26/09/2018 | às 9h43
Neste mês de setembro, o ator, dramaturgo, apresentador de TV e pesquisador Aldri Anunciação lançou o portal Melanina Digital (http://www.melaninadigital.com), um catálogo de dramaturgos negros disponível on line, reunindo a pesquisa realizada ao longo das cinco edições do Festival Dramaturgias da Melanina Acentuada, idealizado pelo artista.
Conversamos com o artista que acabou de receber o Troféu Candango de Melhor Ator pela atuação no filme Ilha, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, única produção baiana a concorrer na Mostra Competitiva do Festival de Brasília, o artista vem pautando a visibilidade do teatro e da dramaturgia negras produzidos no Brasil.
Confira a entrevista concedida à jornalista Donminique Azevedo, editora-chefe do Portal Correio Nagô.
DONMINIQUE AZEVEDO – Em 1944, no Rio de Janeiro, Abdias do Nascimento fundava o Teatro Experimental do Negro, protagonizando a discussão do negro no teatro e na dramaturgia brasileira. Pouco mais de 70 anos depois, o Festival Melanina Acentuada vem buscando visibilizar e fortalecer a dramaturgia negra produzida no Brasil. Você – enquanto ator, apresentador, dramaturgo e pesquisador – avalia que o racismo ainda é, em pleno século XXI, o principal produtor de invisibilidade (midiática e não midiática) da dramaturgia e da autoria negras? Por quê?
Ou seja, podemos sim dizer que o racismos é um dos responsáveis dessa invisibilidade. Mas penso também que uma das estratégias pra acabar com esse processo de apagamento pode ser a nossa atitude de catalogação e transmissão de nossa memória, olhando para nossos pares com atenção de pesquisadores. E isso pode ser uma poderosa arma de enfraquecimento do racismo.
DONMINIQUE AZEVEDO – Este ano, o conceito curatorial do Festival Melanina Acentuada buscou inspiração em Achille Mbembe. Quais intersecções você faz entre o Festival e a filosofia do pensador camaronês?
ALDRI ANUNCIAÇÃO – Narticulação e manipulação dos corpos negros pela administração pública. Essa é a grande intersecção de Mbembe e o Melanina Acentuada. Mbembe analisa a palavra negro a partir de uma perspectiva de conceito construído e definido pelo capital que a associa à valores que estão muito abaixo da base da pirâmide social. E esse lugar profundo está completamente mortificado fisicamente e simbolicamente nos seus valores mais humanos. A relação de Mbembe e o Festival se faz através de espetáculos que poeticamente se esmeram em separar a negrura desse lugar de morte legalizada. E o desafio de modificar sentidos forjados pelo poder do capital é uma tarefa árdua. E a dramaturgia e a ficção têm uma grande força nesse lugar, pois opera no espectador-cidadão através do prazer da arte. As ficções acessam lugares no indivíduo que o nosso mundo real prático e objetivo não consegue alcançar. Portanto trouxemos esse ano, espetáculos que conseguem promover esse ajuste de conceito da palavra negro, sem fazer com que as amarguras do discurso causem danos na linguagem e no prazer da arte.
DONMINIQUE AZEVEDO – Um dos homenageados do Festival foi Mário Gusmão que, apesar de ser um nome fundamental nas artes cênicas na Bahia e no Teatro Negro brasileiro, a história do ator ainda é pouco visibilizada, mesmo sendo o primeiro ator negro a se formar pela Escola de Teatro da UFBA, em 1960. Você acredita que as contranarrativas ao discurso estereotipado e estigmatizado são um importante passo para a restauração da história do negro em cena? Por quê?
ALDRI ANUNCIAÇÃO – As contranarrativas são importantíssimas. Principalmente quando elas conseguem surgir sem o enclausuramento da linguagem. Quando elas surgem misturadas por entre as narrativas consolidadas. Quando conseguimos inserir contranarrativas através dessa estratégia, não damos chances de preparação ao espectador. E dessa forma conseguimos acessá-los antes que sua cognição faça uso de qualquer preconceito ou esteriótipo. Assim, ele consegue fruir mais a obra e acessar os verdadeiros enunciados de uma escrita ficcional e consequentemente as nossas contranarrativas. A grande questão é como produzir estratégias e técnicas de fisgar o espectador nesse lugar distraído. E isso passa por nossas discussões de poética e de modos de escrita no Festival Dramaturgias da Melanina Acentuada. É um grande desafio dramatúrgico.
Por isso que acredito que a emancipação do negro e da negra no Brasil está se dando através da escrita. E quando digo, isso refiro-me a todas formas de escrita: dramatúrgica, romanceada, contista, cinematográfica, acadêmica, ensaística, jornalística…. Através dessa escrita podemos ressignificar a figura do negro e recontar nossa história e nossas referências… como a história de Mário Gusmão.