Nos últimos anos, o debate acerca do uso das cordas no Carnaval de Salvador tem se intensificado cada vez mais. A natureza da função ainda é bastante questionada, principalmente como símbolo de exclusão social e racial.
O serviço é degradante e, absurdamente, precário. Os empresários, em sua maioria, continuam a defender o ramo. Estrategicamente, o poder público reconfigura a festa e disponibiliza para a ‘pipoca” um “Carnaval sem cordas”.
Mas, afinal, o que pensam os participantes e dirigentes de blocos afro a respeito do cordão de isolamento, considerando as relações raciais e étnicas que estas organizações culturais e sociais têm com a diáspora africana?
Buscando mais que respostas, mas, primordialmente, fomentar esse debate, o Portal Correio Nagô foi às ruas da capital baiana durante a folia de momo.
De antemão, podemos adiantar que encontramos blocos afro preocupados com a problemática e apontando possíveis caminhos para um eventual “arriar” das cordas.
Pra que corda?
Se a pipoca tá com a corda toda
Pra que corda?
Pra que corda?
Abaixe a corda que a pipoca vai passar
(Hino do Trio Armadinho, Dodô e Osmar para o Carnaval 2017)
NA CORDA BAMBA
Para o vice-presidente e um dos fundadores do Malê Debalê, Miguel Arcanjo, apesar de segregar, as cordas são usadas para estabelecer limites espaciais para que os participantes dos blocos afro possam se apresentar na avenida.
“Corda prende e repreende. Sou radicalmente contra as cordas. Agora tem que haver uma conscientização, um respeito ao trabalho. A coisa da corda funciona como se a comunidade, a população, precisasse de cordas para obedecer. Funciona como uma algema, como muros, que dividem, que retaliam, que criam um apartheid. Quando a comunidade aprender a respeitar este trabalho, não vai precisar mais de cordas. A gente estabelece os nossos próprios limites. É diferente de um bloco de trio que não apresenta absolutamente nada, que tem a corda para excluir. Essa corda tem que sair, tem que acabar”, considera Miguel Arcanjo.
Segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores Cordeiros do Estado da Bahia (Sindcorda), 25 mil trabalhadores atuaram como cordeiros no Carnaval 2017. O número representa 10 mil a menos que o ano anterior. A cadeia envolve ainda seguranças e pessoal de apoio. Graças à atuação do Sindcorda e a intervenção do Ministério Público do Trabalho (MPT) os blocos assinassem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com garantias mínimas de diária a partir de R$54, seguro de R$20 mil em caso de acidente, lanches industrializados e equipamentos de proteção individuais, como luva, sapato fechado e protetor auricular.
“A corda começou como uma brincadeira, que depois se tornou uma profissão. Cordeiro também é uma profissão. Precisam estar mais organizados para se tornar mais profissionais dentro dessa área, valorizar mais sua mão de obra. Agora a corda também ela aparta, há um apartheid. Eu tenho um bloco, mas eu vendo fantasias. Se a gente de bloco afro fizer 5 mil fantasias, a gente vende 500 porque a gente trabalha com comunidade. Mas a gente consegue gerar emprego e renda. Eu coloco uma corda para aqueles que pagaram que querem ter o conforto, aí eu tenho que ouvir também essas pessoas. Então a gente fica na verdade na corda bamba”, explica o dirigente do Bloco da Capoeira Tonho Matéria.
Cantor e compositor com passagem por outros blocos afro como Olodum e Araketu, Tonho Matéria também ressalta que sem cordas os integrantes do bloco têm dificuldades para se apresentar. “Se eu não botar a corda, a ala vai reclamar: ‘o povo invadiu e eu não dancei direito’. Ao mesmo tempo, essa corda do Bloco da Capoeira é uma seleção, é uma parte aonde as pessoas podem mostrar a liberdade de seus gestos, sem interferência. Isso aconteceu muito com o Afródromo que não tinha cordas e as alas não conseguiam manifestar as suas danças. Mas a gente está preocupado com esta questão”, justifica.
