acordo com aquele paradigma que ele adota.

TEMA REQUER DEBATE

O senhor colocou que o debate precisa ser ampliado. Eu vejo que a academia faz isso, mas ainda precisamos avançar em outras áreas, como nos meios de comunicação. Parece que ficamos conversando sobre isso com a gente mesmo. As bancadas cristãs crescem absurdamente e esse debate é pouco intensificado na sociedade…

Só faria um reparo. Na academia esse debate é quase inexistente. Não se debate liberdade religiosa como um tema relevante no País. Poucas discussões acontecem e quase sempre fragmentadas e focadas em episódios isolados.

Isso ocorre em todas as áreas?

Não há um debate acadêmico consistente no Brasil e é muito frágil no mundo sobre o tema, por conta daquilo que dizia no início. A herança colonial possibilita que determinados valores se apresentem como resolvidos e universais, quando eles são, de fato, parciais e excludentes. É preciso fazer um investimento em todas as áreas, inclusive na academia. O debate sobre o tema precisa ser revisitado, considerando que nós vivemos um momento de transição civilizacional, na qual cada vez mais o legado da democracia liberal se encontra contestado. Nós temos assistido em todo o mundo – sobretudo pelo suposto combate ao terrorismo – uma contração das liberdades democráticas, uma retomada de vieses autoritários impositivos, uma retomada de fundamentalismos. Discutir liberdade religiosa nesse contexto é discutir a própria possibilidade de democracia na contemporaneidade. Requer um investimento bem mais intenso do que tem sido dedicado.

Na esfera pública das relações políticas, sociais e culturais, também há uma necessidade de investimento, sobretudo, numa combinação de informação circulando sobre a diversidade religiosa e direito das pessoas e exercerem as mais variadas formas religiosas, inclusive a não ter religião, a exercer a opção pelo ateísmo – e a promoção de experiências, diálogos, processos de convivência inter-religiosa. O Estado pode ser um espaço de fomento a isso, inclusive através do chamado ensino religioso, que não deve ser ensino confessional, mas sim a possibilidade de disponibilizar informações e interlocuções entre as diversas formas de pensar a espiritualidade, a religiosidade, na nossa cultura, no nosso país.

Nós estamos vivendo o limiar de retrocessos e de consolidação de violências e de práticas discriminatórias em escala inimaginável no Brasil. A conquista recente da prefeitura do Rio de Janeiro por um político evangélico ligada à igreja universal do Reino de Deus acendeu o sinal. Há uma articulação que põe em perspectiva a disputa do poder político, inclusive, em uma escala máxima.

O momento político é bastante complicado. O senhor vê horizontes para que esse debate seja ampliado com essa perspectiva que temos hoje?

Essa delicadeza do momento político é também um convite ao desafio de liberar a imaginação política. Nós temos, por condicionalidades culturais, uma tendência a acomodação quando as coisas estão estáveis. A crise, ainda que nos custe caro – nesse caso do Brasil nos custa direitos a cada dia, nos custa o risco de retrocessos antidemocráticos graves – mas a crise é também a possibilidade que tenhamos que enfrentar o desafio de pensar novas formas, novas maneiras de fazer política, de se organizar, de interferir, de disputar no interior da sociedade.

Se por um lado, a crise me assusta; por outro, ela me estimula porque me parece que exige que a gente saia do lugar comum, da zona de conforto e se aventure buscando respostas e construindo alternativas mais adequadas.

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

Outra questão diz respeito ao Estatuto da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia. É um documento que poucas pessoas conhecem. Qual a aplicabilidade prática deste documento?

Este documento foi construído por um processo de mobilização do movimento negro há pouco mais de 10 anos. Nós fizemos uma mobilização que contou com adesão de cerca de 70 entidades do movimento negro e redundou no projeto de lei. Eu fui o redator, que sistematizou o debate, e já naquela época já procurávamos chamar a atenção para questão da liberdade religiosa, notadamente para as violações praticadas contra as religiões de matrizes africanas.

Esse projeto redundou numa discussão institucional que ficou paralisada nove anos na Assembleia Legislativa, inclusive oito anos do governo Jaques Wagner, sendo totalmente silenciado o debate. No final do governo Jaques Wagner, numa jogada, muito mais eleitoral do que por um compromisso efetivo com a agenda, aprovou-se a lei. Isso custou por um lado a condenação da lei à ineficácia porque ela se colocou muito mais numa tentativa do governo petista de apresentar um salvo conduto e uma peça de marketing eleitoral para o debate das relações sociais, do que de fato um comprometimento com a agenda.

Do outro lado, nós temos um problema também com o Movimento Negro que se expressa numa baixa apropriação do Direito como ferramenta política para a disputa contra o racismo. Nós temos uma sociedade que tem uma baixíssima apropriação do Direito. A sociedade não se sente portadora, produtora, usufrutuária do Direito. Ela se vê como destinatária das ordens, como mero objeto das disposições governamentais. Esse é um problema que tem que ser revertido porque o Direito não é, evidentemente, apenas um instrumento estatal.

