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Mãe e filha, 672km de força motriz

20/11/2018 | às 17h23

“Motriz é o que move, é força, tudo que minha mãe significa pra mim”

Saudade, afeto e vontade de transformar silêncio em linguagem. São os sentimentos motriz que permitiram a cineasta Tais Amordivino  coragem suficiente para expor Dona Bete, sua mãe e a vida delas na telona. “Motriz” é uma obra documental, que retrata a relação da diretora com a mãe, que vive a 672 km de distância. A narrativa de afeto e coragem, também costura pautas caras para as mulheres negras: solidão, perdas e afetividade.

O filme, que circulou alguns festivais no Brasil e recentemente foi selecionado no PLATEAU – Festival Internacional de Cinema da Praia em Cabo Verde, foi lançado no XIV Panorama Internacional Coisa de Cinema, onde também esteve concorrendo. Confira a entrevista exclusiva concedida ao Correio Nagô, pela diretora Tais Amordivino:

CORREIO NAGÔ: Como foi quebrar a linha da pessoalidade enquanto cineasta e dirigir um filme onde também é protagonista? Inclusive contrapondo a construção eurocêntrica que supõe afastamento do objeto documentado.

TAIS AMORDIVINO: Existem três pontos que me atravessam em Motriz e me faz refletir sobre o quão importante é nos apropriarmos das nossas próprias narrativas e sermos protagonistas das nossas histórias. Primeiro, Motriz é minha vida exposta, é a vida da minha mãe, as nossas dores e alegrias. Em um contexto histórico no qual a gente não se vê na frente na telas de cinema, fazer um filme e se colocar enquanto pessoa e suas intimidades foi bastante delicado. Hesitei tirar as imagens as quais eu apareço, pelas inseguranças que cercam os corpos negros, principalmente, um corpo feminino.

Segundo, tive respeito em não colocar todas as imagens de minha mãe, a qual ela relata questões bastante íntimas e dolorosas da sua vida, é preciso ter esse afastamento, pois, ela não pediu para ser filmada, tão pouco, que eu fizesse um filme, acho que existe um limite e preocupação pensando que são 53 anos de vida marcada por feridas talvez nunca cicatrizadas. A solidão da mulher negra, por exemplo, toquei com bastante cuidado e me preocupei em  que ela assistisse tudo que foi dito e autorizasse.

Terceiro, Motriz tem um luto causado pelo falecimento de minha irmã, vítima de uma doença em 2012. A dor da perda de uma filha está nos olhos de minha mãe, eu pude presenciar minha mãe extremamente abalada emocionalmente e isso é bastante delicado de se contar. Minha mãe convive com a saudade de mim, já que ela mora em Minas Gerais e eu em Salvador, ou seja, é uma saudade/falta atravessada pelas duas filhas.

São muitas águas que cercam Motriz, me colocar e tocar em assuntos tão íntimos foi difícil, na verdade, ainda é, haja visto que toda vez que assisto ao filme me sinto completamente atravessada.   Audre Lord nos diz que é preciso quebrar os silêncio e transformá-lo em linguagem, eu, mulher negra, sapatão, cineasta, vejo que com Motriz consegui quebrar alguns silêncios íntimos que jamais seriam tocados.

CN: Se trata também de uma homenagem a dona Bete? Fala um pouco sobre essa relação e a motivação de fazer o filme…
Com certeza é uma homenagem a ela sim. Uma mulher sorridente, que apesar cicatrizes da vida, não deixa de sorrir com alegria e ter fé na vida, sobretudo, ter fé em mim. A gente se preocupa tanto em construir personagens, contextos, mas essas histórias já existem, estão muitas vezes do nosso lado, é preciso um olhar voltado a vida real, histórias urgentes que precisam ser contadas pelo seu próprio povo. Falar de minha mãe sempre me emociona muito, eu costumo dizer que a nossa relação é para além dos laço materno. A gente acredita em algo espiritual construiu a relação dessas duas mulheres de tantas águas, mulheres tão sensíveis que precisam estar próximas uma da outra, dando suporte, sendo peça motriz para o caminhar nessa vida.  Nosso distanciamento é apenas geográfico mesmo, temos muita conexão. Motriz inicialmente não era pra ser um filme e sim, um material de memória afetiva, porém, os caminhos foram outros, lembro que as imagens de 2016 ficaram engavetadas por muito tempo, eu não conseguia assistir sem me emocionar, o distanciamento de minha mãe estava recente, era bastante difícil lidar com a saudade, são 6 anos distante.

O que Motriz pode vir a significar no contexto em que estamos vivendo? Tanto em registro de contranarrativa como em esperança para outras mulheres negras

Motriz é o que move, é força, tudo que minha mãe significa pra mim. Esse filme independente dos caminhos que está tendo em festivais e mostras de cinema, já é um divisor de águas na minha vida. Ele foi peça fundamental para que eu não desabasse em momentos difíceis, momentos que envolvia minha mãe principalmente. A vontade de colocar Motriz  no mundo fazia com que eu não perdesse a esperança no cinema, nas pessoas, e na vida.

Eu digo que estar aqui agora é um ato político, a gente sabe o peso que é estar nesse lugar com esse tipo de filme. Minha maior felicidade, reconhecendo o lugar que ocupo e respeitando os mais velho, é reafirmar para as pretas e pretos que querem fazer filme nesse país, que apesar das dificuldades é possível. Para nós, falar de amor é sempre difícil e caro. Motriz pode significar o possível, a simplicidade, a importância de falarmos dos nossos sentimentos, das nossas alegrias e dores. Falar de amor é urgente também, essa pauta não pode se distanciar do povo preto, sobretudo, das mulheres negras, vítimas de uma solidão histórica.

Sobre fazer muito com pouco…

Motriz foi feito com uma T51 e uma lapela e isso é a minha verdade dentro das minhas possibilidades. Ouvi dentro da universidade que não se podia fazer filme com esse equipamento. Não precisamos ir muito longe pra perceber que esse é um pensamento do cinema como um todo, um mercado da elite e que padroniza o que é ou não cinema. Seu cinema é aquilo que você consegue fazer para contar a sua verdade, se você conseguir se expressar e contar a sua história, não é um padrão eurocêntrico de ser fazer filme e que vai limitar a sua linguagem.  

Em tempos incertos e caóticos do país (tempo esse que para nós negros sempre existiu, importante frisar)   minha maior arma política é continuar existindo. Trago uma frase de Zózimo Bulbul que se encaixa nesse contexto político, “ O Cinema é uma arma, nós negros temos uma AR15”.  Na Bahia por exemplo, tem muita mulher preta armada até os dentes, mulheres que contam as suas verdades e são representatividade para muitas meninas, inclusive pra mim. Aqui você tem, Daiane Rosário, Júlia Morais, Ana Carmo, Larissa Fulanadetal, Thamires Vieira, Glenda Nicacio, Fabiola Silva, Loiá Fernandes, Viviane Ferreira e tantas outras mulheres incríveis que continuar listando seria injusto pra não esquecer ninguém. Todas mulheres negras do audiovisual se sintam inseridas nesse contexto de representação que pontuo aqui.  Minha maior arma política é existir dentro desse cenário, criar narrativas reais, trazer protagonismo do meu povo nessas histórias. Tem que ser nós por nós mesmo, em tempos de frases prontas como “ninguém solta a mão de ninguém” nós sabemos qual é cor da mão rejeitada, seguimos juntas e aquilombadas.

 

Beatriz Almeida é colaboradora do Portal Correio Nagô.

Como a jornalista Donminique Azevedo.

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