Mais do que uma crise política, o mundo parece estar vivendo uma crise da política. Mesmo a alternância de poder não tem conseguido agradar às populações que se sentem pouco ou nada representadas pelos governantes. Novos caminhos estão sendo buscados e a participação de cada cidadão é de suma importância para a elaboração de um novo modelo que atenda aos anseios da sociedade.
Na América Latina, os anos 90 foram marcados pela onda neoliberal que se alastrou, causando um descontentamento com as promessas não cumpridas e as perdas sobretudo para as classes trabalhadoras. A insatisfação converteu-se no terreno fértil para o florescimento dos chamados governos progressistas, representados por candidatos como Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), José Mujica (Uruguai), Fernando Lugo (Paraguai), Luís Inácio Lula da Silva (Brasil), Nestor Kirchner (Argentina) e Evo Morales (Bolívia), só para citar alguns. No Chile, uma coalizão de partidos de centro-esquerda, conhecida como Concertación Democrática, elegeu candidatos seguidamente desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet.
Vinte anos depois, o modelo desenvolvimentista se mostrava insuficiente e, por motivos diversos, estes governos foram cedendo lugar para outras opções. Foi o que aconteceu no Chile com a ascensão de Sebastián Piñera, no Paraguai com o impeachment de Fernando Lugo e posterior eleição de Horacio Cartes do Partido Colorado, que já monopolizara o governo por 6 décadas. Mais recentemente tivemos, na Argentina, a derrota de Cristina Kirchner por Mauricio Macri.
Entre os “heróis da resistência” permanecem Evo Morales e Nicolás Maduro, este último enfrentando dificuldades para manter o chavismo, em meio ao caos econômico e social e sem apoio do congresso, liderado pela oposição após as últimas eleições legislativas. Já Morales, que cumpre seu terceiro mandato até 2020, e que detém o recorde de presidente com mais tempo de mandato na Bolívia, amargou uma derrota no referendo realizado em fevereiro de 2016 que autorizaria reforma constitucional e nova reeleição. As exceções estão no Uruguai e Equador, onde Mujica e Correa conseguiram eleger sucessores.
Essa efervescência política se verifica também no hemisfério norte. A França vivenciou uma acirrada disputa entre a candidata de ultra-direita, Marine Le Pen, e Emmanuel Macron, de centro-direita, vencedor no 2º turno, para o qual haviam seguido com menos de 3 pontos percentuais de diferença no primeiro turno. A votação expressiva obtida por Le Pen, indica que o discurso baseado na xenofobia, na intolerância e na aplicação dura da lei (law-and-order) tem encontrado apoio de muitos eleitores. É a mesma linha de atuação de Donald Trump, atual presidente americano, cuja proposta de governo antagoniza com a de seu antecessor Barack Obama. Uma característica comum aos 03 candidatos – Macron, Le Pen e Trump – é a de serem outsiders ou seja, nenhum deles era político de carreira, um fator que influenciou eleitores descrentes da velha política.
As mudanças, ao que parece, não surtiram efeito e o descontentamento é grande. A ponto de o Papa Francisco, em discurso recente (28/06), ter feito duras críticas ao capital, aos governos e aos sindicatos por não conseguirem representar o povo. Os chilenos, depois da experiência com Piñera, reconduziram Bachelet ao Palácio de la Moneda. Na Argentina, Cristina Kirchner, acaba de se lançar candidata ao Senado, aproveitando as críticas às políticas sociais do governo de Maurício Macri, apenas um ano e meio depois dele tê-la derrotado nas urnas presidenciais. Fernando Lugo, destituído da presidência do Paraguai, por meio de processo polêmico, é senador de grande popularidade e favorito para as eleições de 2018. No Brasil, candidatos tão díspares quanto Lula e Bolsonaro aparecem como figuras de destaque nas enquetes de intenção de voto, na hipótese de Temer sair do governo.
Alguns analistas, como Aldo Fornazieri e Roberto Amaral, entendem que há uma crise de identidade da esquerda, que precisa se reinventar. E propõem a redução da fragmentação por meio da coligação de partidos, usando a Frente Ampla do Uruguai como exemplo. Fornazieri é um dos organizadores do recém-lançado livro “A crise das esquerdas”, que reúne a opinião de pensadores como Renato Janine Ribeiro, Carla Regina Diéguez, Tarso Genro e Guilherme Boulos, dentre outros.
