Existem no Brasil hoje aproximadamente 5 mil haitianos. Parte desse contingente de imigrantes foi regularizado no país depois de entrar ilegalmente pelas fronteiras com a Bolívia ou com o Peru. Cerca de 800 obtiveram, entre janeiro e setembro passados, visto por cinco anos emitidos na capital haitiana, Porto Príncipe, dentro de uma política do governo brasileiro firmada em janeiro deste ano para tentar frear a entrada por via terrestre. Pela Resolução 97, do Conselho Nacional do Imigrante (CNIg), foi prevista a concessão de 1.200 vistos e mais 1.200 até janeiro de 2014, por questões humanitárias depois das implicações do terremoto de janeiro de 2010 que devastou o país e agravou a condição de pobreza já enfrentada pela população do país mais pobre das Américas.
Embora haja cerca de 200 pessoas vivendo em más condições na cidade acreana de Brasileia, à espera de trabalho e de um destino melhor, mais de 3 mil foram contratados desde outubro de 2011 por empresas brasileiras das mais diversas localidades.
Os trabalhadores haitianos são muito bem avaliados pelo presidente CNIg, órgão ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e coordenador-geral de Imigração, Paulo Sérgio de Almeida. “São pessoas que estão chegando ao Brasil e têm a maior disposição para o trabalho. Precisam mandar dinheiro para a família”, afirma.
Nesta entrevista Almeida relata o processo de imigração dos haitianos no Brasil:
Em que condições vivem os haitianos no país?
O CNIg tem tido atenção especial com os haitianos. Procuramos ver como está o processo de chegada e o estabelecimento deles no Brasil, e também a questão do emprego, para ter certeza de que as pessoas estão inseridas principalmente no mercado de trabalho.
Qual o histórico da migração desse povo para o Brasil?
Até janeiro deste ano houve uma grande chegada de haitianos pela via terrestre, principalmente pelo Acre e Amazonas. Em janeiro, houve o estabelecimento de uma política específica – a expedição de vistos humanitários especiais emitidos em Porto Príncipe – para que eles pudessem vir direto para as cidades que escolhessem para viver.
Num primeiro momento, os haitianos que chegaram pelo Acre saíram em direção a outros estados devido ao fato de este ser um estado com mais conexão com o Brasil, e por ser um estado pequeno, então não dava para ficar lá. Os que chegaram pelo Amazonas entraram pela tríplice fronteira Brasil/Peru/Colômbia, pela cidade de Tabatinga. Dali há grande dificuldade de deslocamento. A cidade está a mais de mil quilômetros de Manaus, por via aquática ou aérea. A ligação principal é com Manaus, e lá também as conexões com outros centros urbanos é complicada porque não há ligação rodoviária, somente aérea ou por barco até Belém, e de Belém, aí sim, tem ligação rodoviária.
Logo que chegaram ao país os haitianos começaram a ser procurados pelas empresas?
As empresas da construção civil – principal atividade econômica de haitianos empregados no Brasil – e alguns setores industriais, como o dos frigoríficos, começaram a recrutar os haitianos no Acre, e quando não havia mais trabalhadores lá, passaram a recrutar em Manaus. Os dois estados com mais haitianos são Manaus e Paraná – mas eles também estão em grande número no Rio Grande do Sul. Houve grande mobilidade de pessoas da região Norte para os estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rondônia, onde há grande movimento na construção civil – usinas e grandes obras de infraestrutura.
Os haitianos que entram no Brasil com visto emitido em Porto Príncipe tomam que destino?
Os que chegam com visto de Porto Príncipe, que já são pouco mais de 800, têm priorizado São Paulo, Minas, Rio e a região Sul. A imigração haitiana está concentrada no Norte – Amazonas e Rondônia, e depois no Sul e Sudeste do país. A região Centro-Oeste tem pouco e no Nordeste há muito pouco. A política é de concessão de visto em Porto Príncipe, mas há uma rota migratória estabelecida pela fronteira Norte, e quando houve a edição da norma que permitiu a concessão dos vistos na capital, esse fluxo não estancou de imediato, pois alguns já haviam saído do Haiti e seguiam ao Brasil. Alguns já tinham chegado ao Peru ou ao Equador.
Tivemos de adotar medidas para o processo de transição entre uma imigração pela fronteira e outra pela concessão de visto. A entrada terrestre tem riscos – travessia longa, região pouco habitada, criminalidade. Não é algo seguro estimular migração nessas condições. Nossa opção foi manter a porta do país aberta, mas vamos garantir visto direto no Haiti. A migração via terrestre tem diminuído ao longo do tempo. No início havia muita gente, mas isso foi reduzindo e hoje é residual.
