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Jovens Comunicadores do Curso Comunicação Antirracista compartilham um pouco das suas histórias

No mês de Junho, o Instituto Mídia Étnica encerrou as aulas do Curso Comunicação Antirracista,  voltado para um público bem diversificado, que vai desde profissionais ou estudantes de comunicação, até aqueles que simpatizam com área, que não têm formação, mas atua neste ambiente, seja nas redes sociais ou em veículos comunitários e alternativos, neste amplo mundo virtual. 

Entre as atividades do curso, esta foi pensada para valorizar suas histórias de vida, tendo em vista que todos somos agentes multiplicadores e capazes de construir algo grandioso para nós e para os outros. A ideia é multiplicar e conhecer um pouco da história desses jovens negros, comunicadores, que já são referência na sua família, comunidade, nos veículos de comunicação em que trabalham ou nas redes socais. E na sequência compartilhar essas histórias inspiradoras com o público do Correio Nagô. Foram selecionadas cinco histórias:

Allyne Camylla Paz de Souza

Eu sou Allyne Paz, tenho 23 anos e moro em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Sou formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o meu amor pelo jornalismo se iniciou em meados de 2017, quando fiz o perfil de um senhor e ele se emocionou. Naquele momento eu pensei, “é isso que eu quero fazer pelo resto da vida”. 

Em 2016 eu comecei a assumir os cachos, após uma longa caminhada de transição capilar, que me auxiliou não apenas no reconhecimento do meu cabelo, mas também da minha raça, da minha história e todas as marcas que essas conclusões nos atravessam. Foi na universidade que eu tive a minha primeira experiência com o jornalismo negro e que trabalhasse com raça e classe. Fiz parte do programa Peri, da TVU-RN, que era voltado em ceder o espaço para a periferia falar sobre a história dela, que as pessoas, através das suas histórias de vida, contassem sobre seus territórios. 

Em 2019, no meu trabalho de conclusão de curso eu trabalhei com uma mini websérie documental, que relatava histórias de vida de 4 mulheres negras residentes e resistentes em Natal/RN. A partir daí eu não parei mais. Hoje sou mestranda em jornalismo na Universidade Federal da Paraíba, e nesse espaço eu trabalho diretamente com a participação das mulheres negras no jornalismo do Rio Grande do Norte. Minha avó é analfabeta, nunca aprendeu a ler e nem a escrever o seu nome, sou a primeira a fazer pós-graduação da família, e essa pesquisa é para ela e por todas aquelas que não conseguiram chegar até esses espaços de poder da sociedade. Seguimos ocupando, resistindo e construindo uma mídia antirracista e resistente.

Gabriel Conceição dos Santos

No meu primeiro ano no jornal A Tarde, trabalhando no impresso do Jornal Massa, fiz uma matéria que me marcou bastante. Sempre tive em mente trazer pautas sociais e ajudar pessoas do meu bairro a mostrar seu trabalho e uma dessas pessoas foi o Matheus. Jovem, morador de Cajazeiras 10 e apaixonado por futebol, tendo como seu principal sonho ser jogador profissional. Após tentar diversas vezes adentrar em alguma equipe pela categoria de base, Matheus bateu na trave diversas vezes, até que ele soube que o futebol dos Estados Unidos estava dando bolsas para jogadores brasileiros, que sonhavam entrar em campo profissionalmente. Matheus então mandou um vídeo jogando bola, e sem surpresa ele foi aprovado. Mas os custos da viagem estavam longe de sua realidade. Ele vendeu água no Carnaval, deu aula de futebol para crianças no bairro, sua mãe vendeu feijão para ajudar o filho, mas o dinheiro necessário estava longe de ser alcançado. 