Immanuel Wallerstein, sociólogo e um dos pensadores de maior projeção da atualidade, analisa o surgimento dos chamados partidos-movimentos, apresentados como uma nova forma de fazer política. Emergidos dos protestos populares, em várias partes do mundo, Podemos na Espanha,Sryza na Grécia, SNP na Escócia e Modi na Índia são exemplos deste modelo de instituição política, alguns mais à esquerda outros mais à direita. Segundo Rodrigo Nunes, professor de filosofia da PUC-Rio, a novidade dos também denominados movimentos cidadãos é que, em vez de representarem interesse de um partido ou de uma de coalizão de partidos, contemplam interesses diversos de partidos, movimentos sociais e não filiados, em regime de cooperação. Prevalece o interesse e controle da base sobre os representantes, evitando os acordos de conveniência e as disputas de poder.
Para Wallerstein, os partidos-movimento têm três desafios a compreender e superar: o primeiro é que o sistema-mundo constrange as nações e não se pode pensar que um governo tem total autonomia para fazer o que bem entender; segundo que, pequenas melhorias são possíveis neste cenário limitado e a terceira é que o partido não pode ser limitar ao curto prazo que deu causa ao movimento, mas perseguir uma ação global que transforme o sistema mundial no longo prazo.
No Brasil, a crise da política, agora agravada pelo escândalo da corrupção generalizada, coloca em descrédito todos os partidos e causa uma sensação de não haver saída. O desabafo poético de Cazuza, na letra de Ideologia, que dá título a este artigo, parece ressuscitar mais de 30 anos depois como se tivesse sido escrito agora. Observando os acontecimentos dentro e fora do país, penso que seja nova esquerda, partidos-movimentos, candidatos sem partido ou política law-and-order , ainda não dá para sabermos o que emergirá desse caldeirão em ebulição, mas certo é que precisamos estar presentes e atuantes neste momento de construir o ambiente político que desejamos para o futuro.
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Referências:
Os desafios dos governos progressistas na América Latina:
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/288054/Os-desafios-dos-governos-progressistas-na-Am%C3%A9rica-Latina.htm
Correa declara vitória de Lenín Moreno em eleição no Equador: ‘Revolução voltou a triunfar’
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/geral/46825/correa+declara+vitoria+de+lenin+moreno+em+eleicao+no+equador+revolucao+voltou+a+triunfar.shtml
Populismo europeu continua vivo, apesar da derrota de Marine Le Pen
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/05/1882046-populismo-europeu-continua-vivo-apesar-da-derrota-de-marine-le-pen.shtml
Papa critica sistemas de aposentadoria que privilegiam elites e forçam idosos a trabalhar por anos
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/47447/Papa+critica+sistemas+de+aposentadoria+que+privilegiam+elites+e+forcam+idosos+a+trabalhar+por+anos.shtml?id=bol&&utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Boletim_OM_280617_manh%E3
Cristina Kirchner oficializa candidatura ao Senado argentino em eleições legislativas de outubro
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/geral/47422/cristina+kirchner+oficializa+candidatura+ao+senado+argentino+em+eleicoes+legislativas+de+outubro.shtml
Volta pós-impeachment: Lugo é favorito para vencer eleição no Paraguai em 2018
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37614529
Medo da violência revigora tendências autoritárias e beneficia Bolsonaro
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/06/1895452-violencia-e-medo-insuflam-defesa-de-autoritarismo-no-brasil.shtml?cmpid=newsfolha
Revista Caros Amigos, Edição Especial Novas Esquerdas
http://www.carosamigos.com.br/index.php/edicoes-tematicas/6836-especial-caros-amigos-novas-esquerdas
Livro reúne reflexões de intelectuais sobre a crise da esquerda no Brasil e no mundo
http://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2017/06/nova-geracao-de-militantes-nao-quer-mais-as-estruturas-organizadas-verticalmente
Wallerstein: a hora dos partidos-movimentos
http://outraspalavras.net/posts/wallerstein-limites-e-esperancas-dos-partidos-movimentos/
Podemos e Movimentos Cidadãos na Espanha apontam reflexões também para América Latina
https://www.brasildefato.com.br/2017/04/05/podemos-e-movimentos-cidadaos-na-espanha-apontam-reflexoes-tambem-para-america-latina/