O Direito é a emergência das aspirações libertárias, emancipatórias de uma sociedade. Mas enquanto a sociedade não tem consciência disso, não se apropria disso, a tendência é que o Direito funcione de maneira bastante precária, quase sempre naquelas circunstâncias em que há uma pressão popular. Se nós não tivermos uma mobilização popular em torno de um caso pontual a tendência é que a lei fique esquecida, adormecida. E é o que está acontecendo com o Estatuto da Igualdade Racial. De um lado, o governo estadual não tem nenhum interesse em por em prática porque isso levaria, inclusive, a ter de enfrentar vários de demônios internos – desde a política de segurança pública genocida até uma política de educação que sabota a efetivação da Lei 10.639 – assim como diversas dimensões relacionadas à saúde da população negra, relacionadas aos meios de comunicação e a política de diversidade, que deveriam ser assumidas por um governo que se diz republicano. Então de um lado o governo não tem interesse e esvazia. Do outro, a sociedade civil, em especial, a comunidade negra, não reivindica, não se apropria, não demanda a partir do Estatuto.

Essa inércia, essa inefetividade não ocorre apenas com estatuto estadual, atinge igualmente o federal, que também foi apropriado pela iniciativa do Movimento Negro e que é ignorado solenidade pelo governo federal, é ignorado pelas instituições federais. Aqui a Universidade Federal da Bahia está fazendo concurso para 63 professores. Deveria ter 13 vagas para negros e está oferecendo apenas uma e o Movimento Negro, nem a comunidade negra organizada, com poucas exceções, não cobra, não ingressa com medidas judiciais, não reage, e há base legal para isso.  

USO DE ANIMAIS EM RITUAIS RELIGIOSOS

Em relação à utilização de animais em cultos religiosos, que em breve entrará na pauta do Supremo Tribunal Federal, como o senhor avalia esta pauta?

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Em 15 de dezembro de 2016, o relator do RE 494.601 no Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio recebeu, em audiência, o Babalorixá Pecê, acompanhado pelo Baba Egbé e de um dos coordenadores do GT Jurídico da Casa de Oxumarê, para tratar do tema da sacralização dos animais. Foto: Facebook/Casa de Oxumarê

A discussão sobre o uso de animais em rituais religiosos é mais uma demonstração de como o tema da liberdade religiosa é pouco tratado no País. O cenário hoje é de proliferação de iniciativas que tentam proibir o uso de animais, de uma forma bastante cretina, eu diria, porque usam como justificativa a proteção dos animais e ao mesmo tempo a suposta prática de crueldade, de maus tratos.  O que mostra que não conhecem absolutamente a tradição cultural civilizatória de matriz africana e trabalham com preconceito, com as visões estereotipadas, preconcebidas que associam as religiosidades a práticas violentas, sanguinárias. O Supremo vai decidir um caso particular relativo à legislação estadual do rio Grande do Sul. Lá, foi aprovada a Lei Estadual sobre a proteção animal que contém um dispositivo que protege as tradições religiosas de matrizes africanas, bloqueando uma interpretação discriminatória contra as mesmas. Esta exceção foi incluída na lei por iniciativa do então Deputado Estadual Edson Portilho, vinculado ao Movimento Negro. O Ministério Público Estadual questionou está exceção arguindo-a inconstitucional e caberá ao Supremo decidir se mantém a exceção ou a exclui.

Nossa expectativa é de que não vai prevalecer a tese do MP do Rio Grande do Sul. É uma tese pouco consistente do ponto de vista jurídico e flagrantemente violadora da liberdade religiosa. Mas como nós vivemos tempos em que as surpresas acontecem a todo momento, não dá para baixar a guarda.

A gente está acompanhando, conversando com os ministros do STF, estamos tentando convencê-los a fazer uma audiência pública na qual pessoas da comunidade religiosa possam falar, possam se manifestar, estudiosos do tema possam se manifestar, como foi com a política de cotas para subsidiar com mais elementos. Não sei se isso será acatado, mas nós estamos fazendo sugestões neste sentido. A expectativa apontada como probabilidade é de que março, abril entra na pauta do Supremo.

E essa pauta aqui em Salvador?

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Manifestação do Povo de Axé na Câmara de Vereadores de Salvador, no dia 06/05/2013, contra o Projeto de lei do então vereador Marcell Moraes que pretendia proibir o uso de animais nos rituais das Religiões de Matriz Africana de Salvador. Foto: Fafá Araújo

Aqui a gente conseguiu derrotar em 2013 a iniciativa de Marcell Moraes. Esse conflito não vai se esgotar facilmente, até porque tanto Marcel Moraes quanto outros políticos sabem do potencial que tem esse tipo de bandeira. Se por um lado, ela mobiliza a opinião contrária de um segmento organizado da comunidade negra, por outro “galvaniza” a opinião conservadora e preconceituosa. Esta estratégia dá certo porque encontra lugar confortável na sociedade racista brasileira para investir contra a cultura negra

Provavelmente vamos continuar tendo projetos como estes e vamos continuar enfrentando, daí a importância de manter uma capacidade de intervenção política organizada.

 

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