06/02/2018 | 17h15
Nos últimos anos acompanhamos uma série de invasões a templos sagrados ligados às religiões de matriz africana. Dois perfis compõem a turma daqueles que adentram sem pedir licença: a polícia (por meio de incursões denunciadas por diversos terreiros como desrespeitosas) e extremistas religiosos (que invadem estes espaços, impedem a realização de cultos, violentam fiéis e destroem símbolos sagrados).
No Rio de janeiro, traficantes perseguem há anos religiões de matriz afro. O estado registrou 800 atendimentos de intolerância religiosa em 2017, de acordo com ministério dos direitos humanos. Trata-se de uma média de dois casos por dia e, na maioria das vezes, as vítimas são praticantes de religiões de matriz africana.
No Brasil, entre 2015 e 2017, a cada 15 horas um relato por motivo de intolerância foi relatado, conforme dados do Disque 100.
No ano passado, policiais militares adentraram o terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, localizado no bairro da Liberdade, em Salvador. Na incursão policial uma arma foi apontada para a cabeça do Doté (como é nomeado o sacerdote da tradição Jeje Savalu) da Casa. Segundo o sacerdote, a polícia civil já havia conseguido permissão para vistoriar a área e, se a policia militar tivesse solicitado, também teria acesso. “Só que houve um desrespeito total porque não foi dialogado conosco, foi uma invasão ao nosso templo sagrado, foi quebrada a porta da nossa casa. Eles entraram em espaços onde só quem poderia entrar é quem tem certo grau religioso”, conta a moradora do Terreiro, Elisia Santos, que é iniciada no Ilê Axé Oya Tola.
Considerado pela Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), o único da nação Jêje Savalu que mantém os ritos originais da linhagem, o templo é tombado com base na Lei de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Salvador (8.550/2014). Realiza projetos sociais há mais de 30 anos para a comunidade da região.
No último dia 30, outro terreiro passou por situação semelhante na capital baiana. O Ilê Axé Torrun Gunan divulgou nota de repúdio denunciando desrespeito em incursão policial ao templo no Subúrbio Ferroviário.
Pelas leis brasileiras, os terreiros não precisam mais ficar escondidos muito menos obter licença da polícia antes da realização de uma “festa de santo”, todavia as questões que norteiam o racismo no Brasil são vastas e perigosas.
O artigo 5º da Constituição Federal estabelece que a liberdade de consciência e de crença é inviolável, assegurando a todos o livre exercício de cultos religiosos e tendo garantida a proteção aos seus locais de culto e às suas liturgias.
ENTRE O PRIVADO E O CULTURAL
“O Estatuto da Igualdade Racial qualifica clubes e por analogia os terreiros, como patrimônio cultural. A tendência no Rio de Janeiro e em outros lugares que acontecem os ataques é classificar como crime contra o patrimônio privado. Um terreiro é legalmente qualificado como patrimônio cultural, o crime é crime ambiental, previsto na lei ambiental, e a pena pode chegar a 5 anos de reclusão. Ao passo que, o que se considera crime ao patrimônio privado, é uma contravenção, e a pena máxima é de seis meses”, considera o advogado Hédio Santos, baseado na interpretação do art. 216 da Constituição Federal. O especialista alerta que a comunidade negra precisa se atentar para a forma como estes crimes estão sendo enquadrados.
No entendimento do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), também tomando como base o artigo 216 da Constituição, os terreiros só podem ser legalmente considerados patrimônio cultural se tombados.
“Só podemos considerar legalmente como patrimônio cultural brasileiro os terreiros que são tombados, entretanto cabe ressaltar que isso não significa que terreiros que não são tombados não tem seu valor reconhecido, ou não representam culturalmente o nosso país, sendo amplamente reconhecidos pela sua importância no cenário cultural da nação”, declara o IPHAN, ao Portal Correio Nagô, por meio de nota assinada pela técnica Marinalva Santos.
De acordo com a Lei Nº 7.716, mais conhecida como “Lei Caó”, está sujeito à pena de reclusão de um a três anos e multa quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. No entanto, são reincidentes situações racistas motivadas pelo credo no Brasil.
“Nós sabemos que esses crimes de intolerância religiosa acontecem porque nós naturalizamos o racismo de um jeito que ofender uma pessoa de matriz africana não é ofensa, invadir um terreiro para essas pessoas muitas vezes não é ofensa, eles não compreendem que estão invadindo um espaço sagrado”, desabafa Elísia Santos, sobre a intolerância que o povo de Axé lida.
Donminique Azevedo é repórter e editora do Portal Correio Nagô.
Beatriz Almeida é repórter-estagiária do Portal Correio Nagô.