Por Diosmar Filho[1]
Foto: Periferia em Movimento
O ano de 2016 não pode ser analisado descolado das relações socioespaciais no Brasil com a população negra, devido seu voto democrático ser usurpado numa “legalidade” jurídica-parlamentar, conspirada por racistas e sexistas ocupantes do Congresso Nacional – teoricamente a ‘Casa do Povo’.
E nesse campo, as reações ao crime precisam saltar das formas de agir do Estado brasileiro no que é belo e no que é feio pela polidez colonialista, para análise das condições sociais, políticas e econômicas entre negros e brancos colonizados. O alerta se embasa no diálogo com Frantz Fanon no clássico Os Condenados da Terra que ajuda a compreender mentes intelectuais dos que desejam olhar o Brasil como parte do mundo culturalmente descolonização.
O autor traz questões sobre o reconhecimento da cultura nacional, contextualizando que o desejo do colonizado em romper com o colonialismo deve fugir de teorias que os leve ao encontro da barbárie, porquê:
Diante do intelectual colonizado, que decide responder agressivamente à teoria colonialista de uma barbárie anticolonial, o colonialismo vai reagir pouco (…) pois as ideias desenvolvidas pela jovem intelligentzia colonizada são amplamente professadas pelos especialistas metropolitanos. (2005, p. 242)
A explicação é que a cultura nacional a ser realizada no território só é possível, se o princípio for à distância intelectual do colonialismo, que o faz antônimo da cultura hegemônica ocidental — transformado em bárbaro.
Essa precisa ser a concepção intelectual para negras(os) que se emancipam da metrópole e do território do colonialismo sustentado na minoria branca. Isso porque, no território institucionalizado Brasil, a equidade no espaço político só foi possível com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece o racismo como crime inafiançável e intolerável aos padrões da civilidade democrática.
Buscar no momento refletir sobre emancipação é quase que beber água salobra, pois o intelecto dos colonizados entrou em alta frequência, mas precisam atender as questões para reconhecimento das identidades individuais e coletivas em escalas diferentes do lugar ao continente ao mundo, e, portanto, todos os grupos humanos estão diante da encruzilhada humanística, ponto ancestral para a população negra e não negra — possível do princípio, do meio e do fim na caminhada.
O Brasil alcançou a encruzilhada humanística quando 53% da população entre os 204 milhões de habitantes – mulheres e homens se declaram negras(os), constituindo assim o mundo negro. Seguindo Fanon (2005), esses buscam agora o projeto nacional, melhor explicando, esses desejam um projeto de Nação que faça do mundo negro o Brasil.
E na encruzilhada se sentou a cultura nacional. A luta dos colonizados para reduzir as desigualdades raciais e sociais no território subdesenvolvido foi ao limite do colonialismo que se reorganizou e atuou com todos os meios para desarticular o projeto em curso, usando do seu maior legado o economismo neoliberal na sua essência mais perversa, pois:
Nas primeiras reinvindicações, o colonialismo finge compreender, reconhecer com uma humildade ostensiva que o território sofre de um subdesenvolvimento grave, que necessita de um esforço econômico e social importante. E, efetivamente, acontece que certas medidas espetaculares, frentes de trabalho abertas aqui e ali, atrasem por alguns anos e cristalização da consciência nacional. (FANON, 2005, p. 240:241)
O colonialismo violenta o mundo negro no Brasil com o golpe no Estado Democrático de Direito – com o rompimento do mandato da presidenta Dilma Rousseff em 12 de maio de 2016, um ato contra o maior compromisso desse com a população negra – a implementação da Década Internacional dos Afrodescendentes da ONU[2] (2015-2024).
Pela Década no nível nacional se deve efetivar o Plano de Ação com políticas públicas de combate ao racismo, ao sexismo e as intolerâncias correlatas, atendendo em particular às mulheres, meninas e à juventude negra (masculina) com: o Reconhecimento; a Justiça; o Desenvolvimento; e Discriminação múltipla ou agravada.
Golpeada a democracia, os espaços de disputa e conquista somem para o mundo negro na defesa do Plano, devido à supressão vergonhosa do maior direito democrático do povo, seu voto! O que deixou em vulnerabilidade os seguintes compromissos do eixo desenvolvimento do Plano para Década: Direito ao desenvolvimento e medidas contra a pobreza; Educação; Emprego; Saúde; e Moradia.
Pois bem, o que se viu entre 2003 e 2015 no Brasil, foi o primeiro esforço histórico envolvendo o movimento negro e de mulheres negras com a recepção do Estado brasileiro das denúncias e reivindicações, para construção e efetividade de políticas públicas afirmativas e de promoção da igualdade racial frente à desigualdade estrutural entre pessoas negras, indígenas e brancas no território nacional.
No processo se alcançou direitos diretamente no campo da justiça, educação, saúde, emprego, trabalho e renda, moradia e acesso à terra pela regularização fundiária no campo e na cidade.
Os avanços têm impacto na estrutura racial do país, dos quase 130 milhões de habitantes (na miséria, extremamente pobre, pobre e classe média trabalhadora) contemplados pelas ações do Estado são majoritários do mundo negro e isso não se afirma em estatísticas ou compromissos universais – isso só é possível por decisão política de governos com mandato dado pelo voto direto do povo.
Por tudo, o golpe é um crime contra o mundo negro e contra a Década capaz de mudar estruturas e formas do Estado racista e sexista, que quartelou pelo economismo neoliberal os programas e projetos estruturados no: Plano Nacional de Educação (2014/2024); Sistema Único de Saúde (SUS); Programa Nacional de Reforma Agraria (PNRA); Sistema Nacional de Assistência Social (SUAS); Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Sistema Nacional de Cultura (SNC); Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS); Política Nacional de Valorização do Salário Mínimo; Lei de Cotas Raciais e Sociais nas Universidades Pública e Serviço Público; e a legislação do Micro Empreendedor Individual (MEI).
As conquistas estão vulneráveis diante do golpe, por consequência o sucesso e efetividade da Década Internacional do Afrodescendentes da ONU no Brasil.
A superação do processo político não ocorrerá sem a crítica ao que foi construído pela frente de esquerda e progressistas, que possibilitou um retorno tão rápido do colonialismo ao centro do poder político do país, já que do econômico nunca saíram e os últimos 15 anos são de pleno sucesso aos mesmos.
Os debates tomam as redes sociais e as ruas – o conjunto da sociedade progressista diz não ao Golpe. No entanto, o mundo negro precisa ser convocado de forma contundente e firme contra esse legalizado crime, já que os Poderes Legislativo e Judiciário abandonaram a Carta do Povo – a Constituição Cidadão de 1988.
O mundo negro tem 515 anos de luta por um Estado com estruturas e formas humanísticas, derrotado sempre pelo colonialismo e colonizados que mergulham na barbárie como análise socioespacial, assim, fica como questão ao campo de luta aberto e sem volta até que a justiça apareça: a frente de esquerda e progressistas de hoje e ontem no poder político compreendem que o verdadeiro projeto de Nação no Brasil é o Mundo Negro?
[1] Geógrafo, professor, ativista do Movimento Negro. e-mail: ptfilho@gmail.com | Twitter @etamundo
[2] Organização das Nações Unidas