Em 2013, liderado por Carlinhos Brown, surgiu o Afródromo, anunciado como um espaço alternativo, sem cordas, para ressaltar a cultura negra. No ano seguinte, foi apresentado oficialmente. Depois disso não teve continuidade. A proposta dividiu opiniões no que diz respeito à mercantilização, localização, programação, inclusive, sobre a própria criação deste espaço. Leia mais sobre o Afródromo no Correio Nagô: http://correionago.ning.com/profiles/blogs/a-avenida-e-dos-blocos-negros-por-andre-santana
Afro Sem Cordas
O bloco afro Olodum celebrou neste Carnaval os 30 anos da canção Faraó, marco da criação do samba reggae e impulsionador da chamada Axé Music. A entidade desfilou com seus associados na sexta e no domingo e saiu na terça (27), sem cordas, com o apoio do Governo do Estado da Bahia.
“Nós estamos pensando nisso de uma forma proativa, mas que precisa ser integrativa no que hoje existe nos blocos. Não pode destruir os blocos para ter apenas o sem corda, precisa ser um binômio que junte as duas coisas”, considera o presidente do bloco afro Olodum João Jorge Rodrigues.
A coordenadora pedagógica do Bankoma Eliana Souza pondera que a questão vai além do fato de ter ou não cordas. É preciso pensar de maneira mais ampla.
“À medida que se pensa em abaixar as cordas é preciso ter a mesma intensidade para acabar com os camarotes. Isso tudo é uma estratégia de marketing, na qual os ‘etes’ (os grandes cantores terminados em ‘etes’) não estão mais dentro da corda e passaram para o camarote. Estão dentro do camarote vendo a gente passar. Qual o retorno financeiro que nós enquanto blocos afro – que somos a diferença dentro do Carnaval de Salvador – temos a partir disso, se os maiores patrocinadores do Carnaval não nos apoiam? Isso é racismo institucional. Vamos abaixar as cordas de vez e quebrar as placas dos camarotes. Vamos todo mundo para a rua”, considera Eliana Sousa.
De modo semelhante à Eliana Souza, o gestor cultural Zulu Araújo amplia o debate, questionando o fracassado modelo de Carnaval construído ao longo dos anos.
“Há cordas e cordas. Há cordas para delimitar um espaço cenográfico, assim o foi, por exemplo, os cordões, as escolas de samba, os blocos afro. E há cordas que servem para estabelecer privilégios. É importante fazer essa diferenciação porque está ocorrendo hoje uma espécie de simulacro de democracia no Carnaval de Salvador, como se a responsabilidade pela crise econômica – na qual está imersa uma parte dos chamados blocos de trios, ou seja, os blocos da elite – tivessem a ver com a participação maior ou menor da população”.
Zulu Araújo pontua as duas razões para essa crise da corda: “Uma é a migração de uma parcela de uma elite baiana para os camarotes. Quem tem dinheiro está indo para o camarote, está retornando a sua origem. Caetano disse lá atrás que tinha que mandar essa gente sem graça para o salão. Só que o salão agora é um camarote à beira mar, preferencialmente em uma área pública. A outra razão é que este modelo de Carnaval segregado esgotou. Ao ter se esgotado, está se buscando alternativas. O que é curioso é que está buscando alternativas com recurso público e não as alternativas de mercados, como eles se consideravam excelência de mercado”, explica.
Para Zulu Araújo, “a solução passa por outras alternativas de diversidade musical, estética, espacial e, evidentemente, de protagonismo da chamada cultura popular, As cordas, para mim, são apenas símbolos que estão sendo arriados, mas não destruídos. São símbolos da segregação, da discriminação e da exclusão da maioria da população que brinca o Carnaval”.
