Pará é o estado com mais libertados. Ano foi marcado por resgates em siderurgicas, usina de cana com selo “Amiga da Criança” e áreas das familias da senadora Kátia Abreu e do banqueiro Daniel Dantas
Mulher grávida trabalhava da Sabaralcool, usina que tem o selo empresa Amiga da Criança. Foto: Divulgação/MTE
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encerrou o ano de 2012 contabilizando a libertação de 2.094 trabalhadores de condições análogas à escravidão. Os resgates ocorreram em 134 estabelecimentos, entre fazendas, carvoarias, canteiros de obra, oficinas de costura e outros, conforme levantamento feito com base em informações sobre operações de resgate (clique aqui para baixar os dados referentes às operações de 2012 e dos anos anteriores).
Apesar da dificuldade de identificar com precisão as atividades de todos os estabelecimentos flagrados, a partir dos registros na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae, instrumento de padronização de códigos de atividades econômicas utilizado pelos diversos órgãos de administração tributária do país) é possível estimar que o padrão detectado nos anos anteriores se manteve em 2012: a pecuária apresentou, de longe, o maior número de resgates de trabalhadores escravos, seguida por atividades ligadas ao plantio e extração de madeira e pelo carvão. Ou seja, 56 libertações ocorreram em fazendas de criação – ou com registro de criação – de gado, 21 em empreendimentos de plantio (ou com registro) de eucalipto, pinus e exploração de madeira, e 16 em carvoarias.
Outro setor que teve número significativo de casos de trabalho escravo foi a sojicultura. Ao mesmo tempo em que a área de soja plantada em terras recém-desmatadas na Amazônia saltou de 11,69 mil ha para 18,41 mil ha na safra 2011/2012 (um aumento de 57%) de acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, em 2012 o Grupo Móvel resgatou 144 trabalhadores em 10 fazendas de soja ou com registro de produção do grão.
O Pará é o estado em que mais operações foram realizadas e onde aconteceram mais flagrantes, conforme tabela ao lado.
Casos emblemáticos
A libertação recorde de 2012 ocorreu no setor do carvão, e envolveu três das maiores siderúrgicas do Pará. Em março, o Grupo Móvel resgatou 150 pessoas de duas carvoarias em Novo Repartimento, que abasteciam as siderúrgicas Sidepar, Cosipar e Ibérica. De acordo com a fiscalização, os trabalhadores desmatavam a região ilegalmente para fabricar o carvão, e a operação acabou descobrindo um esquema de crimes ambientais, emissão de notas fiscais falsas e até ameaças a trabalhadores. Foram lavrados 21 autos de infração e um processo contra as três siderúrgicas, mas, como as empresas formaram um consórcio, a fiscalização responsabilizou a Sidepar pelo crime de escravidão.
Outra siderúrgica autuada por prática de trabalho escravo foi a Viena, de Darcinópolis, também no Pará. No final de outubro, uma fiscalização libertou 89 pessoas que trabalhavam no corte de eucalipto e produção de carvão na fazenda Vale do Canoa III, de propriedade as siderúrgica. De acordo com os fiscais, os trabalhadores viviam em condições péssimas de higiene, não tinham energia, água potável, banheiros, área de vivência, transporte adequado, nem equipamentos de proteção individual.
Uma das maiores produtoras e exportadoras de ferro-gusa do Brasil, a Siderurgica Viena – que também é dona da Fazendas Reunidas Agroindustrial, em Pirapora (MG), e da marca de cachaça Pirapora – exporta, segundo informações de seu site, para os mercados europeu, asiático e estadunidense. Tanto a Viena quanto a Sidepar são signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e podem ser suspensas devido aos flagrantes.
A segunda maior libertação ocorreu na única usina de cana flagrada com trabalho escravo no ano passado. Em setembro, a fiscalização do MTE e do Ministério Público do Trabalho resgatou 125 trabalhadores da usina Sabaralcool S/A Açúcar e Álcool, em Perobal, no Paraná, de uma situação descrita como “grave demais”. Contratados pelos chamados “gatos” (intermediadores de mão de obra), trabalhadores da Bahia, Pernambuco e Maranhão foram submetidos a péssimas condições de alojamento, transporte e alimentação, eram obrigados a comprar seus próprios instrumentos de trabalho, a contrair dívidas com os contratantes e o comércio local e a trabalhar aos domingos, não tinham descanso mínimo de uma hora durante as jornadas de trabalho, e não tinham o menor controle sobre o pagamento.
A Sabaralcool, que detém o selo de “empresa Amiga da Criança”, pertence à família do empresário Ricardo Albuquerque Rezende, falecido em março último. Rezende havia sido presidente da Associação Paranaense dos Produtores de Bioenergia do Paraná (Alcopar) por três mandatos e, antes de sua morte, ocupava o posto de vice-presidente da entidade. Também foi diretor do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). De acordo com a fiscalização, a usina já havia sido notificada por problemas trabalhistas em 2007, ano em que foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta. A situação encontrada em 2012, além de muito grave, se caracterizou como “fraude deliberado do TAC”, afirmaram os fiscais.
Setor têxtil
No setor de vestuário, em 2012 foram libertados 32 trabalhadores que costuravam para as grifes Gregory e Talita Kume e para a confecção WS Modas Ltda (fornecedora da Gregory e dona da marca Belart). Dada a notoriedade das marcas, estes resgates tiveram grande repercussão na opinião pública. Na semana em que foi divulgada a ligação da Gregory com exploração de trabalhadores, dezenas de pessoas se manifestaram protestando na pagina do Facebook da empresa – que, assim como Marisa, Pernambucanas e Zara, autuadas por trabalho escravo em anos anteriores, foi convocada para depor em oitiva na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo. Já a Talita Kume se apressou em incluir em seu site uma página onde promete cumprir normas trabalhistas.
Já no setor de construção civil, 136 operários foram resgatados em fiscalizações nas empresas Racional Engenharia Ltda (trabalho na ampliação do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na região da Avenida Paulista) em São Paulo, Construtora Croma Ltda (obras de um conjunto habitacional da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU) em Bofete (SP), Construtora Central do Brasil (obras da duplicação da rodovia federal BR-060, projeto do PAC) em Indiara (GO), e Brookfield Centro-Oeste Empreendimentos Imobiliários, em Goiânia. Além disso,12 trabalhadores foram libertados na fazenda de João Pedro Pereira, em Barra do Piauí (PI), onde construíam instalações na propriedade.
Outros dois casos de 2012 receberam destaque por envolver as famílias da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) – cujo irmão, André Luiz de Castro Abreu, foi apontado pela Superintendência Regional de Trabalho e Emprego do Tocantins como co-proprietário da Fazenda Água Amarela (plantio de eucalipto e produção de carvão), onde foram resgatados 56 trabalhadores -, e do banqueiro Daniel Dantas – cuja irmã, Verônica Dantas, e ex-cunhado, Carlos Bernardo Torres Rodenburg, são proprietários da Agropecuária Santa Bárbara, em São Felix do Xingu (PA), onde foram libertados quatro trabalhadores.
Por fim, vale relembrar ação realizada em agosto na fazenda de gado Alô Brasil, em Marabá (PA), que foi acompanhada por quatro deputados da CPI do Trabalho Escravo e resultou na libertação de oito trabalhadores. Na ocasião, o deputado federal Giovanni Queiroz (PDT/PA), integrante da bancada ruralista (que costuma contestar a existência de trabalho escravo no país) considerou a situação “vergonhosa, constrangedora”.
Fonte: Repórter Brasil