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Da Revolta dos Búzios à atualidade !

Patrícia Valim.

“O Povo Bahinense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita a sua digníssima Revolução”.

As autoridades tomaram conhecimento dos planos no dia 12 de agosto de 1798, quando a população de Salvador foi surpreendida por boletins manuscritos afixados em prédios públicos. A surpresa foi o teor do conteúdo: “O Povo Bahinense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita a sua digníssima Revolução”. A informação foi acrescida pela convocação da população a participar do levante projetado pelo “Partido da Liberdade”: um grupo que se intitulava por Anônimos Republicanos. Ainda que as mensagens fizessem referência ao tempo futuro, as autoridades não desconsideram o peso das palavras: liberdade, república e revolução, que naquela conflituosa conjuntura de fim de século foram cadências da Revolução Americana (1776), Revolução Francesa (1789) e Revolução Escrava em São Domingo (1791). 

 

Assim, iniciou-se uma duvidosa investigação para se descobrir e punir os autores dos boletins manuscritos, que em razão das mensagens foram qualificados de pasquins sediciosos. Dias depois de concluírem que o autor dos boletins era o requerente Domingos da Silva Lisboa, homem livre, pobre e pardo, outros dois boletins em formas de cartas foram encontrados na Igreja do Carmo, colocando em xeque a autoria do então culpado, que àquela altura encontrava-se preso. Na primeira carta, o Prior dos Carmelitas Descalços era informado que tinha sido escolhido por plebiscito para no futuro ser o Chefe em Geral da Igreja Bahinense. Na segunda, o próprio governador da Capitania da Bahia, d. Fernando José de Portugal e Castro, foi escolhido como Cidadão Presidente do Supremo Tribunal da Democracia Bahinense para as funções da Futura Revolução. A partir desse momento, as autoridades enfrentavam dois problemas: descobrir os autores dos boletins manuscritos e os adeptos do levante que no futuro faria uma Revolução na Bahia. 

 

A partir dos depoimentos dos acusados, as autoridades locais perceberam que uma importante estratégia de aliança política com outros setores daquela sociedade tinha começado a ser construída, comprometendo, assim, os pilares da dominação colonial portuguesa na Bahia. A radicalidade daqueles homens estava posta, pois além de desejaram a libertação dos cativos, a isonomia nos critérios de ascensão na carreira militar e a liberdade de comércio no porto da Bahia, os adeptos do levante tocaram em duas questões extremamente delicadas para o Império Português. No boletim intitulado “Aviso n. 3”, a mensagem é muito clara: “povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus dispotismos, pelos seus ministros… Povos que viveis flagelados com o pleno Poder do Indigno coroado”, para afirmar em seguida que Castela aspirava a aliança com a França. Tais informações indicam que os adeptos de 1798 posicionaram-se em relação ao controverso debate sobre a legitimidade da regência de d. João VI, que foi formalmente reconhecido como Príncipe Regente apenas em 1799. Além disso, ao mencionarem a aliança entre Castela e a França, aqueles homens elaboraram uma dura crítica à posição de neutralidade da diplomacia portuguesa nos conflitos entre as potências européias, especialmente a França e a Inglaterra. 

O que significa afirmar que ao elaborarem os boletins manuscritos com suas demandas políticas e sociais, aqueles homens fizeram política e tentaram sensibilizar os vários setores daquela população para o projeto revolucionário, cujas demandas não nos autorizam a acreditar ter sido a Independência do Brasil. No entanto, cumpre destacar que quando homens dos setores populares fizeram política em base sólidas nas ruas da cidade de Salvador de 1798, eles invadiram um universo que à época lhes era proibido, um universo restrito aos homens virtuosos, na melhor tradição de Montesquieu. Ao fazerem política nas ruas da cidade, aqueles homens fizeram revolução. 

 

Por isso foram condenados à pena última por crime de lesa-majestade de primeira cabeça. João de Deus do Nascimento foi considerado o autor dos boletins manuscritos e o “cabeça” da projetada revolução, junto com Lucas Dantas de Amorim, Manuel Faustino e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Quatro homens livres, pobres e mulatos que foram enforcados e tiveram seus corpos esquartejados na manhã de 8 de novembro de 1799, na Praça da Piedade, em Salvador. Engana-se, no entanto, quem pensa que o trágico fim desses homens encerrou o ideario da Conjuração Baiana de 1798 ou da Revolta dos Búzios. No Brasil de hoje, apesar de nenhum homem livre, pobre, mulato e negro ser enforcado em uma praça pública chamada Piedade porque “ousou” fazer política, do ponto de vista da igualdade social, passados 214 anos do trágico fim daqueles homens, ainda há muito a se fazer. 

Patrícia Valim é professora da graduação de História da UniABC, doutoranda em História Econômica pela Universidade de São Paulo, com a tese “Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação na Conjuração Baiana de 1798”, autora da Dissertação de Mestrado em História Social “Da Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma memória histórica”, e autora do livro no prelo “Outras Abordagens no Ensino de História”, pela Editora Abril.

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