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MULHERES NEGRAS: ESCREVER E PUBLICAR COMO UM ATO DE VIDA

[…] Tudo para as mulheres negras chega de uma forma mais tardia, no sentido de alcançar tudo o que nos é de direito. É difícil para nós chegar nesses lugares. […] Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar.  (Conceição Evaristo)

Faz um tempo que pesquiso Literatura Negra e, em especial, Literatura Negra Feminina. Nesse doce-amargo percurso marcado por descobertas extraordinárias e a necessidade de afirmação de um campo teórico-crítico, tenho lido uma variedade de textos; romances, peças teatrais, cordéis, antologias de contos e poesias, ensaios e artigos, todos produzidos por escritoras negras em diferentes lugares da diáspora. São vozes de mulheres nem sempre ouvidas, conhecidas ou reconhecidas pelas instâncias de legitimação (grandes editoras, crítica literária, canais de vendas e etc.). Uma Literatura feita à margem dos núcleos tradicionais do saber-poder que encara desafios históricos para se tornar visível.

De modo geral, tudo que elas escrevem me impressiona e me toca profundamente enquanto leitora e pesquisadora da área. A leitura do texto literário pressupõe um acordo tácito, uma aliança, uma relação de cumplicidade com seus leitores. Nossas vivências ou “escrevivências” se cruzam, se entrelaçam e, através da memória individual e coletiva, as autoras negras acionam um passado-presente comum entre quem lê e quem escreve.

Em suas obras, elas abordam temáticas que arrancam da arte novos regimes de interpretação e tradução de sentidos pela linguagem. Munidas de uma visão crítica, incitam à reflexão sobre as desigualdades existentes. Por conta de tal posicionamento, suas formas de pensar-agir representam um risco às instituições sociais que desejam manter os grupos subalternizados longe dos espaços de poder.

Satisfeitas com a hierarquização entre os grupos sociais e a organização do mundo, essas instituições também controlam os modos de produção e circulação dos saberes. Aceitam, recusam e legitimam obras e autorxs. Definem o que é arte e literatura. Elas interferem na criatividade e colaboram para manutenção de um mundo órfão de sensibilidade e delicadeza… Mundo tão iletrado de amor… Mundo também passível de reinterpretação.

Apesar dessas forças diminuidoras da potência de vida, nossas escritoras negras abrandam a nossa insatisfação humana mediante um composto de afetos que despertam, tais como: raiva, tristeza, alegria, humor, otimismo, revolta… Ao invés de ampliarem a nossa desesperança e descontentamento, de maneira resiliente, elas organizam as lutas do presente e inventam outras formas de vida totalmente diferenciadas dos modelos hegemônicos. Agenciam um devir mundo onde reina a imaginação livre e um olhar fértil, seja em prosa ou verso.

É uma escrita que incorpora elementos criativos na cena literária contemporânea, pois faz uso de uma linguagem dirigida por um discurso ficcional articulado pelo próprio sujeito que vivencia. Essa literatura tematiza os processos de subalternização sofridos por nós, mulheres negras, a partir da nossa perspectiva, ao tempo em que restitui a nossa humanidade violentada pelo sistema colonial. Além disso, por meio das personagens e de suas narrativas, pautam o debate racial num estilo contundente. Valorizam a ancestralidade africana, vislumbram desfechos com finais felizes para famílias negras e possibilidades afetivas reais para casais negros, entre outros.

Portanto, a literatura feita por mulheres negras na diáspora funciona como uma estratégia de resistência, de sobrevivência que inclui um potencial de revolução formidável. Essa resistência operada via discurso literário é um espaço da criação, da invenção, da experimentação, da ação ética, estética e política. É um modo de escapar a. Um modo de pensar-agir agenciado na perspectiva da diferença.

Dessa forma, embora não seja tão simples quanto parece, e, tampouco indolor, escrever e publicar se torna um ato de resistência política fundamental para as mulheres negras na diáspora, uma vez que coloca em circulação uma parte das ações políticas, éticas e estéticas aqui mencionadas.  

Expostas à violência sumária do racismo, do sexismo e da homofobia, nossas escritoras negras articulam/geram um conjunto de pensamento de vozes político-culturais, de sujeitos sociais dispersos e autônomos, que enfrentam os dilemas do passado e os problemas contemporâneos com bastante altivez.  

