Redação Correio Nagô – A ativista e produtora afroamericana, Mable Ivory, soltou no último dia 30 de outubro uma carta aberta para o presidente da rede ABC News, Ben Sherwood, sobre uma matéria preconceituosa em relação as favelas brasileiras. Na carta, a fundadora da empresa Ivory Global, focada promoção do Brasil questiona a reportagem intitulada “Guerra no Paraíso: Por Dentro das Violentas Gangues de Droga do Rio” por não mostrar um outro lado mais positivo das vida favelas cariocas. Leia o documento na íntegra:
Carta aberta ao presidente da ABC News, Ben Sherwood
30 de outubro de 2013
Prezado Sr. Sherwood,
O Halloween está chegando, e achei sua recente matéria intitulada “Guerra no Paraíso: Por Dentro das Violentas Gangues de Droga do Rio” (http://abcn.ws/1gjeQwa), sobre drogas e crime nas favelas do Rio de Janeiro, bem assustadora. Fiquei chocada ao ver a imagem de um garoto de 14 anos de idade sob o efeito do crack, pedindo a seus repórteres mais dinheiro para comprar drogas. E me apavorou o fato de seus câmeras serem ameaçados de sequestro e assassinato pelo chefão do tráfico, que controla a favela.
O vídeo foi postado na página do Facebook da minha amiga Daiene. Ela mora no Complexo do Alemão, uma das favelas do Rio de Janeiro, onde é repórter d’A Voz da Comunidade. Notei que a ABC News realizou uma nova série sobre as favelas violentas do Rio; em uma história, a âncora Diane Sawyer abre a matéria dizendo: “Milhões de visitantes virão em breve ao Rio para a Copa do Mundo e Olimpíadas. O que o país fará em relação ao perigoso círculo do inferno que povoa as colinas?” (Clique aqui para acessar a matéria completa: abcn.ws/H2n9Mt)
Se o objetivo dessa série era assustar o público norte-americano e o fazer sentir que o Rio de Janeiro é um lugar perigoso fora do centro turístico da Zona Sul e belas praias de Copacabana e Ipanema, você conseguiu.
Se a ABC News é uma organização jornalística verdadeira… Eu já posso prever a resposta que receberei – você provavelmente dirá que o objetivo da ABC News é dizer a verdade (não importando o quanto assustadora ela seja), e que seus repórteres têm muita integridade e compromisso com o verdadeiro jornalismo, e que relatam os fatos conforme vão descobrindo novas informações.
E eu acharia sua resposta justa. Afinal de contas, eu gosto da ABC News. Amo a Robin Roberts e a Diane Sawyer. George Stephanopolous e eu nos formamos juntos no ensino médio, na mesma escolar, em Cleveland, Ohio.
No entanto, e se eu te dissesse que você contou só meia verdade, e não a verdade inteira? E se eu dissesse que sua matéria é muito tendenciosa, mostra apenas um lado da história e dá a falsa impressão de que todos os residentes do Rio de Janeiro que vivem em favelas são ou drogados ou vítimas de gangue e da violência da polícia?
Você sabia que uma em cada cinco pessoas no Rio de Janeiro mora em uma favela?
O dicionário Webster define favela como “um conjunto de moradias perto de uma cidade, especialmente no Brasil; área de moradias pobres.” As pessoas que moram nessas favelas denominam a área de comunidade.
Sei que houve um tempo em que a mídia jornalística fazia matérias no meu bairro, Harlem, em Nova Iorque, e o chamava de “favela”. Aposto que se a ABC News fizesse uma nova matéria hoje em dia sobre o Harlem e o chamasse de “favela”, o reverendo Al Sharpton e pelo menos uns de seus 100 amigos bateriam em sua porta pedindo uma explicação. Mesmo antigamente, quando o Harlem passou por uma epidemia de crack e chefes do tráfico dominavam a região, nós, moradores, mantivemos uma história cultural muito rica. Alguns dos principais líderes e artistas da América do Norte cresceram no Harlem – Malcolm X, Thurgood Marshall, Alicia Keys, Harry Belafonte e muitos outros.
Portanto, não seria lógico que os 20% da população do Rio de Janeiro, que vive em favelas, é formada de vítimas indefesas da pobreza?
Se você tirar uma foto de como a ABC News está retratando o Rio de Janeiro e a examinasse, iria notar que quando as praias da Zona Sul são mostradas, estão lotadas de residentes brancos e turistas. No entanto, quando você parte para as favelas, notaria mais pessoas negras ou morenas, que se parecem comigo (sou afro-americana). A figura da Zona Sul é a imagem das pessoas brancas, que estão se divertindo em uma linda praia; e a favela é a imagem dos negros e pardos, que são pobres, sem esperança e desamparados – alguns dos quais são criminosos ou viciados em droga.
Eu sei que seus jornalistas têm apenas cerca de 10-20 minutos para fazer uma matéria, e não é possível mostrar tudo. Mas você realmente acredita que a ABC News está mostrando toda a verdade sobre uma população de um milhão ou mais pessoas, que vivem nas favelas do Rio de Janeiro?
O lema da ABC News é “Veja a imagem inteira”. Posso sugerir que vocês mostrem a imagem inteira aos telespectadores? Há alguns dias atrás, um canal brasileiro chamado R7 fez uma matéria emocionante sobre um grupo de meninas da favela do Morro do Adeus, no Rio, as quais estão estudando balé com recursos limitados (veja o link:bit.ly/192uHtE ).
Vocês poderiam também fazer uma matéria com meu amigo Rene Silva, líder na comunidade do Complexo do Alemão, uma favela no Rio, e fundou d’A Voz da Comunidade quando tinha apenas 11 anos de idade. Rene foi recentemente apresentado na The Guardian como um dos seis adolescentes que estão mudando o mundo (veja o link: bit.ly/19dNEbN )
Há inúmeros exemplos de pessoas boas e progressistas que vivem nas favelas do Rio de Janeiro, que estão lutando para que suas comunidades sejam um lugar melhor. Ficaria encantada em levar o Dan Harris e sua equipe de câmeras para fazer um tour no Rio e conhecer esse pessoal. Tenho esperança que da próxima vez que a Diane Sawyer fizer uma matéria sobre uma favela do Rio de Janeiro, ela a chamará de outra coisa que não seja “perigoso círculo do inferno que povoa as colinas”.
Atenciosamente,
Mable Ivory
Advogada de assuntos do Brasil e Estrategista
www.mableivory.com
