A opinião é de economista Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU), que concedeu entrevista à Carta Maior. A Lei de Cotas acaba de ser regulamentada pelo governo federal e determina a reserva de, no mínimo, 50% das vagas em instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação. Fundado em 2000, o MSU recebeu esse nome de Dom Pedro Casaldáliga e, desde então, tornou-se interlocutor do debate educacional no país.
O dia 15 de outubro de 2012 é uma data de festa para o economista Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU). O motivo da comemoração está publicado na Seção I do Diário Oficial da União: a regulamentação da lei que determina a reserva de, no mínimo, cinquenta por cento das vagas em instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, além das cotas raciais.
Para ele, trata-se de uma conquista memorável, cuja dimensão a é de uma nova abolição, “no sentido de garantir as condições objetivas e subjetivas para uma distribuição de renda, para a entrada do país na era do conhecimento e para que mitos da realidade brasileira sejam combatidos de fato, com políticas públicas – como o mito da democracia racial”.
Com a regulamentação da medida, 12,5% das matrículas em 59 universidades federais brasileiras serão reservadas para cotistas já em 2013. Esse percentual será elevado nos anos seguintes até chegar ao mínimo de 50% em 30 de agosto de 2016. A lei, aplicável em cada processo seletivo por curso e turno, contempla também um critério social, já que metade das vagas reservadas serão destinadas a candidatos cuja renda bruta por pessoa seja igual ou inferior a “um inteiro e cinco décimos” de salário mínimo.
O presidente do MSU se sente aliviado com a conquista, mas afirma que “a luta não acabou”. Para ele, é preciso que o Estado possa garantir a permanência no Ensino Superior para que o aluno extraia dali o melhor, e não “para entrar na fila da esmola dentro da universidade”.
Custódio nasceu em um bairro rural do município de Barão de Antonina, sudoeste do estado de São Paulo, na divisa com o Paraná. Filho de costureira e de lavrador, trabalha desde os sete anos e sempre foi aluno de escola pública. Formado em Economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e estudante do mestrado em Ciências Humanas e Sociais da UFABC (Universidade Federal do ABC), é um dos criadores do MSU no início dos anos 2000.
Seu objetivo é fazer com que pessoas como ele, “exceções que estampam capa de revista”, não sirvam de respaldo para afastar do debate político as medidas de democratização do ensino de qualidade no Brasil. “É um apartheid comunicativo, no qual exceções viram manchetes de jornal, viram capa para justificar as cotas do privilégio”, diz.
Carta Maior – O que significa, para o senhor e para o MSU, o fato de a Lei de Cotas estar publicada e regulamentada no Diário Oficial?
Sérgio José Custódio – Significa uma nova abolição na história do Brasil. É um novo tempo, um gesto da presidenta Dilma Rousseff que resolve um problema histórico que a abolição deixou. A abolição foi feita com dois parágrafos. “Decreta-se abolida a escravidão no Brasil” e “Revogam-se as disposições em contrário” (1988). Ao negro não se falou da casa, da escola, da terra, do trabalho, da renda, de nada. Por isso, a dimensão do que foi aprovado é de uma nova abolição. Além disso, quebra o paradigma neoliberal imposto ao país nos anos 90 porque a lei trata com dignidade a escola pública, que é um bem público. É uma nova abolição no sentido dos povos negro e indígena brasileiros e também porque é uma aposta na escola pública, que sofreu todo tipo de ataque. E é um elemento estruturante da chamada mudança social no país, que foi o alargamento daquilo que se chama de nova classe média, que são trabalhadores e trabalhadoras que tiveram mudanças nas suas vidas, uma ascensão social. Cria-se uma ponte entre a escola pública e a universidade pública e valoriza-se o ensino técnico. Desenha-se no Brasil um movimento estruturante do Estado brasileiro no sentido de garantir as condições objetivas e subjetivas para uma distribuição de renda, para a entrada do país na era do conhecimento e para que mitos da realidade brasileira sejam combatidos de fato, com políticas públicas – como o mito da democracia racial.
CM – Um argumento que sempre está no discurso dos opositores à política de cotas diz que a lei provoca uma queda da qualidade da universidade pública, por um lado, e um esquecimento em relação à escola pública, de outro. Esse argumento é falacioso?
