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ÁGUAS DE MARÇO: NÃO ESTAMOS À VENDA

02/04/2018 | às 19h30

Por Diosmar Filho*

Nesse diálogo venho com as águas de março em ato de liberdade, me remetendo à adolescência na querida Passagem dos Teixeiras (Candeias), quando as marés renovam a vida nos manguezais da Baía de Aratu, lá no fundo da Baía de Todos os Santos.

Tempos de caminhadas nos trilhos, apreender à nadar, vencer o medo do pulo no pontilhão e as nadadas contra as correntezas da maré profunda. Um corpo em movimento nas águas, nada distante dos ensinamentos recebidos pelas iniciadas(os) que vencem o racismo e se encontram com a ancestralidade Afro-Brasileira.

São movimentos de viver o sagrado e a liberdade nas águas, que em 2018, veio no frenesi do território da revolução ancestral altamente tecnológica Wakanda, no continente África, governada pela ancestralidade do Pantera Negra, uma ficção cinematográfica negra nos projetos da Marvel Studios – responsável por recordes de público e bilheterias nos cinemas mundo adentro.

Uma obra de representação da Mãe África com domínio da riqueza natural do presente e do futuro – mostrando que se as armas não-africanas, forem destruídas pelas mãos dos seus filhos africanos – o continente vencerá seus desafios internos contemporâneos. Interpretações, vivências, sonhos transportados aos territórios quilombolas – que afirma o passado, o presente e o futuro, nessa água, nessa terra, nesse país, nessa sociedade, nesse território, não outro – esse chamado Brasil.

Um território de desigualdades sociorracial, onde as águas de março – são recebidas com esperança (dos céus atendidas) pelos povos do semiárido nordestino para fertilizar com vida as terras secas da longa estiagem. E com lágrimas pelos sobreviventes metropolitanos da não previsão (omissão humana) – tempos de corpos negros e não-negros serem encobertos na lama e enrolados em lonas pretas.

As águas desse ano têm cor pelo alvedrio e pela covardia em diferenças e desigualdades, em quatro eventos; o primeiro a tragédia no Alto de São João – Pituaçú, Salvador (BA); o segundo a realização do Fórum Social Mundial na cidade do Salvador (BA); o terceiro o assassinato político da Ativista Negra dos Direitos Humanos Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, na Estácio no centro do Rio de Janeiro (RJ); e o quarto a realização do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) na cidade de Brasília (DF).

No dia 14/03/2018 a vereadora Marielle Franco foi assassinada em um atentado ao carro onde estava. Foto: Reprodução / Facebook

Em 13 de março as águas trouxeram lágrimas da não previsão para os moradores do Alto de São João em Pituaçú, Salvador uma cidade litorânea com quase três milhões de pessoas sem monitoramento climático efetivo. Sem alerta sobre eventos não normais, pancadas de chuva do adeus verão, naquela terça-feira, nos deixou sem Rosemary Pereira (34 anos) e mais três familiares, foi a notícia dos jornais do 14 de março, mais corpos negros rolam na lama da não previsão e fiscalização. Lágrimas de familiares, vizinhos e amigos, acolhidas na covardia do prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM) da capital baiana:

“infelizmente, sirva de exemplo e de alerta para outras famílias que eventualmente construíram imóveis de maneira irregular, sem seguir os padrões de segurança e de engenharia”.

Num espaço racializado gestores públicos se solidarizam, usando da tragédia para oprimir os corpos de quem não poderá se defender. São tornados vítimas pelo próprio pecado – já escolheram morar ou construir em locais de risco. E os gestores se isentam da responsabilidade pública de servir, afinal, mortos são negros, não são vítimas de tragédia são pessoas negras!

Em meio aos corpos soterrados pela omissão da previsão, inicia o Fórum Social Mundial (FSM), em 13 de março movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, acadêmicos, ativistas e militantes, celebravam a liberdades pela conquista dos lugares e territórios em um mundo globalizado. Com a chamada Resistir é Criar, Resistir é Transformar, o FSM tomou o centro da capital baiana com mulheres, homens, negros, povos indígenas, não-negros, gays, lésbicas, trans e travestis, gritavam palavras de ordem pela democracia e liberdade da pluralidade de gênero, étnica, política, religiosa e econômica.

Já não era o fórum do “Um outro mundo é possível” contra a globalização das transnacionais e da divisão internacional do trabalho – algo que Milton Santos tanto alertou, mais do resistir e transformar, mundializado que juntou na cidade negra diferenças.

E a hegemonia e o privilégio branco perdurou nas principais rodas do evento inter(nacional), a divulgação estampou o corpo da mulher negra, mas seus corpos foram colocados nos espaços periféricos das discussões, cabendo aos negros e negras construir suas agendas dando voz aos corpos, o que é mesmo resistir e transformar num mundo racista e sexista?

