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Visões: o Subúrbio Ferroviário revisto por nós

Por Diosmar Filho[1]

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O ano de 2015 se despede rico pelos movimentos próprios da vida em democracia. O Brasil passa pelo momento que todas as frentes progressistas esperavam. Pessoas, grupos, partidos, movimentos adentraram o espaço político para debater e dialogar sobre as ideias e contradições típicas de uma democracia vigente dentro do capitalismo. Algo inédito na história do Estado Nacional brasileiro, já que antes de 1988, eram impossíveis as análises democráticas.

E a ação do Acervo da Laje e amigas/os – movimento pela leitura e releitura da vida no Subúrbio Ferroviário da cidade do Salvador, com a liderança do professor e escritor José Eduardo Santos, articulado com a geógrafa Lorena Cerqueira, também contribui no fortalecimento do espaço político. Com a atividade de comemoração dos 50 anos do Boletim Baiano de Geografia[2] – publicado em 1965, pelo professor Milton Santos e sua equipe do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da UFBA[3], em parceria com AGB[4].

As diferenças e diversidade foram referência no encontro Visões Geográficas – passado/presente do Subúrbio Ferroviário visto por Milton Santos e seu grupo, revisto por nós, realizado nos dias 19 e 20 de dezembro de 2015. O mesmo percorreu os caminhos vistos e sentidos pelos pesquisados/as para a produção do Boletim.

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No encontro, todos/as se movimentaram pelas pesquisas sobre o processo de desenvolvimento do Brasil republicano até os anos sessenta. Tendo a ferrovia como estrutura, o país avançou na comunicação, interiorização e na mobilidade das pessoas e da produção, com a interconexão dos fixos e os fluxos que transformaram as paisagens.

Abre as análises reflexivas sobre o espaço geográfico no Boletim o artigo de Pierre George sobre “Desenvolvimento e População” apresentando que:

A localização das populações procede de situações econômicas realizadas no momento do povoamento. A harmonia que pôde existir durante um tempo mais ou menos longo entre as exigências e as disponibilidades da produção de uma parte, o potencial de produção e as necessidades da população de outra parte… (GEORGE, 1965, p.5)

A reflexão se materializa no território pelos artigos de Norma Freitas – “Calçada a Estação e o Bairro”. Que explica o processo social-histórico de ocupação do território na cidade do Salvador, tendo a Cidade Baixa como centralidade, no bairro da Calçada se instalou os principais equipamentos de transporte, comercial e áreas residenciais, que posteriormente foi se deslocando para a Península de Itapagipe, dando origem a novos bairros, assim como, concentrando as indústrias de produção têxtil.

Essa centralidade se dava pelo principal objeto ali instalado a Estação de Trem, um equipamento central no embarque e desembarque de pessoas e mercadorias, originárias do interior baiano e de outros estados, segundo Norma Freitas:

A descrição dessa paisagem não estaria completa sem um estudo mais detalhado da estação como fator condicionador da evolução do bairro e através da via férrea como traço de união do bairro, (parcela de um todo da cidade), com os subúrbios, o interior e outros estados. (FREITAS, 1965, p. 36)

No artigo “Plataforma, Subúrbio Industrial da Cidade do Salvador” de Cléa Oliveira e Walney Sarmento, é apresentado o bairro que se chamou “Almeida Brandão”. A análise produzida sobre Plataforma é essencial para conhecimento dos processos de ocupação humana e industrialização, se referenciando na geomorfologia e localização da Calçada, da Península de Itapagipe, do São João do Cabrito e Plataforma.

Os bairros são conectados por terra e pela Baía de Todos os Santos, com as Enseadas dos Tainheiros e do Cabrito, que mantém a comunicação da população pela navegação. Mais, a referência será a linha férrea, nas suas margens se dará o crescimento industrial com a exploração do petróleo em São João do Cabrito pela PETROBRAS e a indústria têxtil em Plataforma.

Sobre Plataforma, os autores esclarecem que:

O aspecto humano caracteriza-se por uma função industrial que distingue Almeida Brandão de quase todos os outros subúrbios ferroviários de Salvador. Expressiva parte de sua população é de classe operária, que trabalha para uma fábrica ali instalada e que constituía principal atividade do local. É uma fabrica de tecido denominada São Brás… foi fundada em 1886 (…) Em 1942, a Companhia inaugurou a usina geradora, com capacidade de 2.000 HP, para sanar as deficiências de energia elétrica então existente. (OLIVEIRA, SARMENTO, 1965, p. 52)

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No conjunto a publicação é um marco aos estudos sobre o desenvolvimento socioespacial do Estado da Bahia, a partir do povoamento histórico da região, da linha férrea do subúrbio ferroviário, do crescimento do comércio e os processos de industrialização.

No presente, o encontro Visões Geográficas embarcou no trem na Estação da Calçada, no dia 19/12/2015, parando na Estação de Paripe, com caminhada até a comunidade de Tubarão, onde se vivenciou os processos de ocupação e reprodução cultural do lugar. Hoje espaço de resistência das marisqueiras e pescadores e trabalhadores do comércio e serviço, sob efeito da exclusão proporcionada pelo desmantelamento do sistema de transporte ferroviário e a desindustrialização que transformou os lugares em áreas periféricas.

