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Lavagem do Bonfim: Cleidiana Ramos afirma que alegria resiste às brigas culturais

16/02/2019 | 15h33 | Atualizada às 22h13

Oxalá é Senhor do Bonfim? É só só chegar a tradicional Lavagem do Bonfim para a aproximação entre os dois acontecer. De um lado, o Senhor da Boa Morte, do outro, Oxalá, o Senhor das Vestes Brancas; entre eles uma multidão que cumpre festiva um trajeto de 8 km, da Igreja da Conceição da Praia (Comércio) à Basílica do Senhor do Bonfim (Ribeira).

A jornalista e pesquisadora Cleidiana Ramos fez um levantamento com base em reportagens de até 104 anos para estudar 13 festas populares de Salvador, entre elas a Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim, que, em 2013, ganhou o título de Patrimônio Imaterial Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan). Em entrevista ao Correio Nagô, Cleidiana – que é Doutora em Antropologia – conta como a resistência cultural fez de um cortejo penitencial um itinerário de alegria. 

Cleidiana Ramos é jornalista, doutora em Antropologia, mestre em Estudos Étnicos e Africanos e graduada em Comunicação Social, todos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

“A igreja tenta retomar esse caráter penitencial, do flagelo, mas esta é uma festa em que o símbolo maior é alegria”, afirma Cleidiana. Sua tese foi produzida a partir da releitura de autores importantes sobre a antropologia das chamadas festas de largo.  “Como sinaliza o professor Ordep Serra [autor de Rumores de Festa e Águas do Rei], o Senhor do Bonfim é o único culto ao crucificado do mundo sem sofrimento”, relata.

Segundo o historiador Cid Teixeira, a festa teve início com o ex-voto, peça oferecida ao santo da Boa Morte pelo capitão Teodósio Rodrigues Faria ao passar por uma tempestade cruel. “É importante lembrar que a Lavagem é um conjunto de celebrações, a festa é um novenário que culmina no domingo, mas para toda Bahia a festa é a lavagem das escadarias”, brinca a pesquisadora com a peculiaridade da festa.
Aproximação por Semelhança

“Embora se lembre do rito das Águas de Oxalá, a Lavagem é uma festa que acontece a partir de um rito, que dentro do candomblé não seria do mesmo jeito”, afirma. A pesquisadora conta que é preciso ter cautela para usar termos como o sincretismo. “Talvez o que acontece no Bonfim é o que o professor Ubiratan Castro e o professor Ordep Serra chamaria de um afro catolicismo”, aponta.

As religiões não possuem princípio de pureza para a pesquisadora, assim todos os encontros das religiões geram trocas, adições e diferenciações de ritos. “O que podemos dizer é que há uma semelhança, mas não que ali está às Águas de Oxalá, são aproximações por semelhanças”, descreve Cleidiana. “Acabamos não compreendendo algumas inteligências e articulações extremamente aperfeiçoadas que estavam por trás de relações como estas”, expõe.

Segundo a doutora, o cristianismo católico mantêm diversas práticas religiosas que são encontradas em outras religiões não cristãs. “Por exemplo, o próprio natal recupera cultos do equinócio”,  conta. “É assertivo dizer que há um diálogo entre a lavagem para a festa do santo e um rito específico do orixá”, sinaliza.

Pense que você é uma mulher iorubana, que é trazida ao Brasil neste período e encontra um culto com o que você via sendo realizado para Oxalá.. Você vê as pessoas de branco durante o culto e pensa: parece com Oxalá. É trazendo a analogia do professor Ordep que Cleidiana explica como a aproximação pode ter acontecido. “Não é Oxalá, parece com Oxalá”, reforça.

Do trajeto de Oxalá à chegada ao Bonfim  

O cortejo das baianas com água de cheiro com vaso na cabeça lavando as escadarias nos remete a apenas uma das simbologias do candomblé que é destinado para Oxalá. “No itan (poema mítico), Oxalá faz uma viagem e por teimado em fazer os ritos propiciatórios para Exu sofre diversos infortúnios ao ponto de chegar alquebrado e maltrapilho as terras de seu filho Xangô, rei de Oyó”, narra Cleidiana.

“Oxalá reconhece o cavalo de seu filho e se aproxima. As cavalarias de Oyó eram muito famosas e vigiadas pelos soldados, que confundem Oxalá com um ladrão e o prende pela suposta desonra. A partir de então, o reino passa viver por anos de desgraça, o que faz com que Xangô procure um babalaô que descobre o prisioneiro injustiçado”, continua.

Ao fim do conto, a população é convidada pelo rei a trazer em silêncio água sobre a cabeça para banhar Oxalá, que é ritualizado nas tradicionais casas de candomblé na solene Águas de Oxalá. “É este itan que vai ser aproximado, mas a religiosidade de matriz africana traz em sua filosofia a festividade como diferencial. Até o álcool, que é uma interdição de Oxalá, as pessoas bebem ao passo que prestam reverência ao Senhor do Bonfim ou a sua fé”, aponta.

A lavagem das igrejas para prepará-la para a festa do santo eram  comuns na tradição portuguesa e trazidas ao Brasil do período colonial. “Se pensarmos no contexto, por conta da tragédia que foi a escravidão, o trabalho braçal da lavagem era destinado aos negros e negras escravizados”, ressalta. Enquanto trabalhavam, a população escravizada aproveitava para celebrar o que não era bem visto pelo catolicismo da época.

Alegria Resiste

Cleidiana, que viveu sua infância em Iaçu (Chapada de Diamantina), lembra que a limpeza e a ornamentação  da igreja do padroeiro, Coração de Jesus, começava durante a tarde e entrava pela noite. “Para a gente que era criança era mais uma farra, um barato ficar com os pés dentro d’água, imagina se ampliarmos para dezenas de pessoas”, observa a pesquisadora.

Foto: Tatiana Azeviche/Ascom Setur

Com a dita balbúrdia sendo matéria dos jornais da época, a Igreja Católica proíbe que a lavagem acontecesse no interior da igreja, passando a acontecer no adro e depois nas escadarias. “Se pensarmos o catolicismo desta época, encontramos um catolicismo que não leva o festejo em conta como festa católica. Ainda mais para o Senhor da Boa Morte, que protege as pessoas de mortes terríveis”, avalia Cleidiana.

“Não é uma festa de reminiscência africana, mas a Lavagem possui vários elementos que foram incluídos por grupos civilizatórios, o que tem de mais africano para mim é a resistência”, conta. “Digo que é de resistência por ser de devoção popular, de ter maioria negra e de ser um contraponto às ortodoxias e rigidez da igreja. É uma festa que extravasa, que não é possível colocar numa camisa de forças”, diz.

A pesquisadora conta que em todas as histórias das festas do verão baiano sempre houve conflitos e tensões com o poder público ou com a igreja, mas as camadas populares sempre conseguiram subverter a ordem. “É o mais bonito para mim, por ser subversivo. Tanto que a Igreja tenta manter um cortejo penitencial, em uma festa que nada tem de penitência. Os 8 km é uma penitência, mas uma penitência alegre”, afirma.  

Marcelo Ricardo é repórter-estagiário do Correio Nagô.

Com a supervisão da jornalista Donminique Azevedo.

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