A reação dos segmentos progressivos à entrevista de um pastor fundamentalista transformada em debate com alta audiência e enorme repercussão mostrou os equívocos e as limitações do enfrentamento direto. Se, por um lado, a “estratégia” aumenta a parcela da sociedade que rejeita os excessos do evangelicismo, por outro instiga os evangélicos a se verem representados naquela figura. O enfrentamento é importante para que a opinião radicalista não se imponha, mas é preciso escolher o alvo das críticas.
Quanto mais respostas e ridicularizações descontruíam o pastor, mais difícil era entender porque ele se tornara nossa referência negativa. Ou estamos sendo derrotados na luta pelos direitos LGBT ou estamos “elegendo” equivocadamente nossos adversários. É provável que ambos os fenômenos estejam acontecendo: ao promover um fundamentalista a inimigo digno de nos enfrentar, estamos levando ao recuo de nossa capacidade de argumentação e patrocinando derrotas nas disputas simbólicas e concretas.
Basta ver os termos em que o debate foi apreendido. No dia seguinte, o questionamento central era sobre a origem da homossexualidade – uma pauta com efeito ideológico auto-regressor (ela sugere um questionamento na diferença, ou seja, como se a homossexualidade tivesse causas em relação à sexualidade padrão, a heterossexual, que não precisa ser explicada como “norma” e como “normal”). Mais simbólico ainda: evangélicos que não se encontram nos espectros mais conservadores defendiam ardentemente seu novo líder na sua cruzada contra a jornalista que “atacava a religião cristã”, concordassem ou não com suas posições fundamentalistas.
A questão não era responder ou não à entrevista/debate: é fundamental impedir que o fundamentalista se estabeleça como opinião única. A questão é o método. A jornalista produziu a entrevista/debate em busca de audiência, e conseguiu. O pastor não teme o ridículo, pois seu lucro aumenta com a exposição e não com a veracidade dos seus argumentos. E os LGBT, ganhamos o que com isso?
Na ânsia de convencer os evangélicos da legitimidade da agenda contra a homofobia, muitos LGBT ampliaram os holofotes sobre o pastor fundamentalista. O resultado foi um convencimento ainda maior da sua representatividade.
Como isso aconteceu? Por dois motivos principais: o primeiro é a configuração especial da fé cristã; o segundo, a própria vulnerabilidade da luta LGBT.
Podemos imaginar como os evangélicos a receberam. A base central da argumentação religiosa é muito simples: ninguém pode provar que deus não existe. Você pode se perguntar: o inverso também é verdade, pois ninguém pode provar que ele existe. Mas esse raciocínio não é aceito para ambos os argumentos. A religião se baseia na fé, e a fé se sustenta exatamente no impossível. Significa dizer que religião e laicismo não partem do mesmo lugar e não disputam no mesmo patamar. Para ser mais claro: enquanto uma tese qualquer, científica ou exposta na mesa do bar, precisa de uma argumentação convincente, a religião cristã não precisa de nenhum embasamento para se estabelecer como verdade. Não é à toa que a principal (e geralmente única ) fundamentação que parte dos religiosos utilizam no debate pra justificar sua posição é que deus ou a bíblia o disseram.
Na luta contra o fundamentalismo evangélico, é preciso entender como ele funciona. A doutrina cristã é totalitarista, belicista e triunfalista: eles precisam criar uma oposição (demonizar), guerrear contra ela e vencê-la. Há muitas disponíveis hoje: a liberdade das mulheres, as demais religiões, o ateísmo e a novela das 8. Todos os mitos bíblicos opõem o bem ao mal, e sua influência é tanta que a demarcação ideológica ocidental dificilmente permite a compreensão de uma realidade onde não existam mocinhos e vilões.
Nessa limitada concepção binária e antagônica, a entrevista/debate é um prato cheio para o fundamentalismo evangélico. Equivale ao palco que as sessões especiais realizadas sobre o projeto de criminalização da homofobia jamais conseguiram oferecer. É a chance de dar um propósito para a fé em um combate contra o mal da vez, que seríamos nós.
