03/09/2018 | às 18h12
Zilda Martins é Doutora e Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a orientação do professor Muniz Sodré. Recentemente lançou o livro “Cotas Raciais e o Discurso da Mídia: Um Estudo sobre a Construção do Dissenso” no qual aborda a construção da grande mídia em torno das políticas de cotas raciais.
Confira a entrevista completa:
CN – A mídia tradicional é responsável por pautar grande parte das discussões presentes na sociedade e quando se fala em questões étnico-raciais não é diferente. O que o público pode esperar ao ler a sua obra Cotas Raciais e o Discurso da Mídia?
ZM – Evidentemente, a mídia tem a sua importância na elaboração e proposição da agenda social, mas o que se observa é que ela (a mídia tradicional) representa uma esfera dominante, cuja lógica é mercadológica, da ordem do espetáculo ou do grotesco, deixando em segundo plano temas que a própria sociedade brasileira, cujo pensamento é profundamente escravocrata e racista, não tem tanto interesse assim de ver publicado. “Cotas Raciais e o Discurso da Mídia” é um registro histórico de como se constrói e veicula um pensamento que, externamente, não era visível. Esse livro é resultado da minha dissertação de mestrado, feito em um momento de inquietações e busca de compreensão do debate midiático, assim como de parte da intelectualidade brasileira, cujo discurso era “aparentemente” novo e fortemente maniqueísta. Eu não queria estudar os argumentos contrários e favoráveis às cotas, mas compreender o porquê da sua existência. Foi quando em conversa com meu orientador, Muniz Sodré, a quem tenho grande admiração e reconhecimento, decidimos fazer uma abordagem histórica. Começaram a surgir as questões. Como a mídia pauta temas relacionados à população negra? Por que a “raça” é negada para as ações afirmativas e ao mesmo tempo ressaltada para as manchetes de violência e de estereótipo? Por que a mídia não contextualizou historicamente o destino das políticas públicas?
Antes do advento das ações afirmativas, a população negra pouco aparecia na mídia, salvo em determinadas circunstâncias, como futebol, carnaval, matérias de crime ou, ainda, em situações exóticas, em que o corpo da mulher negra era valorizado.
Não foi difícil perceber que as cotas promoveram uma reviravolta nessa conjuntura, porque traziam uma condição de possibilidade de inversão dessa lógica, com jovens negros/as tendo direito a expressão de fala e de ocupação de lugar, antes reservado a uma elite branca, de “meritocracia” fundamentada em valores mercantis. No meu livro, mostrei a incoerência do discurso, a partir do momento em que editoriais reconheciam o fato histórico de quase 400 anos de escravidão no país, a abolição tardia e a violência real e simbólica daí decorrentes. Contudo, ao final dos editoriais mais aguerridos, para surpresa ou mesmo para confundir, vinha o não incisivo às cotas raciais. Esse não às cotas foi construído pelo dissenso, pelo desacordo, trazendo fortes argumentos, cujo objetivo era o de formar a opinião pública contra as políticas de reparação.
CN – De acordo com o estudo Efeitos da Política de Cotas na UnB, estudantes cotistas valorizam mais a vaga na universidade. De que forma podemos refletir sobre como a mídia consegue dificultar a verdadeira compreensão sobre o que é o sistema de cotas e, inclusive, não afirmar o sucesso dessa política?
ZM – A mídia não tem nenhum interesse em reconhecer o sistema de cotas como um sucesso, porque desde a proposição e implantação, sobretudo as cotas raciais foram percebidas como um mal-estar civilizatório, afinal vislumbrava a convivência de filhos da elite com filhos até então ignorados. Como dito acima, há certa incoerência no discurso midiático. Em alguns editoriais analisados, as ações afirmativas são reconhecidas como necessárias. A questão não é negar as medidas reparadoras como um todo, mas as cotas raciais. Por exemplo, alguns editoriais dos jornais analisados chegaram a considerar a importância das políticas públicas, desde que fossem cotas sociais. As cotas raciais eram vistas como discórdia ou divisão do país. Logo, ressaltar os efeitos positivos das políticas afirmativas seria reconhecer os próprios equívocos. Ora, na época do forte debate, nem mesmo a vitória de Barack Obama, nos Estados Unidos, em 2008, foi narrado como resultado das lutas civis e das ações afirmativas naquele país. Pelo contrário, a narrativa era de acusação contra o Brasil de imitar o país americano, quando lá já havia rejeição às cotas. Se debatia uma teoria pós-racial, que como se sabe, não existe nem nos Estados Unidos, nem no Brasil. Ao contrário, em ambos os países o racismo continua presente, demandando da sociedade uma interferência urgente na esfera social. Nesse aspecto, o papel da mídia seria fundamental para ajudar a estabelecer uma memória da pior barbárie histórica, a fim de não se repetir nunca mais, nem se esquecer a responsabilidade do Estado de garantir os direitos básicos de existência e dignidade humanas. Contudo, pensando com Todorov, a memória é seleção, é escolha de todas as informações recebidas, segundo determinados critérios. Embora um dos critérios da mídia seja levar a informação ao público, essa informação é recortada por filtros, que a população negra ainda não passa. Nos dias presentes, já são evidenciadas mudanças importantes na mídia, mas ainda como concessões ou resultado de pressão dos movimentos negros, não como uma responsabilidade social, uma mudança de ethos político consciente acerca das relações raciais no Brasil.
