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Contra a nação, a favor dos partidos

Não, você não leu errado. Esse texto é uma demarcação de posição, contrária ao patriotismo e favorável aos partidos políticos. A chamada é um tanto apelativa: não sou contra o estado brasileiro em si, ou ao seu povo, mas ao ideal que é representado pela bandeira e pelo hino nacional. Tampouco estou defendendo uma ideia restrita de partidos, mas sim seu sentido original de “parte”, de “tomar parte”.

Boa parte dos dorminhocos seria contrária à desmilitarização da polícia.

Explico. A apelação não é sem motivo: quero refletir no espelho a apelativa utilização dos símbolos da nação. É um recurso eficiente para transformar as nossas diferenças em propulsor de uma unidade, e assim tem sido apropriado nas mobilizações que ocuparam as ruas das principais cidades do país nos últimos dias. Nos discursos de parte dos manifestantes e na cobertura da imprensa, o Brasil é um só em sua diversidade, assim como nos velhos livros de história. E esse “país unificado”, visto como “gigante adormecido” por uma tese estrangeira em desuso, se viu no comercial de um uísque igualmente estrangeiro e assim definiu o momento político: “o gigante acordou”.

Mas que brasileiros são esses que conseguiram dormir enquanto tanta coisa que apontam como ruim acontecia? Percebe-se que nem todos estiveram dormindo nesses 513 anos de história.

Falemos apenas dos eventos recentíssimos. Os indígenas vêm enfrentando o acirramento da luta no campo, com o crescente poder dos ruralistas prestes a lhes usurpar direitos constitucionais e conquistas recentes. Há alguns meses, os movimentos identitários construíram mobilizações enormes no país inteiro contra as iniciativas fundamentalistas, sobretudo as mulheres, LGBT e religiosos de matrizes africanas. O movimento negro, as organizações de direitos humanos e os grupos de apoio à legalização da maconha têm promovido amplo debate social contra projetos como a nova Lei de Drogas, a internação compulsória e a redução da maioridade penal. Diversos outros movimentos constroem suas lutas quotidianamente.

A militância estava acordada porque não podia dormir, já que o sono dos demais têm sido comprado com sua insônia. Estamos falando dos assassinatos de indígenas e quilombolas no campo, o extermínio da juventude negra nas cidades, os estupros de mulheres e as agressões a lésbicas, gays e travestis. É essa desigualdade que o ideal de nação procura mascarar. O problema, em resumo, é que o gigante não consegue incluir a todos, em que pese seu gigantismo.

E é fácil desmontar o discurso da unidade quando se apresentam pautas bem definidas. Um exemplo é a desmilitarização da polícia, que poderia ser justificada apenas pela repressão violenta e atabalhoada da polícia às manifestações. Mas boa parte dos dorminhocos certamente seria contrária. Uma vez que a polícia seja violenta na periferia, eles dormem tranquilos.

Opor-se à repressão policial nas ruas da Consolação não é o mesmo que condená-la em Cidade Tiradentes. Nem todos que reivindicam investimento em saúde são favoráveis à vinda de médicos do exterior e muitos comemoraram a rejeição à CSS, imposto que incidiria sobre os mais ricos e seria destinando à saúde. Também há os que defendem a educação enquanto recusam a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a área.

A avaliação desses dias de mobilização não pode disfarçar, portanto, os conflitos sociais que afloraram sob a roupagem anti-partidária. O problema materializado nos partidos de esquerda – e não em todo e qualquer partido, como se prega – é a defesa das demandas dos segmentos que não foram privilegiados pelo direito de dormir.

Isso não significa que esses partidos ainda representem os ideais populares. Longe disso: não fosse a capitulação dos governos às alianças com a elite, que impuseram o rebaixamento programático progressista ou mesmo seu abandono, a crise de representação partidária não teria chegado tão longe nas ruas. A maioria dos partidos se transformou em meras legendas incapazes de disputar ideias sociais e sua consequente emergência em mobilizações. O problema é que, em tese, a direita não sabe disso. A referência é o partido antigo, enraizado nos segmentos populares organizados, que se supõe em plena vigência devido à hegemonia eleitoral de 10 anos do PT no governo federal. Daí, é fácil entender porque insufla o ódio aos partidos como legítimas expressões dos excluídos da nação.

É nesse contexto que os partidos se tornam importantes. É por isso que a agressividade contra eles foi seguida pela agressividade aos movimentos sociais. Ao propor uma unidade artificial em torno de clichês como “educação” e “saúde”, abraçar os símbolos nacionais e repudiar os partidos, a militância patriótica tentou, sem sucesso, apagar as agendas específicas dos movimentos sociais para que o movimento não questionasse os seus privilégios. A direita e os fascistas aproveitaram o tom conservador para forçar a expulsão dos partidos de esquerda das mobilizações. Foi aí que começaram as agressões a bandeiras e militantes.

Os movimentos sociais saíram em defesa da liberdade de expressão da opção partidária porque sabiam que seriam os próximos. E foram mesmo. Em São Paulo, uma bandeira da Uneafro foi rasgada. Em Brasília, os organizadores das mobilizações desrespeitaram acordo com a Marcha das Vadias e marcaram uma mobilização no mesmo dia e local. Manifestações machistas e lesbofóbicas contra a presidenta Dilma têm sido constantes. Houve cartazes condenando as cotas e favoráveis à redução da maioridade penal, e pessoas com placas e bandeiras em defesa do aborto foram hostilizadas.

Os partidos de esquerda e os movimentos sociais passaram a marcar presença maior nas mobilizações. Muitos militantes sem filiação partidária, que outrora bradavam contra a corrupção, reconheceram o que estava em jogo e passaram a levar as demandas de suas lutas específicas, como forma de resistência à hegemonia conservadora. A onda fascista recuou. O pronunciamento da presidenta Dilma em rede nacional, apesar das críticas à direita e à esquerda, conseguiu acalmar os ânimos. Já as propostas apresentadas na reunião com governadores e prefeitos parecem iniciar um novo período de disputas, especialmente em torno da Reforma Política, que pode ampliar a representação de negros, mulheres, jovens, LGBT, indígenas e outros segmentos.

A luta nas ruas não vai cessar – mesmo que o tal gigante volte a dormir, os movimentos sociais continuarão de pé. Mas agora algumas pautas começaram a ser vistas com mais prioridade, bem como a importância de construir alianças entre os progressistas, tendência antes fortalecida pelas marchas (das Vadias, Estado Laico) e pelo “Fora, Feliciano”. Aliás, estas foram demonstrações de que as questões sociais tendiam a se aprofundar, e não a se descaracterizar. Seguindo a mesma orientação, os movimentos sociais devem recusar a referência patriótica e suas pautas genéricas. Ou, se preferirem disputar os símbolos nacionais, precisarão agregar questões focalizadas, como as cotas, o financiamento público de campanhas, o direito ao aborto, o casamento igualitário, a reforma agrária, a titulação de terras indígenas e quilombolas.

Recusar o patriotismo é recusar-se a legitimar o símbolo de escravidão, do imperialismo e da ditadura. É dizer que só seremos simbolicamente iguais quando formos materialmente iguais.

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