Daniela Mercury começa a enterrar a ideia de sair do armário
O amor não é seu
Não é meu nem de ninguém
O amor só quer amor
Não importa de onde vem
Não é mal nem é bem
O amor ninguém mandou
O amor não é meu
Não é seu nem de ninguém
(“Amor de Ninguém”, Jorge Papapa)
Basta colocar na balança o que produz mais efeito contra a homofobia: a saída do armário de Ana Carolina, as declarações pós-identitárias de Maria Gadu ou a declaração de amor de Daniela Mercury. Ana Carolina afirmou sua bissexualidade, seguida de um famoso “e daí”, em uma entrevista de uma revista de distribuição nacional, com críticas ao identitarismo e aos movimentos sociais. Gadu já reafirmou que não tem identidade, muito menos “e daí”, proclamando o fim dos “rótulos”.
É por isso que, a despeito da conjuntura política, há outro motivo para a declaração de Daniela ter ganhado toda essa repercussão: o ineditismo. Nunca antes na história desse país uma cantora divulgou fotos felizes ao lado de companheira, anexadas de declarações de amor, serenas como se não houvesse Feliciano. Além de Ana Carolina e Maria Gadu, Mart’nália, Zélia Duncan, Simone, Adriana Calcanhoto e até mesmo Angela Rorô mantêm seus relacionamentos longe dos holofotes. A exceção honrosa talvez tenha sido Cássia Eller, mas sua experiência familiar com a companheira só ganhou visibilidade após a sua morte e o imbróglio judicial pela guarda do filho.
Um aspecto que aparece nessas discussões é o direito à privacidade dos artistas. Concordo que a vida pessoal pouco deveria interessar aos fãs. Mas poucas revistas vendem tanto quanto aquelas que descrevem os detalhes do fim do relacionamento de Preta Gil, acompanham o dia-a-dia do casamento de Ivete Sangalo ou descobrem como a gravidez mudou a vida de Taís Araújo. E a heterossexualidade é compulsória nas redações que apelam para essa pauta.
Claro que existem muitos artistas heterossexuais que também não expõem sua vida pessoal, mas basta inverter a lógica para perceber que, estranhamente, todas as artistas lésbicas assim preferem. Parece muito aquela velha história dos familiares que sempre perguntam se a garota tem namorado: quando ela afirma que é lésbica, essa parte da sua vida é extirpada das conversas como se não a tivesse mais.
Ciente de que está surpreendendo o país, La Mercury afirmou que os fãs mereciam saber desse relacionamento como souberam dos anteriores. Porque haveria de tratá-lo diferente? Quem ama, em geral, quer gritar seu amor para o mundo inteiro ouvir. Respirar o amor, aspirando liberdade. Daniela exerceu todo o poder político do amor.
Ela afirmou que a nossa sexualidade e a nossa vida amorosa podem ser públicas. Nada justifica que sejam escondidas, secretas, alvo de fofocas, piadas. Nenhum demérito aos artistas que preferem a intimidade, é direito deles. A própria cantora ressalvou seu direito à privacidade – ela expõe o que ela quer, e apenas o que ela quer.
Naturalmente, a atual conjuntura ajudou muito para o fenômeno Daniela. Os tempos fervem quando a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal é presidida por um deputado com histórico de agressões a vários segmentos, especialmente LGBT. Para entornar o caldo, outra cantora havia defendido a cura gay. As fotos e as declarações de Daniela Mercury pareceram o antídoto certo, na hora certa, contra o veneno da homofobia! Era como se as imagens dissessem por si mesmas: essa pessoa parece precisar de cura? Tudo se encaixou, tudo passou a funcionar de verdade. Nenhuma afirmação de bissexualidade causaria esse efeito. Daniela exerceu o poder político do amor.
