Home » Blog » Améfrica: de mãos dadas com minhas irmãs

Améfrica: de mãos dadas com minhas irmãs

Ao celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, festejo o meu reencontro e reconexão com outras irmãs pretas na diáspora. Estamos irmanadas e de mãos dadas.

Por Cristian Sales* Coluna Negras Narrativas

Escrevo inspirada em A categoria político-cultural de amefricanidade, de Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra brasileira (1935-1994). Cunhada pela antropóloga, nos anos de 1980, a categoria Amefricanidade propõe a abertura de caminhos epistêmicos e teórico-políticos para compreender/refletir a questão das mulheres negras em outros contextos diaspóricos. Para além do seu caráter puramente geográfico, a Amefricanidade (Amefricanity) me guia a “ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico”. (GONZALEZ, 1988b, p. 77, grifos da autora).

Do ponto de vista teórico-crítico, Lélia me orienta a buscar por histórias de las ancestras; recuperar trajetórias de insurgência negra; localizar uma produção de conhecimento assentada em saberes negro-africanos; assim como construir conexões com escritoras e intelectuais negras no Atlântico Negro.

Nessas travessias, nessa Améfrica de Lélia, entre idas e vindas, “no abismo do mar”, ressalta Édouard Glissant (1990, p. 1), conheci outras experiências diaspóricas, mas, sobretudo, constitui laços afetivos, estabeleci alianças ancestrais com diversas escritoras, ativistas, feministas e intelectuais que carinhosamente chamo aqui de irmãs pretas.

Em suas obras, os saberes e epistemes estão assentados na ancestralidade negro-africana e nas histórias de insurgência de las ancestras. Elas pensam, falam e produzem conhecimento a partir de um lugar que intitulo como negro assentado: da perspectiva de uma práxis intelectual negra assentada. Elas assentam cosmovisões, memórias, espiritualidades, vivências diaspóricas etc.

Mayra Santos Febres (Porto Rico), Yolanda Arroyo Pizarro (Porto Rico), Inés María Martiatu (Cuba); Sherezada (Chiqui) Vicioso (República Dominicana), Ylonka Nacidit-Perdomo (República Dominicana), Zaira Rivera Casellas (Porto Rico), entre outras, pensam, falam e afirmam que “nosotras estamos aquí hoy porque ha habido muchas personas que han sido silenciadas precisamente para que nosotras tengamos voz”. (SANTOS FEBRES, 2015, fonte eletrônica).

Nesses anos de pesquisa acerca da produção de intelectuais negras brasileiras e caribenhas, entre muitas trocas de axé, ouvi, senti e encontrei várias mãos estendidas à minha espera.

Influenciada por Lélia, a partir das experiências de mulheres negras na diáspora, busquei aproximar trajetórias e compreender as especificidades da América Latina e do Caribe. Mas, “buscar uma experiência histórica comum que exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada”. (GONZALEZ, 1988b, p. 77).

Na Améfrica, utilizar a metodologia comparada se distancia das propostas político-epistêmicas inauguradas por Lélia, uma vez que a pensadora sugere “reinterpretação e criação de novas formas que é afrocentrada”. (GONZALEZ, 1988b, p. 77).

Com suas localizações específicas, os discursos em narrativas de intelectuais negras caribenhas convergem em torno de um projeto político de “insurgência epistêmica”. (WALSH, 2008, p.131). Elas desejam evidenciar/denunciar os processos de silenciamento e apagamento dos saberes negro-africanos no Caribe hispânico (Cuba, Porto Rico e República Dominicana). Dessa forma, elas revertem o “epistemicídio”. (CARNEIRO, 2005).

Parte desse Caribe Negro carrega marcas inapagáveis da colonização e da herança da colonialidade até hoje. Contudo, as influências negro-africanas também sobreviveram e podem ser reconhecidas nos aspectos linguísticos, na música, na literatura, na dança, na cosmovisão etc. Na expressão dos corpos, das vozes, dos gestos, no ser e estar no mundo etc.

Mais do que um encontro, costumo dizer que foi um reencontro com las ancestras de vários lugares: “mujeres hábiles, astutas, muy despuestas para la batalla, muy orientadas… (PIZARRO, 2013, p. 29). “[…] se resistieron de manera activa y responderon frontalmente contra el sistema esclavista”. (PIZARRO, 2013, p. 29).

Em minhas pesquisas, foi possível dialogar com escritoras negras caribenhas que reivindicam visibilidade histórica para as nossas ancestrais (rainhas, guerreiras quilombolas, líderes cimarronas e espirituais); in(corpo)ram saberes negro-africanos nas suas obras literárias como tessituras; evidenciam histórias de insurgência negra, assim como destacam as estratégias de resistência de las ancestras na luta pela liberdade e emancipação. Desse modo, aqui cabe uma aproximação entre o pensamento de Lélia González e as ideias propostas por Geri Augusto (2016).

Lélia e Geri são duas intelectuais negras que me orientam a estabelecer alianças de ideias e de práticas; interações e acolhidas; a realizar reconexões diaspóricas com outras irmãs negras (intelectuais, ativistas, feministas, militantes etc.). Nessa Améfrica Ladina, “a língua não pode nos separar”.

Logo, ao celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, festejo o meu reencontro e reconexão com outras irmãs pretas na diáspora. Estamos irmanadas e de mãos dadas.

 *Cristian Sales é escritora e pesquisadora de Literaturas Negras Diaspóricas. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura – PPGLitCult. Este texto integra a Coluna Negras Narrativas. Publicado em 25/07/2020

Referências

AUGUSTO, Geri. “A língua não deve nos separar! Reflexões para uma Práxis Negra Transnacional de Tradução”. In: CARRASCOSA, Denise. Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador – Bahia: Ogums Toques Negros, 2017.

DAVIES, Carole Boyce. Mulheres caribenhas escrevem a migração e a diáspora. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 747-630, 2010.

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação [Excertos]. https://rebeldesistematico.files.wordpress.com/2016/11/a-barca-aberta.pdf/acesso em 23 de Julho.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, (jan./jun.), 1988b, p. 69-82.

PIZARRO, Yolanda Tongas, palenques y quilombos: ensayos y columnas de afroresistencia. Latoya Hobbs, Porto Rico, 2013.

RATTS. Alex & RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. 1ª. Ed. São Paulo: Selo Negro, 2010.

SANTOS FEBRES, Mayra. Sobre Piel y papel: ensayos. 2ª edición. Ediciones Callejón, 2010.

WALSH, Catherine. Interculturalidade, plurinacionalidade e descolonização: as insurgências político-epistêmicas de refundar o Estado. Tabula Rasa, Bogotá – Colombia, n. 9. p. 131-152, jul./dez. 2008.

scroll to top