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Mais que mil palavras: imagem põe em discussão limite de serviços afros

Mais que mil palavras: imagem põe em discussão limite de serviços afros

Na madrugada do último sábado (9), a imagem da diretora de estilo da Vogue Brasil Donata Meirelles*, em que aparece na festa de seu aniversário, sentada em uma cadeira emblemática para a cultura africana ao lado de duas mulheres negras em pé e vestidas de baiana, circulou nas redes sociais gerando incômodos e levantando questionamentos sobre os limites dos serviços afros.

A repercussão ganhou o posicionamento de artistas e militantes que reprovaram a organização da festa. A atriz Taís Araújo usou o Instagram para criticar o uso de simbologias que remetem ao período do Brasil colonial. “Considero um erro, pois a festa foi feita por pessoas que trabalham com imagem e sabem o poder que uma imagem tem”, escreveu Taís.

O ator Érico Brás subiu um vídeo no Instagram em que diz que a elite branca tem saudade da escravidão. “Isso é a prova de que os brancos têm saudades de ver a gente amarrado no tronco. Tudo isso tem relação com o período que estamos vivendo no país”, afirmou o ator.

A festa de aniversário, realizada no Palácio da Aclamação, no Centro de Salvador, ainda contou com show de Caetano Veloso e Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, artistas que não se pronunciaram em relação à polêmica da festa.

Veja aqui o vídeo de Érico:

 

 

ABAM informa que registrou queixa na Delegacia de Crimes da Internet

“Eu com 60 anos vou aceitar me passar por escrava deles?”, questionou Rita Maria dos Santos, presidenta da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos da Bahia (ABAM). Em entrevista ao portal Correio Nagô, Rita relatou que esteve entre as dez mulheres contratadas para representar a diversidade baiana e que a intenção da festa não era recriar o período escravista.

Rita Santos, da ABAM, sentada ao centro, durante aniversário de Donata Meirelles

“Me pediram diversidade. Na nossa equipe tinham duas baianas que são evangélicas, tinham loira, tinham senhoras, por exemplo”, descreveu. Ainda segundo a presidenta, a escolha da indumentária levou em consideração o dia da semana, sexta-feira, e ao terceiro dia da festa,  que seria  realizado com outras baianas no terreiro do Gantois, quando todas também estariam de branco [evento que foi cancelado após as críticas]. “Optamos até por usar poucas anáguas, estávamos fazendo um receptivo de acordo às condições do contratante”, relata.

“Os ‘tronos’ eram para nós e estávamos sentadas. Aconteceu de que ela [Donata Meirelles] chegou entusiasmada com a festa, e uma das meninas cedeu o lugar para ela fazer a foto”, contou a baiana. Para Rita, houve uma precipitação nas redes sociais com relação ao caso. “No momento não vimos nenhum problema, mas depois, vieram nos perfis das meninas dizer coisas como ‘quanto vocês cobram para serem açoitadas?’, muitas nem estão indo aos seus tabuleiros”, lamentou Rita.

Em um áudio compartilhado no whatsapp, Rita Santos diz que as imagens que circularam na internet prejudicaram não somente as dez baianas contratadas, “mas todas que vivem deste ofício e dependem dele para o sustento de suas famílias”. Ainda no áudio, Rita informa que registrou queixa na Delegacia de Crimes da Internet contra aqueles que fizeram usos das imagens das baianas sem autorização.

Saudades do passado

Rita Santos informou ao Correio Nagô que a indumentária era de baianas de acarajé, diferentemente de como circulou pela internet. Esta também foi a versão da aniversariante que, em comunicado, argumentou que não se tratava de uma festa temática, pediu desculpas a quem se sentiu ofendido e esclareceu: “nas fotos publicadas, a cadeira não era uma cadeira de sinhá, e sim de Candomblé, e as roupas não eram de mucama, mas trajes de baiana de festa. Ainda assim, se causamos uma impressão diferente dessa, peço desculpas. Respeito a Bahia, sua cultura e suas tradições, assim como as baianas, que são Patrimônio Imaterial desta terra que também considero minha e que recebem com tanto carinho os visitantes”.

