Por Pedro Caribé*
Tenho tantos amores e ódios pregressos com Carlinhos Brown que este último, de saudar a princesa Isabel como nossa libertadora, nem me abalou tanto.
Brown é o cara que elevou a percussão a outro patamar dentro do mercado da música. Desconheço alguém que ganhou tanto dinheiro no país tocando tambor quanto ele. Percussionistas costumam ganhar merreca até hoje.
Desde os primórdios do axé music sacou que estava no meio de um negócio. Sobrevive há três décadas enquanto vários brancos decaem, e pretos nem se elevam. Poderia ser mais um preto mal pago, silenciado ou domesticado, geralmente por mulheres brancas produtoras.
Mais que conhecer o tambor, percebeu que os brancos são tão ruins, que precisam de composição. Podem ter camisa, abadá, mas sem criação, não vão pra lugar algum. Tudo bem, dizem às más línguas, e não são poucas as que pesam contra ele, que não se sabe se ele criou tudo aquilo e talz.
Porém, Brown, como todo empresário da música, a exemplo de Luiz Gonzaga, sabe que a autoria também é um negócio e o “autor” não se resume à punhetagem do modelo francês de criação.
A sua mais conhecida autoria, a Timbalada, veio um impacto sobre ser negro em Salvador e qualquer outro lugar na década de 1990. Patrícia e Xexéu foram sexy symbol de uma época. Uma relação altiva diferente com o corpo, sofisticada, digital, massiva e tribal, fugindo de uma disciplina puritana do corpo negro no cenário que adentrou da world music.
No mesmo The Voice, Brown, volta e meia louva à ancestralidade africana, traz crianças e adultos pretos, cheios de insegurança, para uma referência de fortaleza e compreensão.
Ele também acolheu o corajoso projeto de animação em stop-motion, Òrun Àiyé (2016), dirigido e produzido por Cinta Maria e Jamile Coelho. Ele abriu o seu estúdio, cedeu a trilha sonora, gravou a voz e ainda deu conselhos sobre direitos autorais, algo que vem salvando as cineastas de tentativas de plágio.
Brown faz isso tudo a partir do tambor. Não se esqueçam. Um instrumento basicamente de origem africana no país que o levou a compor para filmes da Disney, e ser peça chave no diálogo do país com o mundo nas Olimpíadas e na Copa do Mundo – a torcida do seu time, o Bahia, cansada de ser humilhada pelo Vitória, fez o papel de acabar com sua grande jogada de direitos autorais: plagiar um caxixi antes que um branco fizesse. Perdeu bilhões no gramado da Arena (ex) Fonte Nova.
Mas Brown tem horas que parece preso a um branco, principalmente aos burros da elite baiana.
Sempre celebrou toda a desgraça dessa terra. O documentário que protagoniza, de um espanhol, El Milagro do Candeal (2004), é um crime. Louva as obras de maquiagem do ex-prefeito Imbassahy, naquele modelo “todo menino do Pelô sabe tocar tambor” – como se tocar tambor pra um gringo e ter um reboco colorido fosse uma revolução. É coisa pequena até.
O cacique do Candeal, como é conhecido, sempre se absteve de enfrentar a instância política do conflito racial presente na sua força. Não há uma declaração obtusa, ao contrário. Ele há anos combate o discurso de que o mito da democracia racial precisa ser desvendado. Não é um bobo… Discorde de tudo dele, mas não o trate como um ignorante. Ele sabe o que quer ao fazer o pacto do preto cordial.
Alguma coisa o deixou preso quando compôs “Meia lua inteira”, o carro chefe do álbum “Estrangeiro” (1989), de um sedutor neofreyriano, Caetano Veloso.
No carnaval de 2015, acho, cantou o jingle “ACM meu amor” para Netinho no alto do criminoso Camarote Salvador. Não teve pudor ao capitanear a privatização da praia do Buracão no Rio Vermelho, uma área de lazer do povo do Vale das Pedrinhas que passa por um longo processo de higienização por interesses imobiliários como os de Brown.
A relação dele com os músicos que passaram pela Timbalada acontece num nível de obscuridade comum e cruel a toda a axé music e à música popular brasileira. No caso dele, para além dos cantores, a parte mais conhecida de miséria e ostracismo, temos dezenas de percussionistas provavelmente em situação muito pior porque não ganham mais um real dos sucessos emplacados.
Timbalada que vira dia após dia uma caricatura, ao ponto de colocar uma cantora branca completamente desafinada no último carnaval, perder o vínculo com uma legião de fãs negros, e depois perder o seu cantor mais longevo, Denis.