Pergunta não respondida pelo Comitê Internacional do evento, que se deu ao luxo de trazer o velho pensamento europeu (colonialismo), para nos ensinar como fazer nova epistemologia. Haja impermeabilidade intelectual, lembrava Milton Santos no Roda Viva (1997):

A impermeabilidade na vida intelectual brasileira (…) essa é a característica da intelectualidade brasileira, que também é um elemento de mediocrizacão. Que teria que romper rapidamente, se a gente quer rapidamente encontrar interpretações”.

E o dia 14 de março era marcado com ações importantes do movimento negro e de mulheres negras ao organizarem o: lançamento da nova edição do livro O Genocídio do Negro Brasileiro (primeira edição em 1978), de Abdias Nascimento (organização: IPEAFRO, Coletivo Luíza Bairros e PDRR da UFBA, ABPN, UNEB, Fórum Negro de Artes Cênicas, Odara Instituto da Mulher Negra, FOPIR, Coletivo Boca Quente, Sarau da Onça, Soweto Organização Negra e Biblioteca Abdias Nascimento do Subúrbio Ferroviário); o Fórum Permanente de Mulheres Negras: Avaliação dos 30 anos do Encontro Nacional de Mulheres Negras (organização: AMNB); o Tribunal Popular para Julgamento dos Crimes de Feminicídio contra as Mulheres Negras (organização: Rede de Mulheres Negras da Bahia).  

Um dia de luta contra o racismo e o sexismo, caminhava no respeito à memória negra da vida intelectual da escritora Carolina Maria de Jesus e do intelectual Abdias Nascimento, celebração!

Até começar circular notícias nas redes sociais, vinda da capital fluminense que a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), eleita por mais de 46 mil votos no pleito de 2016, tinha sido executada em um atentado na Estácio no centro do Rio.

E na manhã de 15 de março a indignação tomou conta de todas das pessoas, que em si sentiu as dores da execução de uma corpo negro cheio de vida, esperança, sonhos e projetos. A voz que buscaram calar na noite anterior foi de uma coletividade de mulheres, negras, lésbicas, mães, jovens, periféricas, faveladas, politicas, ativas, ativistas dos direitos humanos para uma sociedade humana.

Na manhã na capital baiana o chamado veio da Tenda do Povo Sem Medo, vamos marchar às dez horas, pela voz presente e por justiça ao assassinato de Marielle Franco e seu assessor Anderson Gomes, participantes do FSM marcharam por todo Campus Ondina da UFBA até as estátuas das “Gordinhas” na orla do bairro de Ondina e nas redes sociais uma mensagem mobilizava o mundo.

A cantora negra Elza Soares no Twitter escreveu:

Das poucas vezes que me falta a voz. Chocada. Horrorizada. Toda morte me mata um pouco. Dessa forma me mata mais. Mulher, negra, lésbica, ativista, defensora dos direitos humanos. Marielle Franco, sua voz ecoará em nós. Gritemos.

Já estamos em 17 de março e teve início na capital federal o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), não diferente todos ouviam o gritemos de Elza Soares, que chegou de vários cantos do país e tomou a Assembleia Popular das Águas contra a privatização das águas, dos territórios, dos corpos, com denúncias das violências e pelo direito da água, como ser vivo e da coletividade para efetivo direito humano, cada fala ecoava #MariellePresente.

Os espaços nesse março já não eram mais os mesmos.

No FAMA uma voz se somou a tudo que representa o corpo negro em movimento #MarielleVive – Oscar Oliveira militante das águas e integrante da organização pela emancipação dos povos em defesa do direito das águas para a vida, na “Guerra da Água em Cochabamba na Bolívia” reforçou o grito:

Parem de acreditar nas autoridades, passem a acreditar uns nos outros (…) Compreender que o poder não está acima, o poder está na parte de baixo (…) Nossa luta inspirou várias lutas no mundo, mostrando que é possível vencer o inimigo, por mais pequeno que somos.

As águas de março desse ano realmente não se repetirão, serão únicas, não teremos em vida na próxima água Rosemary Pereira, Marielle Franco e Anderson Gomes, vítimas da política pública de extermínio de corpos negros.

Gritemos por justiça, com a devida confiança em nossos corpos em movimento e voz de transformação, é preciso acreditar que a não previsão e fiscalização da prefeitura da capital baiana e as balas da Policia Federal, não estão desconectadas, são parte de um único projeto histórico no Brasil, o extermínio dos corpos negros em movimento – Gritemos!!!

Por Marielle Franco, pois nessas águas de março tomo a ousadia de chama-la de Kofoworola, nome Iorubá que significa: eu não comprei a honra com dinheiro. Sua vida não poderá passar na história sem ter justiça, honremos a filha da Maré que em movimento representou as Marés do Brasil – nossas águas e corpos não estão à venda!  

Relato das águas de março do ano 2018. #JustiçaParaMarielle

FOTO: Ismael Silva

  * Filho de Passagem dos Teixeiras e Soteropolitano, 38 anos, ativista do movimento negro, geógrafo, mestre em geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem como áreas de conhecimento: território, desigualdades, racismo e população negra. É responsável pela coluna Eta Mundo, no Correio Nagô.

O conteúdo desta coluna é responsabilidade do autor.

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