Em nota postada no Instagram, a Vogue Brasil anunciou a ampliação das vozes dentro da equipe e a criação de um fórum formado por ativistas e especialistas que, juntos à redação, ajudarão a escolher as pautas e imagens da revista no intuito de combater “as desigualdades históricas do País. “Nós acreditamos em ações afirmativas e propositivas e também que a empatia é a melhor alternativa para a construção de uma sociedade mais justa”, destacou o comunicado da Vogue.

A secretária de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi), Fabya Reis, usou seu perfil no Facebook para questionar a produção da festa. “Não se pode admitir romantização, estilização ou até nomear a coisa de “alusão ao padrão estético” da época, para enfeitar uma festa no momento histórico presente”, publicou.

A secretária ainda ressaltou em seu texto que imagens como estas estão associadas com um passado marcado na história da escravidão. “Não foi apenas uma festa alusiva ao período colonial, pois aquela imagem nos arrasta ao horror da escravidão e a todas as suas consequências. Não se pode achar que homenagear ou aludir apenas ao campo estético retira o seu teor”, apontou Fabya.

Serviços afros

O caso colocou em questão os limites em que empresas e contratantes de serviços de decoração e recepção afros se esbarram com relação às imagens que resgatam a hierarquias entre raças. Para Gisele Santos, proprietária do Instituto Matamba que oferece serviços afros, como eventos corporativos e casamentos com temática africana, é importante não reforçar a violência contra as prestadores de serviço envolvidas no caso.

“Eu não culpo as meninas, elas estão ali para seu ganha-pão, infelizmente nosso povo ainda trabalha por questão de sobrevivência”, aponta a proprietária. Segundo Gisele, o Instituto Matamba já foi convidado para realizar eventos para festas somente com pessoas brancas e ter que passar por situações semelhantes.

“Em muitos momentos eles conservavam esses vícios de nos folclorizar, ainda percebendo nosso preciosismo para o que fazemos”, relata Gisele. Para a proprietária é necessário que haja atenção nas requisições do evento para evitar desconfortos com a história africana e da diáspora. “Nós trabalhamos com linguagens e atentas no que pode gerar má interpretação, por isso conscientizamos nossas recepcionistas”, enfatiza.

Ainda para Gisele, é importante que a equipe tenha o entendimento de todos os elementos que estarão dispostos no serviço, para isso costuma capacitar os prestadores antes do evento. “É importante fortalecer nossos argumentos como o ébano, que é uma madeira vistosa, mas consistente”, explica a proprietária.

As irmãs Gisele Matamba e Cecilia Cadile criaram o Instituto Matamba em 2011

Conhece o Instituto Matamba. Clique aqui na matéria do portal Correio Nagô

“Insensível, cruel e de mau gosto”

“Insensível, cruel e de mau gosto”. Estes foram os adjetivos utilizados pelo estilista e artista plástico, Renato Carneiro, proprietário da Katuka Africanidades, para definir a temática da festa ao portal Correio Nagô. “Há um caráter criminoso e perverso”, acrescentou.

“O que parece saudosismo de uma elite branca brasileira, de romantização deste período, não tem nada de inocente. Principalmente neste caso, pois a senhora em questão trabalha em um veículo de criação de imagens, que influencia mundialmente a sociedade através da imagem. São profissionais preparados para trabalharem com o simbólico e construírem cenas que reforcem formas de pensar e gerar desejos e quereres na sociedade. Não há como imaginar que pessoas como estas não tenham noção da gravidade que se coloca numa imagem como aquela: da centralidade da mulher branca e de reafirmação da subalternidade das mulheres negras. Não há inocência”, disse.