Escrevendo e publicando livros de diferentes gêneros, muitas vezes, com recursos próprios e escassos, nossas escritoras negras proclamam o direito à arte e à literatura por grupos subalternizados. Um direito de acesso à arte e à literatura que tem sido reivindicado, desde o século XIX, pela primeira romancista negra, Maria Firmina dos Reis (1825-1917), quando sob o pseudônimo de Uma Maranhense, ousou publicar Úrsula, em 1859.

Carolina Maria de Jesus sofreu duro processo de invisibilização.

Muito tempo depois, esse mesmo apelo também foi realizado pela escritora negra Carolina Maria de Jesus (1914-1977), quando publicou o seu primeiro livro 1960. Quarto de Despejo: diário de uma favelada vendeu mais cem mil exemplares, projetou Carolina internacionalmente, embora tenha sofrido um duro processo de invisibilização. Após o sucesso estrondoso do livro de estreia, Carolina, antes de morrer, publicou outras obras, algumas com recursos próprios: o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, ambos em 1963.

Um ato político, um ato de vida, um direito à arte e à literatura que a autora exerceu, consolidou e refletiu na obra Meu estranho diário:

[…] O livro… me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir… (Carolina Maria de Jesus, São Paulo: Xamã, 1996, p. 167).

Ao mesmo passo, Firminas, Carolinas, Autas e muitas outras escritoras negras, ainda desconhecidas de uma parte do público-leitor e da crítica literária, decidiram assumir os riscos e os desafios contemporâneos de escrever e publicar suas obras. Em tempos mais recentes, embora não haja estranheza quanto aos motivos, nossas autoras compreenderam a importância de escrever e publicar como um ato de resistência e, ao mesmo tempo, um ato de vingança de quem sofreu e ainda sofre uma invisibilidade imposta pelo mercado editorial brasileiro.  

Miriam Alves vivenciou experiências amargas com o mercado editorial – FOTO: SBischain

É o caso, por exemplo, da escritora negra Geni Mariano Guimarães que publicou o seu primeiro livro de poemas Terceiro Filho (1979) com recursos próprios. Geni Guimarães que iniciou a trajetória literária publicando poemas em jornais da cidade de Barra Bonita, no interior paulista, obteve projeção internacional e ganhou prêmios importantes na área de literatura, ao custo da venda de um fusquinha.

Outra trajetória assinalada pela resistência é a da escritora negra Miriam Alves. Em diversas entrevistas, a autora se recorda das experiências amargas com o mercado editorial brasileiro desde o começo da carreira. Após ter sido rejeitada por diversas editoras, segundo ela, por causa do conteúdo de seus poemas, Miriam conseguiu publicar seu primeiro livro Momentos de Busca (1983) também com recursos próprios. E outros tantos livros de maneira semelhante.

Para Miriam, “o mercado editorial é um campo muito complicado”. “O mercado editorial também é ideológico e difunde e cerceia o que é interessante para manter uma hegemonia cultural”. (ALVES, 2017, p. 293). Por isso, a cada livro novo que publica, Miriam exerce o seu direito à arte e à literatura. Ela coloca em prática o seu plano de vingança, a sua tática de guerra e da necessária sobrevivência pela palavra escrita. Tomo de empréstimo a expressão vingança da escritora negra Conceição Evaristo (2005) e interpreto como uma resposta aos danos e às perdas causadas historicamente, não apenas a um sujeito, mas a uma coletividade.

Quanto a Conceição Evaristo, uma das mais importantes vozes contemporâneas,  a autora recorda-se que precisou custear seu primeiro livro, Ponciá Vivêncio. A obra ficou guardada por vinte anos e a sua publicação individual, ocorreu somente em 2003, pela editora Mazza, um dos poucos canais de edição e venda de autorxs negrxs. De lá para cá, novos livros foram publicados e traduzidos para outros idiomas. Mas, apesar da repercussão nacional e internacional de sua escrita, o acesso ao mercado editorial ainda fica restrito às editoras especializadas.

Conceição Evaristo precisou custear o primeiro livro.

Por outro lado, Evaristo (2017) nos adverte em entrevista publicada em O Tempo Magazine que “temos que pensar na literatura como um direito. As classes subalternas têm que se apropriar da escrita e da literatura, pois ela não pode pertencer somente a determinadas categorias”.

Escrever e publicar… É um ato de vida.