No dia 20/12/2015, o diálogo foi pelo mar, navegando da Ribeira na Península de Itapagipe até Plataforma, se visualizou as novas paisagens, da Enseada dos Tainheiros as visões se encontram com as restingas de Mata Atlântica do Parque São Bartolomeu e do Morro do Outeiro (conhecido pela comunidade como Morro do Baiuca), matas pressionadas pelas ocupações humanas que, na falta da terra, avançaram sobre os manguezais e subiram os morros para garantir o direito à cidade.

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Em terra, os participantes visitaram as ruínas da fábrica de tecido em Plataforma e o Morro do Baiuca, sendo presenteados com uma visão panorâmica do Parque São Bartolomeu de Pirajá e habitações nos morros até o bairro de São Caetano, na planície o bairro de São João do Cabrito, a Enseada do Cabrito com elevada poluição, resultante da falta de tratamento de esgoto e a ponte do trem ligando o São João à Plataforma. Na vista oposta, a Enseada dos Tainheiros com pontos de elevada poluição, os bairros da Massaranduba, Ribeira e a Baía de Todos os Santos. Essa nova configuração territorial não tem a ferrovia como referência e, sim, o sistema de transporte rodoviário com a Avenida Suburbana.

As configurações deram surgimento às ocupações humanas que além terra se apropriou do mar, as enseadas dos Tainheiros e do Cabrito foram reduzidas em, pelo menos, 20% nas ultimas décadas.

E a última mesa redonda o subúrbio revisto por nós, a referência foi o território da resistência negra, explicado pela pesquisadora e escritora Antônia Garcia, que afirmou o longo processo de organização das comunidades desde os anos oitenta na luta pelo direito à cidade. Contextualizando que estamos falando de uma região demograficamente negra e feminina, que precisa contar a história da Plataforma das Operárias e lutar pela transformação das ruínas das fábricas em centro de ensino e pesquisa público.

Outras vivências são dos movimentos de ocupação e resistência pelo direito à moradia, responsável por disseminar redes de solidariedade e formação de lideranças como a educadora e ativista Natureza França que atua na ocupação Cidade de Plástico no bairro de Periperi. Dos movimentos pelo direito à moradia, passamos para cena cultural através do Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário de Salvador que assumiu com protagonismo a gestão do Centro Cultural Plataforma – único equipamento público cultural na região que, segundo o Censo Demográfico 2010 do IBGE[5], são 15 bairros que concentram 10% da população da cidade de Salvador.

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A cena cultural apresentada pela ativista Ana Valeska e pelo jornalista e ator Marcio Bacelar, mostra como o Estado racista é o principal responsável pela exclusão da população negra do Subúrbio Ferroviário e o genocídio dos jovens negros, provedor da negação do direito à cidade ao longo do século passado e na atualidade.

Por fim, se percebe que a população negra suburbana excluída do Direito à Cidade, por meio da ocupação e resistência, desenvolveu suas estruturas e formas, produzindo novas paisagens e garantindo ao Subúrbio Ferroviário uma renovação nas funções, da Bacia do Cobre à orla da Baía de Todos os Santos, do bairro da Calçada até Paripe.

Essas novas funções apresentam para a cidade do Salvador e ao Estado da Bahia, uma das paisagens mais rica e própria no processo de desenvolvimento humano com o objetivo de reduzir as desigualdades socioespacial da capital baiana.

Para o Estado se apropriar com política pública dessas novas paisagens, será preciso tornar público os investimentos a serem realizados pelo governo estadual e federal, na implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), na revitalização da vida pela ferrovia na região, nos projetos de turismo para Baía de Todos os Santos, a democratização da revitalização do Parque São Bartolomeu e a recuperação da orla continental pelo município.

Esses projetos não podem produzir novas exclusões – algo já sentido pela população de Plataforma que viu o Morro do Baiuca, um patrimônio histórico de culto aos Orixás e importante para católicos, devido à existência do cruzeiro secular – ser grilado e cercado pelo setor imobiliário, restando agora aos moradores e movimentos de luta pelo direito à cidade, se juntarem para ocupar o Baiuca e responsabilizar a gestão estadual e municipal que esse patrimônio é de direito público e pertence aos moradores do Subúrbio Ferroviário de Salvador.

Fotos:  Igor Brunchaft, Davi Carlos Passos e Patrícia Itaparica.

[1] Geógrafo, Professor, Ativista dos Movimentos Negros. E-mail: ptfilho@gmail.com

[2] Boletim Baiano de Geografia. Org. Milton Santos. Ano IV, V e VI – Nº 9,10, 11.Volume 8, UFBA, Salvador-Bahia-Brasil, 1965. 95p.

[3] Universidade Federal da Bahia.

[4] Associação dos Geógrafos do Brasil – Secção Regional da Bahia.

[5] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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