SJC – É falacioso porque desconsidera a educação como um processo coletivo e a coloca como um processo individual. 5,79 milhões de pessoas farão o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em novembro. Isso significa que a maioria veio da escola pública. Significa que o sonho de ir à universidade passa a ser compartilhado por uma geração inteira e pelas famílias dessas camadas populares brasileiras. Isso repercute dentro da sala de aula de uma escola pública, repercute nas famílias. Há um esforço competitivo em dominar conhecimento. Ao tirar a luz do indivíduo e colocar na instituição, na escola pública, naquele povo que construiu este país com seu sangue, que é o povo negro, e no povo indígena, a lei aproxima as diferenças étnicas no país, que estavam separadas, para um mesmo ambiente. Isso gera maturidade e um novo ambiente cultural na universidade. Então, é um choque de qualidade na universidade. Obviamente, do mesmo jeito que aquele menino que passou na peneira do Flamengo e veste a camisa do time, [o aluno cotista] vai dar o sangue para ocupar a posição de titular. E esse titular vai ser o futuro médico do sistema público do sistema de saúde, um futuro engenheiro, um futuro pesquisador. E a lei tem outra grande dimensão: ela reserva vaga por turno e por curso. Portanto, vai acabar também o escanteamento, em alguns lugares, das camadas populares. Isso dá um choque de qualidade na pauta de pesquisa científica, desde a iniciação científica à pós-graduação, e aproxima, por exemplo, a história da África, que passa a ser ensinada por professores negros. A visão do projeto é republicana, da educação como um direito, como um bem público, ao contrário da ladainha neoliberal, que colocava a educação como mercadoria.
CM – Com o decreto firmado em Diário Oficial, a luta do MSU e dos movimentos de educação acabou?
SJC – A luta não acabou, ela continua. Se nós imaginarmos que, no Brasil, essa luta saiu primeiramente do Movimento dos Sem Universidade (MSU), do movimento negro, do movimento indígena e dos cursinhos populares espalhados pela periferia até chegar a Brasília, você vê, ao longo desses 10 anos, vários episódios. É uma luta que continua porque nós não acreditamos mais em política pública sem participação popular na gestão dessa política. Nós temos expectativa de que o Ministério da Educação institua um conselho de acompanhamento social da lei de cotas equivalente ao que tem no ProUni, por exemplo. Nós temos expectativas de que essa política seja intersetorial porque, dada a enorme e trágica desigualdade social brasileira, é preciso que o Estado garanta a permanência na universidade. Novamente, essa lei é um novo paradigma na educação porque o discurso neoliberal falava que a universidade tinha que separar o que era atividade-fim da atividade-meio. Comer, ter livro, ter laptop, ir ao cinema, na ética neoliberal, era atividade-meio, e a universidade e o Estado não precisavam se preocupar com isso. Isso era deixado à sorte individual, pela lei do mais forte. Hoje o país tem condições de usar o Fies, o sistema de financiamento que existe para o setor privado, para as famílias que estão na chamada classe média e querem que seus filhos estudem na universidade pública, mas para extrair dali o melhor, e não para entrar na fila da esmola dentro da universidade. Então, o financiamento do Fies tem que ser estendido para esses estudantes, seja para a compra de livros, computadores, que são caros no Brasil. Comer também é fundamental. É preciso estreitar a relação com restaurantes populares, organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, como forma de ter nas universidades um bandejão. O mesmo vale para a moradia estudantil, tal como foi criada na Unicamp, por exemplo, em que era um projeto de edificar uma universidade, de fincar um pensamento nacional. É essa ética que nós também queremos com esse novo projeto de lei: que as universidades passem a criar moradias. Isso interessa para o sistema produtivo nacional, para as empreiteiras, e é barato. Interessa para as universidades, que precisam ser estruturadas. Este país precisa de doutorandos, de mestrandos, e a moradia estudantil faz parte dessas condições objetivas para garantir o conforto para a produção intelectual.
CM – A aprovação da lei de cotas não foi um processo tranquilo. Ao contrário: os setores que se opuseram a ela o fizeram de modo contundente. Quais foram os principais desafios que os movimentos sociais enfrentaram ao longo desses anos?