É nesse momento que algumas leituras pós-modernas profetizam que Daniela Mercury não contemplaria o movimento LGBT porque ela não afirmou qualquer identidade. Já dizia Marx, para usar uma referência que essa escola de pensamento execra, que a prática é o critério da verdade. Eu não trocaria milhares de declarações de bissexualidade de Daniela pela sua única declaração de amor por Malu. Não foi uma declaração militante, mas foi uma declaração política. Não foi uma saída do armário, mas foi uma afirmação identitária muito mais poderosa do que isso. Afinal, o que é identidade senão um conjunto de experiências?
O que a identidade menos precisa é de um nome. Quem precisa do nome é a dominação e a afirmação coletiva que confronta a dominação. Respostas coletivas e respostas individuais podem ser dadas a diferentes questões. O sujeito aciona a identidade como conexão ao coletivo, mas sua identidade é sempre única, indivisível e irredutível. Foi essa a autoridade que Daniela Mercury empregou: seu próprio nome. É ela que ama. É ela que tem nova inspiração para cantar. Ela fez questão de ressaltar a defesa das liberdades individuais da sua atitude. Seus fãs não precisam saber o nome do amor que ousa fazê-la feliz, e sim o nome da pessoa que ela ama. Oscar Wilde ficaria igualmente orgulhoso .
Se Daniela não afirmou que era lésbica, bissexual ou algo que o valha, tampouco ela desconstruiu as noções de identidade pelas quais os movimentos sociais se afirmam. Ela não parece autorizar debates acalorados entre queers e identitários, ambos sequiosos por uma reafirmação intelectual mesquinha e egoísta no momento em que uma ameaça maior exige um mínimo de unidade.
Até porque o movimento não é um exclusividade de uma identidade (que deve protagonizá-lo), mas um espaço aberto de todos que têm os mesmos objetivos políticos. Se Daniela não se preocupou em associar-se ao movimento LGBT, apresentando-se conscientemente ou não como sujeito de suas declarações, a cantora Gaby Amarantos é a aliada de primeira hora, que se junta à mobilização à pé e cartaz em mãos. E quem vai dizer que ela não pode porque é heterossexual? É a sua conterrânea homofóbica que precisa lidar com isso.
Claro que a lição também serve para quem acredita em uma noção puramente interpelativa da identidade. Aprenda: heterossexuais não precisam verbalizar sua identidade, por que não-heterossexuais precisam? Que armário é esse em que Daniela esteve sem saber? O armário é a própria heterossexualidade. No fundo, a ideia de sair do armário é apenas isso: uma assunção da não-heterossexualidade. O que se assume é o ônus da diferença, de não ser heterossexual. E, assim, legitima-se a heterossexualidade como identidade sexual que goza do status de normal, ideal, universal. Daniela está certa: ela não precisa “sair do armário” como se alguma vez tivesse se disfarçado ou mesmo se escondido em algum. Não precisa “assumir-se”, como se alguma vez tivesse se negado. A cantora informou que sempre teve relações lésbicas esparsas, mas a atual é duradoura e por isso a compartilhou. É necessário observar, porém, que Daniela goza de uma liberdade que a maioria das lésbicas e bissexuais não possuem, submetendo-se à proteção do armário opressivo da heterossexualidade compulsória.
La Mercury parece estar bastante equilibrada no trânsito, sem necessidade de afirmar-se em um espectro ou outro. Seus discursos sempre defenderam a liberdade sexual e ela jamais hesitou em demonstrar interesses amorosos no trio ou beijar cantoras no palco. Em sua arte que arde, é aquela menina cujo olhar deu bandeira e disse tudo que as palavras não conseguiram definir.
Se jamais precisou assumir uma identidade, não procede a interpretação corrente de que Daniela saiu do armário. Ela nunca esteve lá dentro. Daniela inaugura, no seu ambiente, o que as novas gerações não-heterossexuais têm experimentado até mesmo em famílias evangélicas. Elas não saem mais do armário porque não existe mais um armário ou, talvez, porque não cabe mais tanta fechação e sapateado lá dentro.
Larga de chorar
Vem cá pra rede
Esquece de uma vez esse medo
Não fique encucado
Dá-se um jeito
É que o amor chegou mais cedo
(Rede, de Alaim Tavares)