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Lágrimas negras: águas frias avançam para Salvador

Por Diosmar Filho[1]

ameaças da chuva

Nos últimos dias tive saudade de Cabo Verde, o arquipélago na costa ocidental da África e de um dos seus filhos, o amigo e engenheiro Antônio Pedro Borges, ex-presidente do Instituto Nacional de Recursos Hídricos (INGRH), apaixonado pelas águas, pela terra e pelo sol no Oceano Atlântico.

Nosso encontro ocorreu em Salvador, quando participou do I Fórum África, Brasil-Bahia pela Sustentabilidade das Águas (2008). Ressaltando que o Fórum foi reconhecido no âmbito Cooperação Sul-Sul, a política externa brasileira de integração com a América Latina e África. E no momento, fascistas e corruptos estão golpeando o Estado Democrático de Direito o que coloca em risco a importante política.

Voltando, no evento o engenheiro apresentou seus desafios, decorrente da escassez de água doce em Cabo Verde e quis conhecer as experiências de perfuração de poços, barramentos e gestão de reservatório, no intuito, de contribuir com o desenvolvimento do povo cabo-verdiano. Pois, vivem no semiárido abraçado por águas salgadas – e os gestores públicos são responsáveis por cada gota d’água doce, conquistada na exploração subterrânea e dessalinização da água do mar.

Tive oportunidade de conhecer, em 2009, a vida na Ilha de Santiago e sentir a riqueza construída na seca, usando do conhecimento, irrigam, plantam e colhem alimentos que sustentam sonhos, cantado por Cesária Évora em Lagrimas Negras.

Um jardineiro de amor, semeia uma flor e se vai.

Outro vem e a cultiva, de qual dos dois será?

Antônio conheceu as experiências de gestão de águas na Bahia e ficou otimista com nosso intercâmbio. Porém, amigo, fico pensando na sua reação estando em Salvador entre abril e agosto de 2015, onde os ventos e águas frias do inverno fez-nos chorar lágrimas de tristeza em não ter responsável pela tragédia decorrente das chuvas.

O que posso lhe dizer é que as imagens e fatos são: rios que transbordaram, avenidas e viadutos que alagaram, casas, barracos, prédios que desceram com os morros e pararam no asfalto os corpos excluídos, retirados da fria lama.

Todos ficaram indignados, porém foi a população negra soteropolitana que mais uma vez chorou a violenta perda de familiares. As tevês abriram campanhas de apoio aos miseráveis e os especialistas em climatologia falaram: “olha, pessoal, as chuvas nesse ano foram maior em metros quadrados que nos anos anteriores”.

O prefeito do município de Salvador distribuiu colchões e mantimentos, famílias foram abrigadas e os morros receberam lonas pretas. A polícia técnica contou os corpos, pondo em sacos pretos os pretos, vítimas do ano.

Marco Aurelio Martins_Jornal A Tarde

Marco Aurelio Martins_Jornal A Tarde

 

Pensando sobre o ocorrido, busquei o professor Milton Santos[2] para entender, porque se ignora tanto a Geografia e não se conhece o espaço geográfico como um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, sua definição varia segundo as épocas, isto é, com a natureza dos objetos e das ações presentes em cada momento histórico” (SANTOS, 2012, p. 166).

Milton Santos sempre nos ajuda e trago com o diálogo a cidade de Londres, não para uma comparação socioespacial entre nossas cidades, mais para conhecermos como as decisões estratégicas inglesas, deram condições de desenvolvimento em médio e longo prazo, desse centro financeiro importante para o mercado global.

É curioso saber que os ingleses assumiram o Rio Tâmisa como parte integral do seu desenvolvimento. O rio é um bem natural que corta a cidade e região londrina do sudeste ao leste, ignorado no processo de urbanização que estreitou o rio com bairros residências, portos e áreas industriais. Assistindo à série sobre grandes invenções no National Geographic, soube que os ingleses assumiram cuidar do povo e do patrimônio degradado pelas cheias, devido ao aterro das planícies de alagamento naturais e ao estreitamento do leito do Tâmisa.

Construíram a Barreira Tâmisa em Woolwich, nos anos 1970, uma gigantesca estrutura que levou uma década para ser finalizada e com previsão de funcionamento até o ano de 2070, no momento já em elaboração o projeto de continuidade. Também investiram no monitoramento climático no Atlântico, para se prevenir das marés alta, em situação de alerta as comportadas da barreira são acionadas contendo a entrada de água no Tâmisa, protegendo a cidade de Londres e região de inundações.

Contextualizando para você o que aconteceu em Salvador de 2015[3], segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), o índice pluviométrico de abril a julho foi de 1.569,6mm, o equivalente a 73% da média esperada para todo o ano que é de 2.144,0mm. Índice 44% maior que a média prevista para todo o período que é calculado em 1.088,30mm. Explicam que no ano choveu o dobro de 2014, que foi de 784,8mm.

