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COTAS EM CONCURSOS PÚBLICOS EM RISCO: E você, o que tem a ver com isso?

“Ou nós nos mobilizamos para defender as nossas conquistas ou vamos perder. A gente precisa sair do virtual e partir para o presencial. Isso não é uma questão individual. Nós estamos diante de uma decisão que pode afetar as nossas conquistas”.

O alerta é do vereador de Salvador Sílvio Humberto, sobre a ameaça ao sistema de cotas, tomando como exemplo a decisão que pode colocar em risco o respeito ao percentual de vagas reservado para negros e negras nos concursos para a Administração Pública Municipal de Salvador.

O exemplo citado pelo vereador diz respeito ao julgamento do mandado de segurança impetrado por uma candidata ao cargo de procuradora do Município de Salvador, que, após ter se autodeclarada negra, foi eliminada do concurso na verificação da veracidade da autodeclaração.

A candidata, junto a outros concorrentes, recorreu da decisão e conquistou, através de liminares, o direito de continuar no pleito.

No último dia 09, o ajuizamento foi adiado por mais um pedido de vistas solicitado por um dos magistrados.

O caso se arrasta desde o ano passado e está sob a análise dos desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia.

AUTODECLARAÇÃO APENAS NÃO BASTA

Registrados em cartório civil como pardos, os seis candidatos se autodeclararam afrodescendentes para o concurso para procurador em questão.

Em entrevista ao Portal Correio Nagô, o procurador do município de Salvador, Francisco Bertino, a decisão deste caso está diretamente ligada à eficácia do sistema de cotas.

“A preocupação da prefeitura ao instituir uma comissão de verificação da autodeclaração foi evitar a fraude, ou seja, evitar que uma pessoa que não fosse destinatária da cota se beneficiasse dela e acabasse tirando a eficiência desse sistema, que tem um papel importante de reinserção social. Criamos a comissão com essa finalidade e entendemos que a comissão fez bem esse papel de identificar quem, de de fato, seria destinatário da política e é esta decisão que estamos defendendo em juízo para que ela prevaleça”, explica Bertino.

 REAÇÃO DA COMUNIDADE NEGRA

“É importante  que as organizações do Movimento Negro organizado criem estratégias de problematizar o tema dentro de suas instituições, mas também de levar para a comunidade.  Só a autodeclaração nos concursos públicos ou nas cotas raciais nas universidades não garante a lisura do processo”, pontua a professora doutora e socióloga da do Instituto Federal da Bahia, Marcilene Garcia.

Quando um branco é incluído numa cota racial de negro, um negro deixou de ser incluído, Marcilene Garcia.

Marcilene Garcia revela que as estratégias são inúmeras para tentar fraudar o sistema de cotas. “Tem gente que escurece a foto, faz bronzeamento artificial, têm outras estratégias de manipulação. Nós estamos trabalhando com o jogo do racismo. Quando um branco é incluído numa cota racial de negro, um negro deixou de ser incluído”, chama a atenção.

Agora a gente precisa fazer o day after das ações afirmativas. Não basta só conquistar a política. Você precisa garantir que ela tenha efetividade. Se a gente não conseguir perceber essa reconfiguração do mito da democracia racial, nós podemos perder as nossas conquistas”, complementa Silvio Humberto.

Esse país funciona a base da ‘pigmentocracia’, Silvio Humberto.

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Representantes do Movimento Negro Organizado em diálogo com o procurador Bertino. Foto: acervo/Silvio Humbero/Facebook

O SURTO DA CASA GRANDE COM A CHEGADA DO NEGRO NA UNIVERSIDADE

Para a professora doutora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Lívia Natália o sistema de cotas, além de ter um papel de reparação, tem caráter de empoderamento.

“Os negros foram secularmente alijados de ocupar os espaços de poder. O processo de escravização, que se encerra em 1888, não se encerra na vida das pessoas naquela data da abolição da escravatura. A gente tem uma herança maldita que repousa sobre todos os negros e negras, que inviabiliza, impede, dificulta o acesso tanto ao bem simbólico quanto ao bem capital”, relembra Lívia Natália.

“Os lugares dentro da universidade – seja como professor, graduando, pós-graduando – são lugares em que a gente consegue capitalizar um poder, um acesso ao conhecimento, que é tradicionalmente pensado, como sendo alguma coisa que aos brancos que é dado sistematicamente. Os negros estão o tempo inteiro fora desse eixo de construção de conhecimento, desse lugar de poder. Então, é pedagógico porque nos faz ocupar outros lugares e a universidade tem um papel-chave nisso”, elucida Lívia Natália.

AVANÇOS: UFBA ADOTA COTAS NA PÓS-GRADUAÇÃO

No início deste ano, após intenso debate e empenho do Coletivo Luiza Bairros, a UFBA a aprovou as cotas na pós-graduação. Com isso, todos os processos seletivos para os cursos stricto sensu da Universidade (doutorado e mestrados acadêmicos e profissionais) devem adotar o sistema. São reservadas, no mínimo, 30% das vagas ofertadas para candidatos negros (pretos e pardos) e uma vaga a mais em relação ao total ofertado nos cursos para candidatos enquadrados em cada uma das categorias de quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência e trans (transgêneros, transexuais e travestis).

“Quando eu fiz doutorado há quase dez anos eu era a única pessoa negra dentro do doutorado e eram apenas dez vagas. E aí alguém vai me dizer que consegui porque estudei. Na verdade, isso faz parte da própria estratégia do racismo: você deixa passar um para que se possa dizer aos outros ‘olha se você fizer que nem ela, você vai’. A gente sabe que o fosso é muito grande. A distância na formação de uma pessoa de pele clara para uma de pele negra é abissal”, acentua Lívia Natália.

Donminique Azevedo é repórter do Portal Correio Nagô.

 

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