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VISIBILIDADE: Trans mostram que outros arranjos familiares são possíveis

30/01/2019 | às 16h34 | Atualizada em 31/01/2019, às 18h39

Dados de obituário são ferreamente alarmados em cartazes ao lado de bandeiras pintadas em cores branca, azul e lilás, pela população de pessoas transgêneras e travestis. Para além das violência física, as violências no que tange às relações afetuosas são recorrentemente desconsideradas dentro e fora da sigla LGBTQI.

Na Semana da Visibilidade Trans, decorrente do último do dia 29/01 (Dia da Visibilidade Trans), o Portal Correio Nagô, conheceu a história de mulheres e homens trans, que além de subverterem ao gênero, reinventaram para si o conceito de família a partir das fraturas da consagrada família tradicional.

“Família é o renascer da minha alma e a âncora que me prende a este mundo”, é como define Melissa Gabriela.

Mesmo depois de ter retificado seus documentos, Melissa prefere ser chamada de Melissa da 28, nome que usava no início da sua carreira artística quando ainda morava na Rua Folha 28,  em nova Marabá, Pará. A acadêmica do curso de Direito e artista musical, compartilha a maternidade de Josué (3) e Akauê (1 e meio) com Raira, sua companheira.

Melissa conta que ela e Raira embarcaram na ideia de família depois de ficarem sem compromisso numa festa. “Nos conhecemos em uma festa e acabamos ficando, desta noite surge a gestação do Akauê. No início não conseguia acreditar que ele era meu filho, pois estava me hormonizando e passando por questões pessoais”, relata Melissa.

Plurais

Diferentemente do que se espera de uma família tradicional, o arranjo familiar de Melissa aconteceu sem programação. Josué é filho de outra relação de Raira e com a gravidez de Akauê, Melissa ainda era mãe de primeira viagem em meio ao processo de transição. “A maternidade é algo que não dá pra impor ou descrever, cada uma vive da sua forma”, ressalta Melissa.

Assim como a estudante, a pedagoga Tiffany Odara, tinha a ideia de ser mãe bastante marcada pela cisgeneridade (conceito referente àqueles que vivem em conformidade com o gênero designado em seu nascimento). “Vivemos em uma sociedade em que tudo é estruturado a partir de um homem cisheterossexual e uma mulher cisheterossexual”, afirma.

Além de mãe, é a sucessora do Terreiro Oyá Matamba (Portão), o que a torna mãe duplamente e vive dividindo o tempo entre a militância, sua casa e a família de axé. “Para mim, para ser família é preciso ter reciprocidade, carinho mútuo, troca de afeto e respeito”, argumenta.

“Não adianta eu dizer que sou irmã, prima de alguém que não vai ter respeito comigo”, aponta.

Tiffany conta ter enfrentado diversas questões por ter feito a transição, o que afastou do legado deixado por sua avó, Dona Detinha. Apesar de tudo, a família de axé continua firme e próxima a ela. “Orixá é amor, é respeito. Não temos porque manter tabus de Adão e Eva, mas pensar seres plurais como a natureza nos apresenta” , descreve.

Família transparentais

“Eu tenho um filho, um companheiro e estou me sentindo completa, não pelo que a sociedade impõe, até porque sou um corpo transgressor, mas por estar construindo uma família transparental”, declara Tiffany ao lado de seu companheiro e seu filho de 4 anos.

Família transparentais podem ser formadas por uma ou duas pessoas transexuais. A transparentalidade não se distingue da família tradicional, uma vez que a família tradicional também é formada por parceiros do gênero oposto, o que é diferente de famílias homoafetivas, sejam elas de gays ou lésbicas.

Para a mestre em Antropologia Anne Alencar, que pesquisou a transparentalidade para homens trans, o que mais chama atenção no assunto, é como os homens trans lidam com a gestação. “A gravidez é um signo tão associado ao feminino, mas estes homens não anulam esse momento da suas narrativas enquanto homens, eles faziam bastante associação aos cavalos-marinhos, em que os machos que gestam”, explica.

Em muitos casos, Anne percebeu que mesmo com relatos de serem rejeitados pelas famílias consanguíneas, alguns homens trans conseguiam permanecer a partir de estratégias criativas. “Certa vez quando estava em campo, a filha de um dos meus entrevistados escreveu um bilhete para ele no dia das mães que no cabeçalho estava ‘para papai’”, conta.

Outros finais felizes

Era uma vez, em uma barraca de pastel, localizada na Linha Verde. Lá, a estudante Yuna Vitória e o futuro estudante de Medicina Théo Brandon se viram pela primeira vez. Algum tempo depois se encontraram nos bastidores de um desfile que participaram, mas a história de amor entre os dois não acontecia.

Théo vive uma relação transcentrada com Yuna | Foto: acervo pessoal

“Talvez por coincidência, mas com uma certa culpa do fato de não nos enxergarmos enquanto possibilidade de casal, já que até esse momento eu não sabia que isso era possível”, relembra Théo que vive uma relação transcentrada com Yuna. “Só tive ciência de que pessoas trans podem se relacionar entre si quando a conheci na Transbatukada [Banda Artevista formada por pessoas trans]”, narra.

Para Théo, viver numa relação com outra pessoa trans é poder compartilhar e reinventar afetividades que costumam ser negligenciadas à pessoas trans. “Acredito que estar numa relação transcentrada é  importante até para se ter uma noção mais profunda de como os afetos são culturalmente direcionados para corpos cisgêneros”, aponta.

Théo evita falar de família biológica como comumente são rotuladas famílias organizadas por laços consanguíneos. “Não gosto da expressão ‘família biológica’, até porque Yuna é biológica, um ser humano como outro qualquer, e compõe a minha família. Em minha definição, é aquele núcleo que devotamos afeto e que podemos contar nos momentos diversos”, completa Théo.

Texto e reportagem: Marcelo Ricardo/Correio Nagô

Edição de Vídeo: Émile Brito/ TV Correio Nagô

Fotos, captação de vídeos, edição de texto e supervisão de conteúdo: Donminique Azevedo

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