Vi a história de Matheus e levei a pauta para o jornal. Conversamos por horas e ele me contou tudo. Ficamos ali no campo da Pronaica, com a bola nos pés e a caneta na mão. Voltei pra redação, escrevi o texto e no dia seguinte foi publicado no impresso e no online. Ele me ligou todo eufórico falando que várias pessoas ligaram pra ele, querendo ajudar e uma mulher em especial estava disposta a pagar sua passagem. No fim das contas, Matheus está nos Estados Unidos até hoje jogando como zagueiro na Equipe Tigers. Ele sempre me agradece quando conversamos.

Kleber Nunes da Silva

Sou filho de uma mulher negra, nascida em uma cidade do interior de Pernambuco, com tradição na exploração da cana-de-açúcar, mas também com remanescentes quilombolas na divisa com Alagoas. Ela com estudos completos até a 4ª série do primário, sempre foi empregada doméstica e revendedora de catálogos. Meu pai é um homem branco, natural de Natal, no Rio Grande do Norte, também de pouco estudo, já trabalhou de descarregador de caminhão de frutas a porteiro. Sempre moramos em favelas do Recife. Meus pais insistiram nos estudos, como único caminho para ter uma vida melhor e poder proporcionar que outros iguais também tivessem uma condição melhor.

Como melhorar minhas chances de sobrevivência num país que empurra a população negra para a marginalidade? E como tentar fazer com que outros negros e pobres tenham as mesmas ou até melhores chances? Aos 8 anos decidi ser jornalista sem saber ao certo o que isso significava, apenas que eu poderia contar histórias e denunciar injustiças. Contei do sonho na época para a professora, uma mulher branca, como a maioria que topei em algum cargo além dos serviços gerais, e ela me estimulou dizendo que eu estudasse cada vez mais.

Quatro anos após concluído o ensino médio, desisti do curso de administração que entrei apenas para estagiar e ajudar financeiramente em casa, fiz novamente o Enem e consegui minha bolsa 100% pelo ProUni, no melhor curso de jornalismo do Estado. Éramos apenas quatro negros, numa turma de 60 pessoas, e o começo foi bem difícil. Até conseguir o primeiro estágio, tinha que escolher muitas vezes entre voltar de ônibus, lanchar ou tirar cópias dos materiais das disciplinas. Não era raro optar pelo lanche, passar horas na biblioteca copiando e voltar para casa andando.

Cada etapa da universidade foi um desafio vencido, quanto mais toda estrutura em volta quisesse me convencer que ali não era meu lugar, mais eu tinha certeza de que estava trilhando o caminho certo, e assim fui construindo uma bagagem. Primeiro estágio em redação veio no último ano, em um jornal como sempre sonhei, e aí me deparei com a chance de trazer outras realidades como as minhas para as páginas do jornal mais antigo em circulação na América Latina, o Diário de Pernambuco. Nem sempre foi possível, linha editorial, outros olhares sobre o que é notícia, mas o esforço existia e deu para fazer algo em algumas situações.

Depois daí veio o primeiro cargo como repórter formado, dessa vez a editoria era economia. O jornalismo negro propriamente dito não fazia parte do meu trabalho conscientemente, mas olhando para trás, vejo que de alguma forma minha presença e minhas sugestões de enquadramento das pautas traziam esse recorte racial e também social por três anos. Dali parti para ser correspondente da Folha de S.Paulo, experiência que durou seis meses, até o fechamento da vaga, mas foi muito intensa. Depois fui convidado para fazer o trainee, e morei em São Paulo por cinco meses. Pude sentir além de um espaço majoritariamente branco, a falta de representatividade da minha região. Então adicionei ao meu jornalismo essa questão também do território. O olhar de um jornalista preto, periférico e nordestino foi então o norte que me levou a ser correspondente do Estadão em 2018, na cobertura eleitoral.

Desde outubro de 2020, integro a equipe da Marco Zero Conteúdo – entidade de jornalismo independente do Recife – por meio do programa Diversidade nas Redações, da ÉNóis Conteúdo. Aí sim, a partir dessa experiência e com toda bagagem já acumulada pelas redações tradicionais que passei, começo a escrever sobre pautas com essa consciência de pensar na população preta. Ainda é um desafio, mas tenho aprendido diariamente e tentado contribuir com esse debate.