Para os evangélicos, o resultado da “batalha” estava dado antes de começar. Mas não teria a mesma repercussão se o pastor não manejasse brilhantemente os mecanismos de manipulação discursiva dos seus fregueses.
Há outro motivo que dificulta uma vitória contra o fundamentalismo, por definição uma ideologia covarde. A Ku Klux Kan perseguia negros na época dourada do apartheid institucional e o nazismo se favoreceu do financiamento do capitalismo subjugado da Alemanha e, posteriormente, do poder do Estado. O fundamentalismo ruge porque pode, mas não contra qualquer um. Um exemplo claro é o alvo das recentes ondas de ódio religioso do fundamentalismo evangélico. Totalitarista, ele rejeita espírita e católica, mas o discurso promotor da intolerância está voltado às religiões de matrizes africanas. Habilmente, escolheram seus inimigos dos segmentos sociais mais fragilizados nas disputas sociais.
No mesmo patamar estão as mulheres e LGBT. As condições de um confronto direto não são favoráveis, como alguns de nós preferem pensar.
Em qualquer debate em que LGBTs “confrontarem” outro segmento social, estaremos fadados à derrota. Desde criança, as pessoas são alimentadas com uma carga de preconceitos contra LGBT – inclusive as próprias LGBT, que às vezes esquecem de tudo que precisaram descontruir para viver em paz consigo mesmas. O conservadorismo social emerge esse acúmulo anti-LGBT para a superfície, uma vez em confronto direto. A hegemonia heterossexual (alguns talvez prefiram heteronormatividade) não permite disputas abertas que possam significar perda de seu controle sobre os corpos e as sexualidades.
Isso significa, então, que não temos saída para a luta? Não, porque “luta” jamais significou “briga”, “confronto”, ou qualquer sinônimo de conotação belicista. Se há poder envolvido, qualquer confronto direto significa a derrota do mais fraco. Não importa quão justos sejam os argumentos em nosso favor. Mulheres, negros ou quaisquer segmentos sociais desfavorecidos não possuem chances reais de vitória em um confronto direto, seja no campo material ou ideológico.
A luta política costuma aludir às movimentações que buscam emancipação, superação, igualdade e outros ideais inclusivos. É uma luta, conquanto há outros setores da sociedade que se opõem aos objetivos do movimento, mas não um ringue aberto.
O movimento negro, por exemplo, sempre orientou os militantes a não debater com figuras como Demétrio Magnoli, que gritava e xingava seus interlocutores. Magnoli inflava a sua própria plateia, a parcela da sociedade predisposta a rejeitar as cotas, enquanto que os defensores precisavam argumentar pacientemente. O resultado era uma derrota flagrante. A orientação estava correta: as cotas hoje são apoiadas pela maioria da população brasileira, a mesma que já a rejeitou.
Estratégias de combate à hegemonia evangélica não devem focar no discurso deles contra LGBT. Antes, é preciso divulgar os crescentes escândalos financeiros, os crimes de extorsão e peculato e o enriquecimento dos líderes evangélicos. Os numerosos casos de pedofilia (os orfanatos evangélicos já começam a ser descobertos e combatidos) devem ser divulgados junto à condenação da hipócrita cruzada contra os direitos humanos e o desrespeito à liberdade religiosa. É importante, também, mostrar as passagens inaceitáveis da Bíblia, que sugerem a necessidade de interpretação dos seus fiéis. As igrejas inclusivas têm um importante papel a cumprir oferecendo guarida aos jovens evangélicos que não querem escolher entre a sua fé e a sua sexualidade. Tudo isso pode ser feito sem debates ou quaisquer confronto direto – nem a repercussão deles.
Os evangélicos estão dando passos largos a caminho do sectarismo. Os abusos e imposições têm sido sentidas pelo conjunto da sociedade. A escalada evangélica não parou: o número de evangélicos continua crescendo no Brasil. Mas está desacelerando e pode estar chegando ao pico.