O governo do Acre disse que teme pelas condições de vida dessas pessoas…
O fluxo não estancou de imediato, tem reduzido. Os haitianos entravam pelo fronteira do Equador com o Peru e chegavam à cidade peruana Inhanpare, que faz fronteira com Assis Brasil, no Acre. Ali houve reforço na fiscalização, e como a política estabelecida foi a concessão de visto em Porto Príncipe, os haitianos que chegaram na região não conseguiam entrar no Brasil. Esses pequenos grupos que ainda fluíam foram se acumulando do lado peruano da fronteira. Na verdade, eles acabam sendo responsabilidade do Peru.
E o que se passou com os que ficaram no Peru?
Ocorreu uma mudança na rota. Como as pessoas não podiam ficar no Peru, ingressaram na Bolívia. Daí contornaram a fronteira brasileira buscando ingressar por outro ponto da fronteira pela cidade boliviana de Cobija, que do lado brasileiro é a cidade de Epitaciolândia, geminada com Brasileia. Então, eles entraram no Brasil e ficaram em Brasileia.
Foi então que o país decidiu tomar medidas para regularizá-los?
Sim, essa situação provocou a tomada de decisão. Essas pessoas deveriam ter documentos provisórios porque ficariam em uma situação complicada se ficassem retidas na cidade, que é pequena. O próprio governo do Acre ficou pressionado com os gastos com ajuda humanitária. A decisão do CNIg foi de dar os documentos provisórios, com isso elas podiam retirar carteira de trabalho provisória e deixar a cidade de Brasileia, até que uma decisão final viesse a ser tomada pelo CNIg.
E a decisão de regularizar os haitianos que entram pela fronteira não pode incentivar mais entrada sem visto?
Acho que não porque os governos equatoriano, peruano e o brasileiro têm tomado cada vez mais ações para desestimular a imigração via fronteira terrestre. Os pequenos grupos que chegaram desde janeiro, depois da resolução do visto são um grupo de transição. Não temos elementos para afirmar que a política até aqui adotada tenha estimulado mais entrada pela fronteira.
As cerca de 200 pessoas que estão em Brasileia circulam pela região há uns cinco meses. Não sabemos o que se passou com cada uma delas. Elas atravessam a fronteira, mas ao entrar no Brasil, o CNIg – que envolve vários ministérios – e organizações civis avaliaram que se não fossem regularizados para que pudessem circular, o prejuízo para eles próprios seria muito grande. Daí a adoção desta medida.
Houve situações isoladas durante o ano? De janeiro para cá quantas pessoas entraram e estão no país?
Talvez haja umas 500 pessoas, além das 800 que entraram no país com visto concedido em Porto Príncipe. Dessas 500, a imensa maioria já havia sido do Haiti quando criamos o regime específico. Àquela altura elas estavam no meio da viagem. O CNIg teve sensibilidade para adotar uma saída, uma transitoriedade na regra.
Os que saem de Porto Príncipe têm ajuda para entrar no Brasil?
Não, é cada um por si. Não há ajuda do governo brasileiro. Há um conjunto de informações na Embaixada, sobre como funciona o sistema brasileiro de documentação, de buscar emprego.
Existe uma rede aqui no Brasil para ajudar os haitianos que chegam de Porto Príncipe?
Além dos órgãos públicos, temos algumas entidades que ajudam na questão do emprego. Elas estão habilitadas a orientar melhor essas pessoas no Brasil. Tem uma lista dessas entidades disponível na Embaixada do Brasil em Porto Príncipe. Eles podem recorrer a essas entidades, geralmente ligadas a igrejas, com militância em direitos humanos, que servem como espécie de mediadoras. Não são muitas, mas estão em todas as cidades com maior presença de haitianos.
O que leva uma empresa a procurar um trabalhador haitiano?
Existem duas questões. Em algumas cidades há dificuldade em conseguir mão de obra brasileira. No interior dos estados, cidades com grandes obras, empreendimentos de maior porte, há dificuldade de conseguir trabalhadores. A outra questão é que o trabalho deles é bem avaliado. São considerados ordeiros, dedicados, e aprendem facilmente o serviço. São pessoas que estão chegando ao Brasil e têm a maior disposição. Precisam mandar dinheiro para a família. Têm vontade de vencer, e isso tudo tem feito os empresários os avaliarem de forma positiva. A propaganda tem sido boca a boca. Uma empresa comenta com a outra. Muitas vezes as empresas saem do Sul do país para buscar trabalhador haitiano no Norte.
Não seria para pagar salários mais baixos do que os pagos a brasileiros?
Nossas superintendências acompanham o processo e uma das condições para a contratação é que os haitianos já saiam de carteira assinada em condições regidas pela legislação brasileira.
O Ministério do Trabalho já tem levantamento de contratações de haitianos?
Esse dado é difícil. A Rais (Relação Anual de Informações Sociais) relata o ano anterior, e a maior parte deles chegou a partir de dezembro de 2011. O Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) não diferencia nacionalidade. Temos de tentar buscar de cada haitiano o número do PIS e identificar se ele está empregado. A dificuldade é levantar o numero do PIS de todos eles. Em grande parte das localidades o sistema está informatizado. Mas ainda há cidades onde a emissão de carteira de trabalho não está integrada na base de dados. São mais de 3 mil haitianos com vínculo formal de emprego. Aí não entram aqueles que se estabeleceram como microempreendedores. Não está a informação de quem veio com família, nas quais só um trabalha. Se formos comparar o índice de formalidade dos haitianos com o dos brasileiros é igual: pouco mais de 60%.
