A proposta de limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal ganhou força entre os parlamentares e tem sido capitaneada pela bancada evangélica sob ameaça da própria laicidade do Estado brasileiro, mas parte expressiva da sociedade e dos juristas a defendem sob o argumento do “ativismo judicial”. O conceito de ativismo judicial empregado nos debates políticos não é o mesmo que a doutrina jurídica convencionou, relacionado à discricionariedade de decisões judiciais para acelerar, travar ou reverter mudanças sociais. Confunde-se essa noção com fenômenos recentes de judicialização da política e exposição midiática do STF. E a confusão de interpretações alia distintos interesses na tentativa de limitar a autonomia do Poder Judiciário, pondo em risco o equilíbrio dos três poderes.
De todas as queixas, talvez a mais procedente seja de “judicialização da política”, na qual o Judiciário tem sido conclamado a dar a palavra final sobre qualquer disputa de interesses que antes eram resolvidos no debate público. Tal fenômeno é confundido com o ativismo judicial porque enseja críticas a certa ingerência nas funções dos demais poderes. Mas se trata de uma tendência mundial, e as forças políticas só recorrem ao STF porque as democracias têm sido ineficazes na criação de mecanismos de solução dos conflitos. Um exemplo de judicialização da política é o impasse criado em torno da destinação dos royalties do petróleo, somente “resolvido” após a via judicial.
Outro termo adotado para explicar o ativismo judicial, esse um tanto pejorativo, é “politização do judiciário”. Parece-nos mais adequado para as acusações de setores da esquerda que apontam abusos no julgamento da ação penal 470 – o chamado “mensalão”. Os ministros podem ter excedido o limite de inovações jurídicas no processo e alguns ofenderam o princípio da segurança jurídica ao propor a prisão dos réus antes da sentença transitada em julgado. Foi com base nesse argumento que o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI) propôs emenda à Constituição para submeter ao Congresso as decisões do Supremo Tribunal Federal.
O julgamento da ação penal 470 também garantiu generosa exposição midiática do STF durante as eleições municipais de 2012. E até mesmo setores do meio jurídico comemoram a “aproximação” com a sociedade, embora sequer citem as propostas de superar a hipocrisia da neutralidade política do Judiciário ou eleições diretas para a composição da corte. Ser “popular” seria estampar a capa da revista e a manchete do jornal. No entanto, a exposição na imprensa é politização do judiciário, um excesso de ativismo judicial.
Pode-se inferir que o resultado concreto disso é certo recalque do Congresso Nacional, que costuma protagonizar as pautas negativas na imprensa e se sente deslocado do centro do poder. Lembremos que o próprio Congresso se desprestigia: a já citada lei dos royalties, por exemplo, fere aquele mesmo princípio constitucional da segurança jurídica tratado acima, ao obrigar a reversão de contratos já firmados pelos estados, motivo alegado pela ministra Carmem Lúcia para suspendê-la. Justa ou não, aumenta a simpatia de deputados e senadores pela pretensão de dar maior importância ao Congresso.
O ativismo judicial não é tão negativo quanto seus detratores veem. Exemplos concretos podem ser conferidos nas decisões anteriores ao processo do mensalão. O Supremo Tribunal Federal (STF) protagonizou algumas das atualizações mais importantes para o ordenamento jurídico do país nos últimos anos, como a liberação da Marcha da Maconha e das pesquisas com células-tronco, a descriminalização da interrupção da gravidez de anencéfalos, a constitucionalidade das cotas raciais e o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Logo mais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovaria o próprio casamento homoafetivo.
As respostas positivas do STF e do STJ a demandas sociais, para os setores mais reacionários, relaciona o Poder Judiciário com o movimento social. O ativismo judicial ganha outra conotação: significaria uma atuação da corte como “ativista”. Apesar de retomar o sentido original do termo, a confusão é um abuso de pobreza cognitiva para combater os movimentos sociais.
Não é à toa que o projeto do deputado Nazareno Fonteles, que é católico, foi abraçado justamente pelo deputado tucano João Campos (PSDB), uma demonstração inequívoca de que os interesses da bancada evangélica estão acima dos estranhamentos partidários. O mesmo João Campos é autor de outra Proposta de Emenda à Constituição (PEC), desta vez para estender às entidades religiosas a possibilidade de contestar a constitucionalidade de decisões que lhes interessem. Ambos os projetos precisam ser analisados com muita acuidade para evitar julgamentos apressados, que têm sido comuns na imprensa, para o assombro dos movimentos sociais. Mas é irônico que a bancada evangélica queira impedir o Judiciário de legislar quando ela mesma já impede o Legislativo! Basta verificar o esvaziamento da atualização do Estatuto da Família e o impasse em torno da inclusão de LGBT no Estatuto da Juventude.
Os excessos do ativismo judicial, em sua concepção original, têm sido necessários, urgentes e importantes para a sociedade, mas não são positivos para a República. Indicam que o último poder ao qual a sociedade deve recorrer está assumindo um papel que não lhe cabe. Há um princípio do direito chamado de “inércia jurisdicional”, que só permite a ação do juiz quando provocado. Mas têm sido tantas provocações que o Poder Judiciário se pronuncia sobre tudo. E fica nítido, pela análise de todas as situações verificadas acima, que o principal responsável é justamente o Poder Legislativo ─ e, por tabela, o Executivo ─, que não consegue tomar as decisões que lhe competem. A isso, o ministro Ricardo Lewandowski chamou de “inércia legislativa”.
A dinâmica social deve ser acompanhada pelas leis produzidas no Poder Legislativo, implementadas pelo Executivo e, na aplicação indevida ou ausente, garantida pelo Judiciário – portanto, o último dos três poderes a se manifestar. Incapaz de adaptar o ordenamento jurídico para responder às mudanças que o país experimenta concretamente, o Congresso é o principal responsável pelo ativismo judicial que ele agora quer limitar mesmo sob o risco de parar o país ─ ou até forçar um retrocesso. Os parlamentares dariam uma contribuição maior à sociedade se reagissem às interdições, superassem a inércia legislativa e aprovassem os avanços legais que o país precisa.