SJC – Os principais problemas foram de ordem política, na arena do Congresso Nacional, e da ordem da comunicação – o filtro daquilo que acontecia e era passado ao restante do país. Nós conseguimos, num primeiro momento, um acordo político que as pessoas achavam impossível, que foi o acordo na Comissão de Educação da Câmara, que aprovou o projeto por unanimidade. O então PL 73 passou a ser o carro-chefe da lei de cotas – projeto da deputada Nice Lobão, do então PFL, junto com a relatoria do deputado Carlos Abicalil, então do PT. Esse acordo foi feito por conta da pressão dos movimentos sociais porque eram partidos distintos e, no caso da deputada Nice Lobão, não era a posição do PFL, mas a posição dela. Na Comissão de Direitos Humanos, teve uma atenção muito grande. Mas, naquele momento, alguns setores da intelectualidade, liderados pela antropóloga Yvonne Maggie, da UFRJ, lançaram um manifesto contra. Nós conseguimos vencer isso quando foi a matéria foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em 2005. A partir daí, houve uma grande campanha orquestrada por setores da mídia contra o projeto, com grandes jornais e uma famosa revista semanal. O então líder do PSDB, Alberto Goldman, e o líder do PFL, Rodrigo Maia, apresentaram recurso ao plenário da Câmara, o que travou o projeto por lá até 2008. Mas, em 2008, havia uma nova situação e nós fizemos um trabalho de coleta de assinaturas em um corpo a corpo com cada parlamentar. Foi um trabalho em que o MSU se fez presente no cotidiano da Câmara e nós passamos a visitar as grandes bancadas, as grandes reuniões tanto partidárias quanto interpartidárias. Deu um conjunto de 270 assinaturas, que compunha a maioria. No dia 19 de novembro de 2008, depois de várias tentativas de colocar em votação o projeto, nós conseguimos fazer um acordo e o levamos à Presidência da Câmara. Comunicamos o Gilberto Carvalho, da presidência da república, ele aceitou o acordo também. Eu estava na Câmara, sem ter onde dormir, e o então deputado Vicentinho me levou para o apartamento funcional dele. Acordamos cedo e, no dia seguinte, o Chinaglia colocou em pauta. Foi simbólico porque foi no dia de Zumbi de Palmares, dia 20 de novembro de 2008, que foi a votação.
CM – E quanto às batalhas no Senado, travadas mais recentemente?
SJC – Este foi o segundo momento. Foi uma batalha com dois senhores: Marco Maciel e Demóstenes Torres. Obviamente, nós estávamos muito entusiasmados em 2008 e achávamos que seria uma questão de segundos porque tínhamos participado da luta pela aprovação do ProUni e tínhamos feito rapidamente esse circuito Câmara-Senado. Mas, no Senado, o que vimos foi um teatro de horrores porque toda ancestralidade dos preconceitos brasileiros foram mobilizados contra nós, tanto pela mídia como por aquilo que a gente chama de uma coalizão anticotas, liderada pelo Demóstenes Torres. A audiência pública foi adiada até o limite para não acontecer, para não dar tempo de aprovar o projeto. Aprovado o projeto na CCJ, ele teria uma tramitação rápida. Não deixaram ler o pedido de urgência no Plenário – tínhamos maioria, mas o Demóstenes obstruía, ficava de plantão. Quando ele assumiu a presidência da CCJ, em 2009, ele, que estava como juiz e advogado, cria um discurso nacional. Ali foram os momentos mais violentos de enfrentamento no sentido da violência simbólica e da violência discursiva. Criamos um comitê brasileiro pela aprovação do projeto, que reuniu o movimento de educação, o movimento indígena e o movimento negro; fizemos a denúncia do neobranqueamento no Senado; fizemos diversos abaixo-assinados e não aceitamos as proposições do Demóstenes, que eram duas: ele topava votar se reduzisse o percentual da escola pública e se tirasse a questão racial do projeto, que branqueasse o projeto. Nós negamos esse acordo porque nosso argumento era bem simples: qualquer número diferente de 50% era arbitrário para qualquer um dos lados. Se fosse para considerar o peso real da escola pública, tinha que elevar a 88%. Nós já estávamos cedendo. Creio que ali foi o maior enfrentamento e, quando ele perde a CCJ, leva a decisão ao STF para impedir a votação. Então, ele judicializou o projeto de cotas quando mobilizou advogados e o partido. Ali você vê ao vivo e a cores as ofensas, que ficaram registradas, quando ele disse indiretamente que não houve estupro na escravidão, que o sexo foi consensual, e disse que o escravo foi o primeiro produto de exportação do Brasil. O Demóstenes que conhecemos desde dezembro de 2009 foi um feroz sinhozinho e, quando caiu a máscara dele com as denúncias, para nós, não era novidade, porque todo sinhozinho tem seu pé-de-meia muito bem feito.
CM – Em todas as reuniões feitas junto ao governo, como aquela realizada na segunda-feira (8/10), quais movimentos sociais estavam presentes?