Segundo o Relatório Final da Operação Chuva (2015) da Defesa Civil da Prefeitura Salvador:

-Se registrou de 15.206 solicitações de atendimento no período de chuva de abril e julho;

– Foram 4.323 ocorrências de deslizamento de terra e 4.120 de desabamento de imóvel;

– Representaram 55,5% do total no período, sendo 1.864 ameaças de deslizamento de terra, foram 1.603 imóveis avaliados e registro de 1.299 imóveis alagamento;

– Foram 3.586 famílias beneficiadas com ações da Prefeitura e os governos estadual e federal;

– Foram registradas 19 (dezanove) mortes decorrentes das tragédias.

Como lhe conheço Antônio Pedro me perguntará sobre os equipamentos meteorológicos usados para nos prevenir. Pois, a cidade dispõe de quinze pluviômetros automáticos instalados, porém, nenhum desses é de responsabilidade do gestor municipal, são equipamentos que atendem aos interesses de instituições públicas (estadual e federal) e privada, distribuídos nos seguintes bairros: Paripe, Valéria, Rio Sena, Águas Claras, Pirajá, São Caetano, Pituaçú, Brotas, Monte Serrat, Dois de Julho, Cabula, Caminho das Arvores, Federação e São Cristovão.

Só existe uma Estação Meteorológica na cidade e pertence ao INMET, localizada no bairro de Ondina.

O Brasil avançou no monitoramento da gestão para prevenção de desastre decorrente das chuvas, o relatório anual Perfil dos Municípios Brasileiro do IBGE (2013)[4] – item Gerenciamento de riscos e desastres decorrentes de enchentes ou inundações graduais, enxurradas ou inundações bruscas, é um desses instrumentos e aqui lhe mostro o nível de responsabilidade do prefeito de Salvador para prevenção de tragédias.

I – No relatório a Prefeitura Municipal de Salvador assumi:

– Existência de Plano de Contingência;

II – A Prefeitura Municipal de Salvador nega existência de:

– Projetos de engenharia relacionados ao evento;

– Sistema de alerta antecipado de desastres;

– Cadastro de risco; e

– Estimativa de população vulnerável aos eventos de enchentes ou inundações graduais, ou enxurradas ou inundações bruscas nas áreas urbanas.

Sei que me questionará sobre essa contradição, entre ter plano de contingência e não ter estrutura de prevenção. Lhe digo, amigo: a posição da prefeitura é totalmente irresponsável perante a Lei 12.608/2012 que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e a principal peça nacional, a gestão de sistema de informações e monitoramento de desastres.

Lucio Tavora_Jornal A Tarde

Lucio Tavora_Jornal A Tarde

 

Pois, meu amigo, se os ventos dos trópicos soprarem para cá, 2016 pode ser igual ou pior que 2015. Sei que teve conhecimento da tragédia no município de Mariana em Minas Gerais, onde ocorreu o rompimento da barragem de resíduos da empresa de mineração Samarco. Finalmente nesse caso se aplicou o Código Penal e os gestores da Samarco respondem criminalmente pelas mortes, vidas em risco, perda de patrimônio individual e coletivo de centenas de pessoas e a contaminação do Rio Doce.

No caso das tragédias decorrentes das chuvas, você não acha que deveria ser aplicada a legislação criminal? Avaliando se existiu omissão dos gestores municipais nos casos de deslizamento de morros, inundações e desabamento de imóveis, alagamento de vias, danos ao patrimônio (público e privado) e pelas mortes.

Isso porque a Defesa Civil de Salvador, órgão responsável pela prevenção tem como plano de contingência: telefones para registro das ocorrências, limpeza dos canais e plantão alertar para cuidar das tragédias – depois que tudo alagar, morros descerem, casas, prédios e barracos inundarem e rolarem.

Caro amigo, desculpa se minha saudade foi para lhe encher com essas coisas da Bahia, mais lembro sempre do seu compromisso com o desenvolvimento do povo cabo-verdiano, que o fez correr o mundo na busca de conhecimento. E isso me motiva a pensar que prefeitos, como o de Salvador, deveriam responder pelas tragédias como as que aqui ocorrem todos os invernos, não como fatalidade, mas pelo crime de omissão!

[1] Geógrafo, professor, ativista do Movimento Negro. e-mail: ptfilho@gmail.com | Twitter @etamundo

[2] SANTOS, Milton. Da Totalidade ao Lugar. Milton Santos. – 1. ed., 2. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 176 p.

[3] SALVADOR. Relatório Final Operação Chuva, 2015. Prefeitura Municipal de Salvador – Defesa Civil. 80p.

[4] Disponível em: http://munic.ibge.gov.br/ver_tema.php?periodo=2013&node=207&ordem=5.6&munic=292740&uf=29&nome=Salvador Acesso em: 14.04.2016

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