[…] para nós, mulheres negras, escrever e publicar é um ato político”. “[…] Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar”. (entrevista concedida à filósofa e feminista negra, Djamila Ribeiro, publicada em maio de 2017, na Carta Capital)

Ao afirmar que escrever e publicar é um ato político, Conceição Evaristo considera que a literatura é um espaço de afirmação, negociação e legitimação dos discursos negros femininos. Compreendo também que esse enunciado remete a um aspecto ideológico e emancipatório do gesto. Revela a busca pela liberdade de expressão frente aos dispositivos de controle, de dominação e subjugação de corpos vulnerabilizados em contingências históricas. Nesse caso, o ato político é utilizado para expressar demandas e realizar outras formas de protesto social.

Escrever e publicar agencia uma força política de intensidades variadas. Logo, é um ato que traz conquistas expressivas para a coletividade. “A literatura negra, numa manifestação coletiva, surge da necessidade de escritores negros e escritoras negras serem autores e sujeitos da história”, acrescenta Miriam Alves (2017, p.290).

De fato, o ato de escrever e publicar traz conquistas políticas para coletividade de mulheres negras. Funciona com um instrumento de ação-transformação bastante radical na luta contra todas as possíveis configurações de preconceito, intolerância e discriminação.

Consequentemente, escrever e publicar é um ato poderoso de resistência que coloca em circulação fluxos de interesses, de desejos e necessidades das mulheres negras. Escrever e publicar pode representar “uma espécie de vingança”. “Um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança”. É um movimento maquínico realizado pela “dança-canto” que os corpos negros femininos executam com maestria e inteligência.  (EVARISTO, 2005, p. 202).

Finalmente, a escritora negra Esmeralda Ribeiro, organizadora dos Cadernos Negros (1978) e integrante do Grupo Paulista Quilombhoje (1980), reconhece que existe um cerco armado para impedir que as mulheres negras tenham acesso ao mercado editorial. Furar esse bloqueio não é uma tarefa simples. Como bem lembra Esmeralda, a escrita nasce “no ato de resistência”… Nasce da coragem de escrever palavra por palavra… para dar “visibilidade a um corpo negado na vida real”. (RIBEIRO, 2017, pp.276-277)

Relacionando a escrita à vida, Esmeralda afirma que escrever é como “respirar para viver”. Escrever sobre viver. Escrever e publicar “é um ato de vida”.  É o ponto de equilíbrio de nossa saúde psíquica e intelectual. Movimento em defesa da população negra. Escrever é como “antídoto” para que o racismo e o sexismo não nos matem. Um “antídoto literário que deve ajudar aqueles que respiram o gás nocivo a ter sempre esperança”. Escrever possibilita SER. SER por inteira: “mulher negra escritora”. (RIBEIRO, 2017, pp.276-277)

Mulheres, negras e escritoras…. Elas seguem firmes e fortes: Lia Vieira, Aline França, Alzira Rufino, Ana Célia da Silva, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Adún, Cidinha da Silva, Lívia Natália, Fátima Trinchão, Elisandra Souza, Mel Duarte, Rita Santana, Eliane Marques, Jarid Arraes, além de outras tantas vozes.

Assim, cem anos depois da morte de Firmina, entre custear ou compartilhar os custos, publicar de forma individual ou coletivamente, como fizeram trinta e sete escritoras negras na coletânea Outras Carolinas (2017), organizada pelo Mulherio das Letras da Bahia, nossas autoras transformam o cenário literário contemporâneo e confirmam que a “vingança” é uma estratégia de guerra bastante produtiva contra a exclusão.

Agora, em todo canto, fazemos de nossas vozes e escritas ecos da vida-resistência. Escrita, vida e libertação. Escrevemos e publicamos para dar sentido à vida, aos ensinamentos herdados e confrontar quem acreditou que nossas quartinhas secariam. Nossas quartinhas transbordam palavras…

O conteúdo desta coluna é de responsabilidade dX autorX.

Publicado em 02/11/2017, às 22:55

Mulher negra, moradora da Ilha de Itaparica, professora universitária e doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia-UFBA, onde é integrante do projeto de pesquisa Traduzindo no Atlântico Negro (2014). Desde 2003, dedica-se ao estudo da Literatura Negra produzida no Brasil, e, mais recentemente, no Caribe, sempre voltando a sua atenção para obras publicadas por mulheres negras. Fez parte do conselho editorial da Ogums Toques (2015-2016). É feminista negra, crítica literária e já atuou como avaliadora dos textos publicados na antologia Cadernos Negros (2011- 2014). Inspira-se na luta e na resistência de nossxs ancestrais. Acredita na força da ancestralidade que rege os nossos Odus (destinos) e escrituras… Da ação da palavra agindo sobre os nossos corpos negros.

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