A Resolução 97 do CNIg previu 1.200 vistos para 2012 e vai se repetir ano a ano?
Não, é uma medida para dois anos – de janeiro de 2012 a janeiro de 2013 e depois, de janeiro de 2013 a janeiro de 2014. São 1.200 por ano, totalizando 2.400 pessoas em dois anos, podendo ser prorrogada. No Ministério do Trabalho estamos com a fiscalização atenta às questões dos haitianos. Isso é uma prioridade, mas houve pouquíssimas situações de denúncias em relação a trabalho. Apenas no Rio Grande do Sul, dois haitianos foram encontrados sem documentos, mas a coisa foi rapidamente solucionada.
Essa resolução atingiu o objetivo?
Tínhamos um quadro de muitos haitianos entrando no país pela fronteira terrestre, cerca de mil pessoas, um fluxo grande em Brasileia e mais mil em Tabatinga, no Amazonas, com fluxo crescente. Hoje temos vistos sendo concedidos com volume adequado. A demanda tem se apresentado e há ainda algum fluxo terrestre residual, cada vez menor pela fronteira terrestre. Então, avaliamos a medida como eficaz. Desincentivou a imigração via terrestre.
Quantos haitianos há no Brasil?
A gente calcula que tenham chegado no país 5 mil a partir de outubro de 2011. Nunca tivemos muitos haitianos, havia mais estudantes. As pessoas vinham estudar depois voltavam. O Haiti é um país com grande pobreza e tem necessidade de capacitação profissional. O ano zero do Haiti no Brasil foi em 2011, a partir do terremoto em janeiro de 2010 a coisa começa e vai aumentado até ficar forte em outubro de 2011.
O CNIg conhece a demanda de vistos em Porto Príncipe?
No início foi baixa, mas a partir de junho passado começou a crescer. Houve um momento até julho, agosto, bem grande, mas houve uma estabilização. Até porque para um haitiano vir precisa ter recurso, ter a passagem. Não é muito fácil. Não são muitos que podem.
Isso pode levar a pensar que os que vieram são os que viviam em melhores condições no Haiti?
A gente vê alguns com nível de escolarização alto, que têm formação. De alguma maneira, conseguiram juntar dinheiro, ou a pessoa individualmente ou a própria família. A maioria das pessoas tem nível de escolaridade de médio incompleto, médio completo, fundamental completo – cerca de 60% da migração haitiana. Superior completo e incompleto são 10%. Fundamental incompleto é grande também. Se levar em consideração que a população brasileira que tem nível superior é de 17%, para eles 10% não é um número tão baixo. Você vê professores, pessoas que falam vários idiomas. Há uma variedade muito grande de qualificações, mas em geral são pessoas que juntaram dinheiro para custear a viagem ao Brasil.
O sr. acredita que eles pensam em voltar para o Haiti?
Os movimentos migratórios são complicados. O Haiti é um país de grande pobreza, o mais pobre das Américas. É uma situação que não se reverte em curto prazo. Foi agravada pelo terremoto e todo o histórico de catástrofes naturais, furacões. Teve recentemente problemas de cólera e outras doenças, e a própria instabilidade política – parece que tá mais estabilizada – são fatores que levaram o Haiti a ser um país de grande emigração, há muita gente vivendo no exterior, seja nos Estados Unidos, República Dominicana, Guiana Francesa e outros países caribenhos. Acho que mesmo esses haitianos que deixaram as famílias, muito provavelmente optem por trazer as famílias para o Brasil por todo esse histórico. Mas entram outros fatores imponderáveis, como a adaptação ao país, o modo de vida. Vai depender muito do sucesso deles no mercado brasileiro. Depende se continuarmos nesse processo de crescimento criando oportunidades. Há muitas variáveis que vão influenciar, mas a tendência é de eles ficarem. Por isso, os vistos são de longa duração. Depois de cinco anos eles têm de comprovar situação laboral.
Algum setor da sociedade questionou a entrada dos haitianos preocupado com reserva de mercado?
No CNIg, onde as centrais sindicais estão presentes, há um consenso de ter atitude humanitária, de solidariedade. Ainda que sejam 5 mil trabalhadores ou um pouco mais, não é um número elevado se compararmos com grandes cidades brasileiras. É um número baixo, mas tem apelo humanitário grande porque eles saíram de um país devastado. Por mais que não sejam aqueles que perderam tudo, os que viviam nas tendas, são aqueles que vão conseguir sustentar a família, que eles podem trazer, porque é um direito consagrado na nossa Constituição.
Por: Evelyn Pedrozo, da Rede Brasil Atual
Fonte: Rede Brasil Atual