Michele Azevedo Gama

A minha história não é muito diferente da de vários outros colegas que se enegreceram tardiamente e buscaram trazer suas vivências para a profissão. Resolvi cursar Comunicação Social, RP primeiramente e depois Jornalismo, pq desde criança gostava de acompanhar os telejornais. Mesmo não sabendo o quanto o significado de representatividade era importante.

Entrei como estagiária na produção do canal Sportv e há 11 anos, sou uma das poucas mulheres negras que integra a redação do Esporte da Globo. Nesse percurso, a militância começou a fazer parte da minha vida, e em especial no ambiente de trabalho senti que precisava ser mais participativa naquilo que eu acreditava e buscava como sendo um local mais diverso e igualitário.

Entrei para a liderança do Diáspora, grupo étnico-racial da Globo, participando de debates, atividades que ajudaram a trazer luz para o movimento negro na empresa. Atualmente também integro o Comitê de Diversidade do Esporte, grupo de profissionais da redação que discute desde ações para coibir atitudes preconceituosas no ambiente de trabalho, até um conteúdo mais diverso e inclusivo no que colocamos no ar. Também ajudo na produção de pautas e conteúdos para o podcast Ubuntu Esporte Clube, que é formado por jornalistas negros da redação.

Às vezes acho que demorei a achar meu lugar como mulher negra no jornalismo, mas isso me motiva a correr atrás do (suposto) tempo perdido e buscar cada vez mais lutar pelo que acredito, com as “armas” que tenho: a comunicação, a representatividade e disposição.

Rhamayana Barros Barreto

Eu sou filha de uma mulher negra não retinta e de um homem branco. Minha mãe não se reconhece como negra, pois sua mãe, mais retinta que ela, também  não se reconhecia. Vivemos uma história de negação da nossa ancestralidade negra, de apagamento das nossas raízes. Passei a infância lamentando não ter nascido com os olhos verdes de meu pai e seu cabelo liso. Muito nova eu busquei alisar o cabelo e controlar seu volume, e só em 2016 resolvi conhecer meu cabelo de novo e me entender com ele. Com a transição muita coisa mudou em mim. Veio a auto aceitação, afirmação e a busca por minhas origens. 

Como comunicadora, que trabalha numa escola, busco combater o racismo e a falta de representatividade através do meu trabalho. Em 2018, quando trabalhava num campus do Ifal, no interior de Alagoas, fiz um ensaio fotográfico para o dia da consciência negra. Lá os negros retintos são poucos e quando postei o convite nas redes sociais para participação no ensaio, muitos alunos chegaram até mim para dizer “acho que sou negro, por causa do meu cabelo, mas não tenho certeza” ou “vão dizer que eu não sou negro porque tenho cabelo liso, mas olha a minha cor”. Vi neles a minha dificuldade de reconhecimento identitário. Afinal, o que é ser negro? Muitos negros de pele clara se veem diante de uma dualidade que os deixam no limbo. Para os brancos eles são escuros demais, claramente não brancos, para os negros retintos, eles são claros demais, claramente não pretos. Esse limbo é um limbo de negação, de reforço da ascendência branca, em busca de uma branquitude inalcançável. A ancestralidade negra, por outro lado, é abandonada. 

Aquele momento para os alunos que participaram do ensaio foi um momento de afirmação, aceitação, reconhecimento, conexão com a ancestralidade, um momento de reforço da autoestima. Exatamente, o que a transição capilar me proporcionou. Cada aluno teve um post com suas fotos, onde eu contei um pouco sobre eles. A escola inteira invejou aquelas fotos, e eu fiquei feliz demais com o brilho no olhar deles, de ver sua negritude como protagonista da cena escolar. Para mim, essa ação foi muito especial, marcou minha atuação como jornalista na escola, como mulher negra, como alguém que valoriza demais a educação e vê na escola a esperança de um país melhor. Quero ajudar a construir a escola que eu acredito com a minha comunicação.

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