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Da persistência de um esquecimento… a resistência de nossa escrita

Restrita a poucos, inventada para garantir direitos de propriedade e privilégios políticos, culturais e econômicos, a escrita possui uma significação particular para as mulheres negras. Apoderar-se de seus instrumentos significou um ato de resistência frente aos sistemas de dominação e exploração impostos e, especialmente, aos que detém o poder na sociedade brasileira.

Para tanto, as mulheres negras buscaram inscrever suas produções literárias desde o século XIX, como torna-se exemplar a publicação do romance Úrsula, em 1859, de autoria de Maria Firmina dos Reis (1825-1901), nascida no Maranhão. Além da escritora mencionada, cito outros nomes igualmente importantes, tais como: Auta de Souza (1876-1901), Antonieta de Barros (1901-1952), Laura Santos (1919-1981) e Nair Theodora de Araújo (1931-1984), entre outras esquecidas ou invisibilizadas pela historiografia brasileira.

Notamos que, há pelo menos dois séculos, apesar das demarcações estabelecidas para impedir à sua participação nesse restrito e privilegiado espaço intitulado literatura brasileira, muitas escritoras negras, por meio de diferentes estratégias, têm publicado romances, contos e poesias, rompendo com um processo histórico de invisibilização imposto aos textos de autoria negra no Brasil.

São vozes que têm buscado se tornar audíveis, procurando se movimentar em um território compartimentado, cujos contornos e os lugares definidos refletem concreta ou simbolicamente as linhas divisórias estabelecidas em nossa sociedade, no que diz respeito aos critérios de valorização ligados à cor da pele de quem escreve ou de quem produz literatura no Brasil.

Complementando essa cartografia, quanto às trajetórias mais recentes, lembro o percurso de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora da obra literária Quarto de despejo: diário de uma favelada, traduzida em 14 idiomas para mais de 50 países, publicada em 1960, que completou cem anos em 2014. Menciono também os itinerários marcados pela insubordinação de suas falas e perspectivas: de Geni Mariano Guimarães, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, entre outras vozes. Algumas delas com traduções de romances e antologias para inglês, francês, italiano e o alemão. Nessa minha lista, constam também ganhadoras de prêmios concedidos pela Casa de las Américas e o Jabuti (o mais tradicional e prestigiado de literatura do país).

Custeando suas produções, elas publicam periodicamente obras literárias (de forma individual ou coletiva) que circulam à margem do mercado editorial brasileiro formado por editoras, livrarias que detém mais recursos e maior visibilidade. Essas grandes editoras, livrarias e o trabalho desempenhado pela crítica literária tradicional colaboram para legitimar ou deslegitimar autorxs e obras, atribuindo-lhes um juízo de valor que influencia, tanto o público-leitor, assim como eventos literários organizados dentro e fora do país.

Em geral, os críticos tradicionais munidos de instrumentos de avaliação questionáveis, analisam as produções de autoria negra comparando-as às obras consideradas canônicas, levando em consideração aspectos ligados ao tema, e, especialmente, o lugar de onde se inscreve ou se enuncia o(a) autor(a).

Nessa cena cultural, deslocando-se entre o passado e o presente, entre o silêncio, o esquecimento e a necessidade de reparação, narrando suas próprias experiências, as escritoras negras no Brasil tecem uma escritura que reverbera a sua diferença e alteridade, organizando discursivamente outro imaginário para as mulheres negras, resgatando memórias e histórias silenciadas.

São autoras de textualidades que tratam de temas variados, pois falam de amor, afetividade, família, religião, morte, desigualdade, inclusão, assim como denunciam o racismo e o sexismo de que são vítimas cotidianamente. Chamo de um trabalho intelectual construído às margens das narrativas tradicionais estigmatizadoras e genocidas, cuja força e singularidade geram um novo horizonte ético-político que questiona através da arte literária marcos discriminatórios herdados do colonialismo brasileiro, em particular, relacionados ao corpo negro feminino.

Então, quais seriam as razões para os reiterados esquecimentos? Penso que esquecer faz parte de uma estratégia que visa à manutenção de um status quo, operando para tornar estáveis às relações de poder entre brancos e negros em nosso país. Outra razão que identifico para a produção desse esquecimento diz respeito à instância da autoria, operando como fundamento importante para existência de uma literatura afro-brasileira, negra ou negro-brasileira.

Muitas autoras negras, sobretudo, aquelas que publicam a partir da década de oitenta do século XX, sentem à necessidade de adjetivar o termo ou ampliar os significados da palavra literatura. Elas participam de um movimento literário que busca vincular à sua produção literária ao seu pertencimento étnico-racial. Além disso, suas falas pretendem evidenciar a condição social e política da mulher negra como sujeito e objeto da própria escrita. Uma ou outra literatura que, ao falar da mulher negra, recorre às imagens distanciadas das representações depreciativas produzidas nos discursos literários canônicos. Elas fazem questão de destacar que os adjetivos “negra, afrobrasileira ou negro-brasileira” interferem nos aspectos linguísticos, discursivos e semânticos de representação literária do negro. Isso tem gerado inúmeros desconfortos para os defensores do discurso de que literatura não tem cor.

Penso que muitas escritoras negras no Brasil através da literatura têm buscado transgredir as normas impostas pelo tecido social, questionar as suas regras e determinações geradas no interior de ideologias falocêntricas e etnocêntricas, movimentando-se fora dos padrões hegemônicos que obliteram a participação política de grupos considerados minoritários, reagindo contra as desigualdades de raça, gênero e classe.

Finalmente, a ausência de escritoras negras da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty, é o reflexo de um país racista e sexista que, parafraseando Conceição Evaristo (2006), espera que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funções, “como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever”.

Cristian

Professora Cristian Sales, mestra em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É pesquisadora da produção literária autoria feminina negra, no Brasil e no Caribe, atentando para os seguintes recortes: corpo, afetividade, performatividade intelectual. É integrante do núcleo feminino do coletivo literário Ogum`s Toques Negros.

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