08/10/2018 | às 16h40
Foi quando colocou o risco do Brasil cair no círculo entre aqueles que integram o modelo Hollywoodiano ou Europeu de produção, marcado por seletividade, pobreza narrativa e trajetórias de pioneirismo que apagam aqueles que vieram antes: “Não precisamos de cineastas negros para destruir o povo negro, e isso foi o tipo de ambiguidade que senti no Rio. Jovens com muita energia, preparados para se apoderar do mundo, me fazem lacrimejar, e por outro lado, fico com medo deles, como se tivesse medo dos meus próprios filhos e filhas, porque o imperialismo adora pessoas desesperadas e famintas, é assim que tem se sustentado até hoje”.
Gerima é integramente do movimento L.A Rebellion, gestado na Universidade da Califórnia, e responsável por um fazer independente incomum a partir dos anos 1970. Nas suas imagens em movimento têm-se uma luta estética para encontrar um sotaque narrativo lastreado no descontentamento e no abraço aos homens e mulheres negras. Foi assim no começo da carreira quando Child of Resistence (1972) provocou a classe média universitária negra quanto às suas prisões capitalistas e suas projeções de masculinidade, e Bush Mama (1976) foi de encontro a experiência de afeto entre famílias que vivem em situação de cárcere e pobreza constituindo uma ética ainda incompreendida no cinema.
Ele refuta as receitas tanto de mercado, quanto o salvacionismo às pessoas oprimidas, a fim de não cair num empreendimento ancorado no ego a caminho do fascismo, por sinal, presente para ele nas histórias de heróis brancos, reproduzidas nos mesmos moldes por cineastas negros. A sua dialética multidirecional com o público escapa do modelo de narrativa com começo, meio e fim, ao reconstruir o script nas filmagens e fazer o público não perder uma passagem, caso contrário pode o deslocar da compreensão: “Sincronizo a imaginação com a narrativa do cinema. Eu sou uma forma cinematográfica, não algo que se encaixa num roteiro preestabelecido”.
É dessa forma que Teza (2008) reconstrói a sua ausência na Etiópia entre os anos 1970 e 1990 no alter ego de um intelectual que vê no retorno à vila onde nasceu um caminho de reconstrução comunitário. No mesmo filme, ele evidencia a importância da disposição das cores, e como elas expressam sentimentos ou transformações em nossas vidas, nesse caso, por meio do ocre que traduz a relação da sociedade com a terra no meio da instabilidade política que afeta as tradições e ímpetos transformadores de um país na zona colonial, mesmo sem ser jamais dominado oficialmente por europeus.
Autonomia
Saído de Los Angeles, Gerima tornou-se professor da Universidade negra de Howard, e na capital Washigton D.C construiu ao lado da companheira e diretora Shirikiana Aina no espaço cultural Sankofa. Lá é possível comer um sanduíche, assistir filmes e consultar a biblioteca onde seus seis filhos cresceram. É lá que ambos detém o esteio de autonomia para arrecadar fundos às obras por negar-se integrar às associações da burguesia negra dos EUA com Hollywood, ou mesmo elites africanas fascinadas com o Ocidente.
O seu cinema independente reconhece o dignidade do dinheiro público, fruto de taxas pagas por nossos familiares, todavia rejeita ingerência desde roteiro até a edição, chegando até os mecanismos de distribuição. São obras de baixos custos que demoram até 25 anos para serem concluídas, e contam com uma intensa participação dos membros da produção na perspectiva colaborativa que desfaz o poder unilateral do diretor, algo presente desde nascedouro do L.A Rebellion.
A sua obra mais conhecida, Sankofa (1993), foi produzida por Shirikiana, e a sua viabilidade financeira se deu porque a comunidade negra que fez filas e atravessou estradas para assistir nas salas de exibição. Uma narrativa, por sinal, com ares psicodélicos e transtemporal, onde mais uma vez consegue adentrar no olhar da mulher negra. A distribuição feita sem intermediários é a estratégia para evitar o distanciamento das pessoas que se identificam e a quem costumam conversar depois das sessões. Ele e Shirikiana evitam exibir em alguns festivais para agradar pessoas brancas, inclusive no Brasil, onde já rejeitou convites.
Esperança
A vinda à Bahia pela primeira vez foi em 2017, a convite de Ana Flauzina, na estreia do documentário sobre o pensamento de Gerima e do jornalista Edson Cardoso. Nesta segunda vez a ponte foi das amigas Falani Afrika e Urânia Munzanzu, inspiradoras para declarar ser o espaço capaz de “desenvolver uma versão bem sucedida do cinema negro”.
Falani é natural de Washigton, foi aluna de Gerima, e passou dez anos para dirigir o documentário “Maestrina da Favela” (2017), Elem de Jesus, uma jovem percussionista que resiste no seio escravizador e libertador do Pelourinho. Já Urânia, nascida no Pelourinho, filmou em África o projeto Merê – ponte entre dois mundos (2017), sobre o encontro entre sacerdotistas das nação jejê da Bahia e do Benin, que ainda vai virar um longa, e tem nas mãos imagens e argumentos arrebatadores, como Primeiro Beijo, sobre mulheres viciadas no crack.
A vinda ao Brasil foi fomentada pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, e a vinda à Salvador foi efetivada pela Diretoria do Audiovisual (DIMAS), da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), e com apoio da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan). Já a tradução ficou a cargo de Raquel Sousa e Rosana Chagas.