CN – Qual a importância de discutir o papel da mídia no discurso sobre as cotas raciais?
ZM – Há de se reconhecer a importância da mídia na quebra de fronteiras simbólicas, de modo a promover uma sociedade menos preconceituosa e mais justa. No entanto, esse papel político, muito comum no século XIX se desloca na contemporaneidade para uma moral mercadológica. Como diz Sodré, na obra Antropológica do espelho, “a mídia fala ao mundo para vendê-lo ou agilizá-lo em termos circulatórios.” Vislumbrando o utilitarismo e não causas sociais, o que se ressalta é o consumo, sem consciência, pela própria natureza. Fora desta esfera, as denúncias de racismo no cotidiano muitas vezes são apresentadas como exagero ou mimimi, uma forma de desqualificação da fala da vítima. Creio que se a mídia cumprisse o seu papel social de formação da opinião pública com responsabilidade, desde o início teria dado outro tratamento as ações afirmativas, como exemplo, matérias investigativas e historicamente contextualizadas com a realidade sócio histórica e socioeconômica da população negra. A mídia saberia que as políticas públicas fazem parte de um cenário de jogos políticos e simbólicos, de lutas que emergem das tensões sociais, reivindicações antigas dos movimentos negros e não uma concessão do Estado. Desse modo, o discurso não teria sido dual, não teria perdido a dimensão da tensão política das ações afirmativas, mas ao contrário, teria reconhecido nas cotas raciais uma dialética capaz de desafiar a ordem vigente pela alteridade, pela representação e capacidade de ressignificação social pela diversidade. Em outras palavras, a mídia estaria contribuindo para o combate ao racismo.
CN – Quais foram os seus achados com relação ao discurso da mídia na questão das cotas raciais? Houve mudanças nesse discurso? Quais foram?
ZM – Como pesquisadora e jornalista, o que percebi ao final dos estudos, além da incoerência já relatada, foi o que chamei de “comunicação simbólica do silêncio.” Para se ter uma ideia, em doze meses pesquisados, o tema das ações afirmativas apareceram em apenas 2,22% do total de editoriais publicados pelo Jornal O Globo; 1,09% pelo O Dia; e 0,55% pela Folha de S. Paulo. Meu trabalho centrou-se no Caderno de Opinião desses três jornais e confesso que fui para a pesquisa com grande expectativa, considerado que o ano escolhido por mim, 2008, era repleto de motivos que normalmente geram pautas. Foi o ano que elegeu o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, marcava a comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os 20 anos da Constituição Cidadã e era ainda o aniversário de cinco anos de implantação das cotas na primeira universidade pública do Brasil, a Uerj. Tais motivações, não fosse o caráter racial, creio que geraria o que chamamos de matérias especiais, aquelas mais aprofundadas e investigativas, com contextualização histórica. Não foi o que percebi. Nos artigos dos Cadernos de Opinião estudados – aqueles que o jornal recebe de convidados discorrendo acerca de determinado tema -, o resultado não foi diferente. No jornal O Globo, as políticas públicas representaram 1,8% do total de artigos publicados; no Jornal O Dia, 1,5%; e na Folha de S. Paulo, 1,09% do total de artigos. Nas cartas de leitores, também investigadas, os resultados foram semelhantes.
O estudo evidencia a prática do silêncio pela mídia ao revelar a escassez de publicações; apresenta um discurso midiático que oscila entre espaços vazios e a retórica do dissenso. Mostra ainda a construção simbólica de um “desejo de verdade” e uma narrativa que mais confunde do que esclarece, deixando os próprios atores sociais envolvidos confusos entre o sim e o não.
De todo modo, como coloquei nas conclusões do meu livro, as cotas raciais já são uma realidade, estão potencialmente presentes em diversas universidades e setores sociais do país e, a despeito do dissenso midiático, trazem em si a vitalidade do contradiscurso. Quanto à mudança de discurso por parte da mídia, certamente existe hoje um certo cuidado na narrativa. Eu diria que o dissenso foi substituído pela dissimulação, diante da impossibilidade de negar a existência de novos/as intelectuais negros/as, cuja visibilidade crescente ocorre em redes sociais e esferas contra hegemônicas. São intelectuais provenientes das cotas implantadas nas universidades públicas, tanto em cursos de graduação como de pós-graduação, dispostos a lutar pela mobilidade social, pela inserção política e pelo direito a voz, pressionando por transformações sociais dentro e fora da universidade.
Ashley Malia é repórter-estagiária do Correio Nagô
Com a supervisão de Donminique Azevedo.