A diretora de estilo da Vogue Brasil*, Donata Meirelles, é casada com o publicitário baiano Nizan Guanaes

Renato condena ainda o que seria a tentativa de “perpetuação de um período específico da história brasileira, que é o período da escravidão. Este passado escravista que gerou tantos resultados nefastos deveria ser lembrado como um momento tenebroso da nossa história, como um genocídio do povo negro, um holocausto”.

Por outro lado, o estilista chamou a atenção para os profissionais sérios e comprometidos com a história do povo negro, que tentam fazer de outra forma.

“Existem profissionais hoje que trabalham no exercício de pensamento e criação que estão o tempo todo buscando novos referenciais estéticos e teóricos, que buscam paradigmas novos para reconstrução da história do povo negro, que fujam deste formato hegemônico branco, patriarcal, racista e sexista. Isso acontece não só no campo da moda, do pensamento e também da prestação de serviços”.

A Katuka Africanidades fica na Praça da Sé, Centro Histórico de Salvador

Cadeira e repercussão internacional

Um dos itens presentes na decoração da festa de aniversário de Donata Meirelles mais criticados nas redes sociais foi a cadeira, por ser uma elemento central nas religiões afro-brasileiras e na cultura africana.

“Mais uma tentativa de dessacralização de nossos bens maiores. Retiram do sagrado um elemento que é de suma importância para uma cultura, banalizam, assumem seu lugar de poder sobre um objeto histórico e dão tom carnavalesco e pronto”, descreve Renato Carneiro. De acordo ao artista, trata-se de uma tentativa de destruição das existências negras “de caráter criminoso que precisa ser combatido”.

Renato Carneiro disse que é importante a repercussão do caso para além dos serviços afros. Uma vez que a Revista Vogue alcança diversos países, é imprescindível que esteja preocupada. O episódio chegou aos Estados Unidos, onde uma executiva da L’Óreal criticou o evento. A diretora de Marketing da empresa, Shelby Ivey Christie, classificou como “repugnante” a festa. “Parece que a escravidão brasileira foi o tema. Mucamas [escravas de casa] foram colocadas como adereços ao lado de convidados”, descreveu Shelby.

Retorno material

A cantora e compositora Luedji Luna, em seu perfil no Instagram, cobrou um efetivo retorno para a Bahia por parte daqueles que declaram seu amor pelo estado e pela cultura do seu povo.

“Portanto, para os não baianos, os não negros, que tanto “amam” a Bahia, para esses que se curam nas nossas águas quentes, que se lambuzam inteiro dos nossos corpos, nosso dendê, nossa música, que saem daqui transformados, curados, com seus ebós feitos e banhos de folhas tomados, qual vai ser a devolutiva? Quantos empresários desses estão efetivamente investindo na Bahia? Cadê os empresários investindo nos blocos afros de Salvador, que entra ano, sai ano, nunca têm verba? Quantas artistas pretas baianas foram visibilizadas em suas revistas, e televisões? (…) Onde estavam cada uma dessas pessoas na defesa das religiões de matrizes africanas que tanto AMAM/USAM/ FOLCLORIZAM? Vcs podem substituir o “amor” de vcs pela cultura baiana, por RESPEITO, por exemplo. E dinheiro! Sim, dinheiro também!”

Texto: Marcelo Ricardo, repórter estagiário do Correio Nagô
sob supervisão de André Santana (jornalista DRT BA 2026)

*ATUALIZAÇÃO REDAÇÃO: Na noite do dia 13/02 circularam as primeiras notícias na imprensa do pedido de demissão de Donata Meirelles da Revista Vogue Brasil, na qual exercia o cargo de diretora de Estilo. De acordo com o portal Uol, Donata teria enviado uma carta a amigos próximos para anunciar a decisão. “Com tristeza no coração, mas com a coragem e a cabeça erguida que sempre pautaram a minha vida, inicio um novo ciclo e peço demissão da Vogue Brasil, uma publicação que ajudei a construir“, teria dito no comunicado.

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