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A invisibilidade da cultura negra e periférica na capital baiana

Desafios e mudanças impostos pela pandemia

A cultura negra e periférica, assim como tudo referente ao negro no Brasil, carece de investimentos, tanto da iniciativa privada, quanto do poder público. O impacto na economia brasileira com a pandemia de Covid-19, teve proporções ainda maiores para esta parcela da população. Entre estes impactados estão os grupos culturais da periferia de Salvador, que nunca foram beneficiados por nenhuma política pública ou mesmo selecionados em editais. É importante ressaltar que a grande maioria destes sempre esteve à margem da sociedade, sobrevivendo de seu trabalho diário nas ruas ou em coletivos. Sem formalização profissional, e com visibilidade zero do poder público. 

A impossibilidade de ir às ruas no início da pandemia fez com que esta parcela da sociedade ficassem sem sua renda e lhes faltassem o básico: a alimentação. Destaca-se ainda que estamos falando de profissionais de diversas áreas na cadeia produtiva da economia e da cultura, gerando um efeito cascata em toda a sociedade. E o que mais dificultou foi catalogar tais profissionais, já que quando se fala em cultura, não estamos apenas falando de atores, cantores ou produtores, neste ambiente estão também os profissionais de iluminação, sonorização, entre outros. Não para por aí, ainda envolvendo este ambiente, não podemos esquecer daqueles que trabalham nos bares dos eventos,, além dos que fazem a segurança, a limpeza ou atuam como ambulantes nas entradas das casas de festas e espaços culturais. 

A Bahia sendo um celeiro cultural, famosa por suas atrações turísticas e culturais, o estado tem no turismo e nas festividades locais uma importante fonte de renda, tendo em vista, que a Economia Criativa representou  3,2% do PIB baiano no ano de 2018, porém grande parte dos profissionais do setor não possuíam nenhum tipo de registro. Em maio de 2020 a Prefeitura Municipal de Salvador lançou uma uma plataforma para cadastrar agentes culturais de Salvador, segundo eles o objetivo foi formar um banco de dados, para auxiliar a Fundação Gregório de Matos na ampliação de ações dentro das políticas culturais já desenvolvidas na capital baiana.

Com o objetivo de diminuir os impactos causados pela pandemia aos trabalhadores da cultura em todo país, foi criada a Lei n 14.017, em junho de 2020. A lei dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Em Salvador, a Fundação Gregório de Matos ficou responsável pelo edital, já que coube aos Estados e Municípios regulamentarem as responsabilidades de cada esfera na execução da Lei e definir estratégias para a gestão dos recursos, para movimentar a cadeia produtiva da economia da cultura e da economia criativa.

De acordo com a UNESCO, a pandemia impactou toda a cadeia criativa, que envolve criação, produção, distribuição e acesso à cultura. Pensando nisso, a UNESCO desenvolveu uma pesquisa sobre impactos da pandemia nos setores cultural e criativo. O principal objetivo da pesquisa foi dimensionar a crise provocada pela pandemia. O levantamento foi realizado entre julho e setembro de 2020, em todo o país, e contou com o apoio da UNESCO no Brasil, do Serviço Social do Comércio (SESC), da Universidade de São Paulo (USP), do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura e de 13 Secretarias Estaduais de Cultura, entre elas a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. 

Segundo a pesquisa da UNESCO, a economia criativa movimenta R$ 171,5 bilhões por ano, o equivalente a 2,61% de toda a riqueza do Brasil, o que gera 837,2 mil empregos. Antes da pandemia, esses segmentos culturais e criativos tinham previsão de gerar R$ 43,7 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB) até 2021. 

Espetáculo Encruzilhada, da Cia La Bagaça

Entre os beneficiados pela Lei Aldir Blanc na capital baiana, inscritos como artistas individualmente, ou grupos, produtores e instituições culturais, muitos que são da periferia de Salvador. Para muitos jovens da periferia soteropolitana, o contato com arte-educação inspira e salva vidas, este é o caso dos integrantes da Cia La Bagaça, que se encontravam na Casa Preta Espaço de Cultura, um casarão de quatro pavimentos da década de 20, um espaço cultural alternativo, no centro de Salvador, em atividade continuada há 10 anos. Jovens entre 18 a 24 anos, crescidos nas ruas, becos e vielas de bairros periféricos de Salvador, Mata Escura, Brotas, Mussurunga, Uruguai, São Caetano, Engenho Velho de Brotas, Águas Claras, Pero Vaz, Alto de Coutos, Calabar, e Castelo Branco, foram contemplados pela Lei Aldir Blanc, e tiveram recursos para desenvolver o espetáculo Encruzilhada.

Espetáculo Doú Alabá

O ator Sulivã Bispo, que se tornou conhecido através do personagem “Mainha”, em “Na rédea curta”,  também através da Lei Aldir Blanc, estreou Doú Alabá, lançado em junho deste anos, onde ele e a atriz Natalyne Santos interpretam divindades infantis das religiões de matriz africana e falaram sobre intolerância religiosa e a preservação dos costumes ancestrais afro-brasileiros. Na mesma época, seu parceiro Thiago Almasy, intérprete do personagem “Júnior”, em “Na rédea curta”,  lançou em julho “Via Láctea”, curta-metragem marca sua estreia como diretor de cinema. 

Os projetos contemplados abarcaram não apenas espetáculos, como os citados anteriormente, mas permitiram que o ensino de atividades culturais se multiplicassem, através de cursos e oficinas. Como foi o caso da ‘Oficina de Arte da Pinacoteca do Beiru para Crianças’, realizada no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-Bahia), no Solar do Unhão. O bairro do Beiru/Tancredo Neves está no miolo central de Salvador, uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia aponta que a região é formada majoritariamente por pardos (52,51%) e pretos (34,06%). A Pinacoteca do Beiru foi idealizada em 2015, pelo artista visual Anderson A.C, que transformou o lugar em um centro de compartilhamento de saberes. 

Oficina de Arte da Pinacoteca do Beiru

Esses são alguns exemplos de iniciativas negras e periféricas que tiveram apoio financeiro através da Lei Aldir Blanc. É necessário que hajam políticas públicas voltadas à cultura, principalmente à cultura negra e periférica, que permanecem à margem da sociedade em todo o país. Os processos precisam ser simplificados, para garantir o acesso dos que de fato precisam, dos que estão realizando trabalhos sem nenhum apoio, mas são responsáveis pelo primeiro contato de jovens com qualquer atividade cultural. 

Para a apuração desta reportagem, utilizamos a plataforma Querido Diário para consultar os diários oficiais do município de Salvador-BA, que continham informações sobre a Lei Aldir Blanc, no período de junho de 2020 a setembro de 2021. Foram localizados 17 registros. Querido Diário é uma iniciativa da Open Knowledge, que usa tecnologia para tornar os conteúdos dos diários oficiais dos municípios brasileiros mais transparentes e acessíveis à população. 

Valéria Lima
Jornalista / Mestre em Estudos Étnicos e Africanos

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