SJC – Muitos movimentos, estava bem legítimo. O que nós requeremos é que o movimento indígena, o movimento negro e o movimento de educação estejam presentes. Acho que, nesse sentido, o Ministério da Educação entendeu. E, particularmente, que fosse reconhecido o protagonismo, até porque a aprovação dessa lei é didática para a democracia brasileira. Significa que a sociedade e os novíssimos movimentos sociais lutaram para construir leis no sentido de garantir direitos. Manter o diálogo com Ministério da Educação é condição para sustentar a existência desse projeto, até porque, pela história brasileira, ninguém dá o braço a torcer. Nós acreditamos que esses setores anunciam uma verdadeira guerra contra o Enem e contra a lei e cotas. Vamos vivenciar novas cenas…
CM – Quais, por exemplo?
SJC – A mobilização dos estigmas e do preconceito, a mobilização conservadora, a ação nas redes sociais, de caráter individual, e de movimentos proto-racistas e preconceituosos. Nós vivemos isso. Houve uma reação contra o MSU, por exemplo, da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), que é prova desse movimento ultraconservador que nos avizinha. Como a escola pública nunca vai ser anunciante de grandes revistas e nem financiadora de campanha eleitoral, a história nos mostra que também terá um ataque contra a escola pública tentando desqualificá-la. É preciso que se diga que o país produziu indústrias perversas – por exemplo, uma indústria do vestibular e da educação. É uma indústria de uma educação artificializada, que não produz, mas reproduz conhecimento e mantém a elite com os dentes de fora nas suas posições de reprodução da desigualdade no país. O padrão de renda no país é tão desigual que, se a chamada nova classe média, muito pela propaganda da indústria do vestibular, decidisse, num ato de loucura, colocar seus filhos na escola privada, não haveria dinheiro para fazer isso. E não há nada que garanta que aquela escola privada terá a qualidade vendida. É uma questão estrutural. O Estado acredita que apostar na escola pública é o caminho mais rápido para o próprio desenvolvimento do país. Esta lei não é contra o ensino privado porque 50% é um universo tão grande de mercado e, culturalmente, a universidade vai chegar a tanta gente, que variados produtos educacionais serão lançados.
CM – E quais atos palpáveis levam o senhor a dizer que estamos vivenciando um cenário de guerra na educação?
SJC – Em São Paulo, em 2006, houve quase 500 mortes na periferia, promovidas com a ação direta ou indireta do estado. A guerra se traduz, por exemplo, no genocídio da juventude negra em São Paulo; na opção do setor imobiliário por construir condomínio fechados; na existência, para cada policial, de cinco homens armados de segurança privada para proteger a propriedade. A guerra é real e, obviamente, a dimensão simbólica dela se traduz na educação. São Paulo foi o estado que por último aboliu a escravidão do café e, ainda ao abolir, não deu nenhuma indenização e nenhuma política pública para seus escravos. São Paulo faz uma política de perfumaria nas suas universidades, que precisa ser denunciada como um ingrediente da violência simbólica da guerra. A USP não tem cotas, mas tem uma cota do privilégio, que é um perfil social que ocupa os principais cursos. Não tem o negro dentro da USP, não tem o pobre dentro da USP, não tem a escola pública dentro da USP nos principais cursos e carreiras. Ora, a USP e a Unicamp são sustentadas com o dinheiro público. Além disso, foi São Paulo o centro de resistência contra a política de cotas. O Alberto Goldman, vice-governador do Estado, é o mesmo que liderou a campanha contra as cotas. O único senador que votou contra as cotas no Senado foi Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB de São Paulo, que estudou na USP com dinheiro de todos. A violência real tem uma dimensão na violência simbólica porque os espaços são segregados. E a guerra também é no campo da comunicação. É dito e repetido que é através da Fuvest que você será avaliado, que ela seleciona os melhores. Isso é uma piada de mal gosto, uma nojeira intelectual. A Fuvest seleciona os melhores economicamente. Basta olhar as estatísticas de propaganda que estampam os rostinhos bonitos aprovados pela Fuvest. O discurso do mérito é vendido como violência simbólica e atinge os pobres e os estudantes da escola pública porque os inferioriza, mexe com sua autoestima e não traz investimentos novos na escola pública. Esse apartheid é um registro da guerra. É um apartheid comunicativo, no qual exceções viram manchetes de jornal, viram capa para justificar as cotas do privilégio.
CM – Como você se tornou um brasileiro que, com dificuldade, fez um curso superior e cursa um mestrado em uma universidade pública?