A praça Castro Alves é do povo
como o céu é do avião
um frevo novo, eu peço um frevo novo
todo mundo na praça
e muita gente sem graça no salão
(Um Frevo Novo, Caetano Veloso)
O jornalista Hugo Mansur chama atenção para o fato dos blocos estarem saindo de cena e o que se estabelece é a pipoca do artista. “Quem se libertou foram eles. Os artistas mais poderosos viraram patrões de si mesmos, compraram seus espaços no desfile, permutaram vaga e negociam diretamente sua saída”.
E faz uma sugestão instigante: “Diante dos fatos, é preciso ter cautela antes de supervalorizar o sem cordas. Revolucionário seria se esses artistas saíssem por crowdfunding, financiados por seus seguidores”.
A também jornalista Camilla França, que integra a diretoria do tradicional bloco de samba Alvorada, também deixou uma sugestão sobre o Carnaval pipoca, em sua página pessoal no facebook: “O Estado está fazendo sua parte no processo de democratização do Carnaval de Salvador.
Só penso que os artistas que ganham milhares, deveriam fazer sua parte também. Todos os artistas que ganharam acima dos 100 mil, deveriam desfilar no outro circuito sem custos para o folião, ou seja, sem cachê do Governo”, escreveu.
O POVO E A CORDA
O arriar das cordas também divide o folião que desfila em bloco afro ou que vai para avenida assistir à passagem.
“Tem que ter corda. O bloco afro é um bloco diferenciado. Tem ala de baiana, de dança, a roupa é uma roupa afro. Não vai ficar bem sem cordas. Não faz sentido. A corda é uma segurança, principalmente para gente que paga para sair em um bloco. É uma produção tamanha para você brincar com medo? Você não ter paz”, questiona uma participante que prefere não ser identificada do Bankoma, bloco afro de Lauro de Freitas, que desfila em Salvador desde 2000.
“A corda é convenção. Instituíram um dia que ela daria segurança e virou o que virou os circuitos mais tradicionais. Deixei de participar dessa festa, é muita segregação. Prefiro o Pelourinho. Tudo mais tranquilo. A energia é outra, inclusive tem muito bloco afro que desfila por aqui. A gente pode sentir a energia mais de perto, sem agonia das cordas”, conta Márcia Santos, 24, que há três anos curte a folia no Circuito Batatinha, no Centro Histórico.
Pipoca Institucionalizada
Para Hugo Mansur está havendo um processo de institucionalização da pipoca. “O que vemos é uma pipoca institucionalizada, seja pela Prefeitura, seja pelo Governo do Estado. Nosso adeus é aos empresários e donos de blocos. A logística que segrega se atualiza e se torna mais grave, em vista a disputa política dos governos.
Para confirmar sua ideia de institucionalização da pipoca, o jornalista destaca dois exemplos: “Em 2016, a pipoca de Igor Canário foi usada para enfraquecer a Mudança do Garcia, que não teve força para adentrar a passarela, invadindo o desfile dos blocos como é sua característica de protesto. Em 2017, a pipoca de Leo Santana foi usada para garantir o desfile gourmet do BaianaSystem, segmentando o público, pagodeiros versus hipsters universitários”, pontua Mansur.
“Pipoca mesmo seguirá sendo o folião independente, não manipulado, livre na avenida, pois o que se vê é que institucionalizaram a pipoca no carnaval soteropolitano, mas não sem deixar de creditar a ela todas as características da segregação”.
Assim como o Carnaval, o debate não se encerra aqui. Ano que vem tem mais. Até lá, fica a esperança de que novos caminhos sejam discutidos e colocados em prática para que tenhamos uma festa menos excludente, em todos os sentidos. Até porque todos nós sabemos que a corda só arrebenta do lado mais fraco.
Donminique Azevedo é repórter do Portal Correio Nagô
Leia com exclusividade o texto do jornalista Hugo Mansur sobre a institucionalização da pipoca no Carnaval de Salvador. Aqui: https://goo.gl/e8wJsB