SJC – O que me fez ir para a universidade foi a consciência política. Trabalhei na roça desde os sete anos de idade na Serra dos Pais, em Barão de Antonina, região considerada por muito tempo o ramal da fome no estado de São Paulo. Tinha um tempo em que era celeiro agrícola, mas, com as geadas, teve um declínio total da produção de feijão e café. Teve um êxodo rural tardio, do qual participei. Fomos trabalhar em Itaporanga e, quando meu pai morreu de Mal de Chagas, nós viemos a São José dos Campos – fui trabalhar na Kodac. Quando estudava na escola pública no Ensino Médio, formei minha consciência política no sentido de perceber tudo o que tinha acontecido comigo, e que não era um caso individual. Então fui para a universidade. Sou um estudante retardatário. Tive que abandonar a escola. Eu fazia um cursinho de manhã e trabalhava na fábrica das 15h à meia-noite. Acho que ir para a universidade e ver a diferença social foi dolorido demais, inclusive para minha família. Consegui, aos trancos e barrancos, me formar. E nós, na universidade, juntamos os negros, os pobres e iniciamos o processo dos cursinhos populares. Foi quando começamos a fazer um trabalho de educação popular resgatando a experiência com educação popular e com o movimento negro. Foi muito difícil fazer isso, naquela época, na Unicamp. Passei a trabalhar no Banco do Brasil como concursado, me casei e me formei já depois de casado. Então decidi que não queria mais trabalhar no banco e passei a fazer movimento social junto com o MSU.
CM – Como o MSU se tornou um interlocutor relevante no debate educacional no Brasil?
SJC – O trabalho bonito nas periferias de Osasco e de Guarulhos, em Cidade Tiradentes, no Jardim Ângela, no Campo Limpo, em Cidade Dutra, em Santo Amaro, na Zona Norte, a luta para transformar o Carandiru em universidade, a luta por universidade municipal, pela criação de um sistema público de bolsas – que deu no Prouni – foram as lutas que referenciaram o MSU. O movimento ficou muito famoso, por exemplo, quando fez manifestações para o Carandiru virar universidade. Apanhamos da polícia em frente ao Carandiru. Mas ficou mais famoso ainda quando se criou o Prouni. Só quem tinha trabalho real na periferia sabia da importância para as famílias da existência do Prouni. A maioria dos movimentos contra o programa só veio depois. Não era o caso dos movimentos que tinham trabalho de educação popular, como o MSU e o Educafro, que, na prática, deram a ideia. Lembro de conversas com o Haddad, do encontro com o Lula na campanha eleitoral, de que fomos falar no lançamento do Prouni. O então ministro Tarso Genro nos ligou e disse: “O protagonismo é de vocês. Vocês merecem!”. Ele chamou o povo lá. Ali nós tomamos a decisão de continuar a luta. E aquela experiência de ir ao Congresso, de sair da periferia, de lotar ônibus, de passar fome em Brasília… Acho que a gente fez como uma verdadeira missão, com a noção de que dava para conquistar, além do trabalho nos fins de semana nos cursinhos populares, eu sempre dei aula de história. Nós levamos a um reconhecimento prático. Conseguimos transitar de ministérios para as comissões em função da legitimidade da luta. O MSU não teve nenhum padrinho.
CM – Quando o movimento começa, de fato?
SJC – O nome “MSU” foi dado pelo Dom Pedro Casaldáliga na Unicamp. O MSU começa quando os trabalhos de cursinhos populares, que começam a existir na Unicamp, quebram com a ótica da ação de ONG e começam a ter causas gerais. Uma primeira causa é a questão da isenção da taxa de vestibular. As pessoas não conseguiam pagar a taxa para fazer o vestibular. Já havia reuniões de cursinhos populares, da pastoral da juventude, do movimento negro. A gente já fazia as reuniões, mas não tinha um nome. Quando o Dom Pedro falou, caiu como uma luva. O MSU existe enquanto movimento social, como um coletivo nacional.
CM – Esses resultados todos permitem uma comemoração?
SJC – A comemoração é uma das marcas do movimento popular. A coisa que mais alimenta a luta popular é a vitória. Nós jamais teríamos chegado à luta das cotas se não tivéssemos conquistado o Prouni, se não tivéssemos os cursinhos populares com apostilas, professores dando aulas com qualidades, mesmo que isso tenha sido feito aos trancos e barrancos. Isso precisa ser comemorado.
Daniella Cambaúva
Fonte: Carta Maior