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Milton Santos: o injustiçado pela ditadura brasileira que virou intelectual do mundo

*Por George Oliveira

“Existem apenas duas classes sociais, as do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem” Milton Santos (*)

No ano de 1997, cientistas apresentam a ovelha Dolly, primeiro animal clonado; e o cacique da tribo Pataxó Hã-hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos foi brutalmente assassinado, tendo 95% do seu corpo queimado num crime bárbaro em Brasília. Em um outro acontecimento marcante, o Congresso Nacional Brasileiro aprovou a reeleição para presidente, o que acabou por beneficiar a recondução de Fernando Henrique Cardoso no cargo. Infelizmente, o ano foi marcado pelo falecimento de diversas personalidades, intelectuais e ativistas. Deixaram-nos Paulo Freire, educador e filósofo pernambucano; Darcy Ribeiro, antropólogo, escritor e político mineiro; Madre Teresa de Calcutá, missionária católica macedônia; o sociólogo Betinho, que se dedicou à luta contra a miséria e a fome. Em 24 de junho deste mesmo ano, faleceu também o geógrafo Milton Santos, a quem dedicamos este texto.

Cerca de dois meses antes do seu falecimento, o renomado professor baiano Milton Santos, um exímio colecionador de títulos acadêmicos, doutor em Geografia pela universidade francesa de Estrasburgo e doutor honoris causa por outras onze universidades de sete países, concedeu entrevista ao Programa Roda Viva, em 31 de março de 1997. Seu legado é composto por uma vasta obra, que influencia e fundamenta os movimentos antiglobalização, com dezenas de livros (capítulos e completos), uma infinidade de textos e artigos. Dono de ideias que ainda são bastante atuais, principalmente por sua crítica à globalização, teve um grande reconhecimento em 1994, com o Prêmio Vautin Pud, considerado o Nobel da Geografia.

Milton nasceu em Brotas de Macaúbas, no dia 3 de maio de 1926. Já aos 13 anos dava aulas de matemática no Instituto Baiano de Ensino, ginásio em que ele próprio estudava; aos 15, passou a lecionar Geografia e, aos 18, foi aprovado em Direito na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, capital deste estado. (…) Aos 32 anos concluiu doutorado na Universidade de Estrasburgo, cidade fronteiriça entre França e Alemanha e, no regresso, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais. Três anos depois, nomeado, por Jânio Quadros, para a subchefia do Gabinete Civil da Presidência, acompanha Jânio em comitiva a Cuba, o que o leva à prisão domiciliar sob o regime ditatorial instaurado em 1964. (SANTOS, 2016)

Segundo a apresentação do Programa sobre o entrevistado que estaria “na roda”, ele foi alfabetizado pelos próprios pais, professores primários; cursou Direito em Salvador; e, em 1964, foi destituído do cargo de secretário do Estado da Bahia e de professor da Universidade Federal pelos militares. Exilou-se na Europa e lecionou durante treze anos nas mais importantes universidades do mundo. Avesso às teorias que exaltam a globalização, Milton Santos chamou atenção para a importância dos intelectuais na discussão da sociedade moderna, contestou o modelo de reforma agrária brasileira e queria a Geografia pensada como Filosofia e Arte. O golpe militar obrigou-o ao exílio e, consequentemente e contraditoriamente, levou-o a uma trajetória acadêmica internacional. Tornando o Intelectual Milton Santos, um sobrevivente a diversos “abalos sísmicos” entre o golpe militar de 1964 e a consagração internacional:

…como o itinerário de Milton Santos indica, a experiência traumática do golpe e da repressão direcionou muitos intelectuais brasileiros para uma vida acadêmica em outros países, disseminando conhecimento e adquirindo maiores bagagens epistemológicas. Imagino que deveria ser uma contradição nas cabeças desses sujeitos. O exílio era uma falta, um cerceamento, uma dor, uma imposição e, ao mesmo tempo, lhes proporcionava um momento de prazer e sucesso no que concerne a suas trajetórias acadêmicas, sucesso no conhecer e no ensinar. Tornavam-se assim intelectuais transnacionais, intelectuais do mundo.  Mas que retornaram à terra natal quando tiveram oportunidade e, no Brasil, essa realidade só começou a se configurar no fim dos anos 1970. (LIMA, 2018, p. 24)

Como intelectual, o geógrafo negro dizia estar habituado a estar sozinho, não tendo a preocupação com quem o acompanha, por ser próprio do intelectual ter uma posição de ideias e a coragem de defendê-las até o fim. Argumentava que o intelectual existe para criar um desconforto; esse seria o seu papel e ele teria de ser forte o bastante para continuar exercendo talfunção. Numa época em que a globalização era quase um consenso na mídia e considerada como um processo que traria grandes vantagens para o Brasil, Milton Santos apresentou críticas a esse processo que avançava em quase todos os países do mundo. Durante a entrevista ao Roda Viva, quando perguntado sobre essas críticas, respondeu:

O atual processo de globalização é uma forma, uma única forma de utilizarmos recursos que a humanidade pôde gerar neste fim de século, mas utilizá-los de forma que me parece perversa. Então, a crítica essencial é esta: a humanidade durante dois séculos sonhou com a possibilidade de uma ciência a serviço do homem, e quando isso se obtém exatamente, esses objetivos são, digamos assim, deixados de lado, para que essa globalização que nós estamos presenciando sirva um número extremamente limitado, não só de pessoas, mas também um número limitado de empresas, e a um número limitado de instituições. (Milton Santos, Programa Roda Viva, 1997)

Ele considerava que a ausência de cidadania tem uma implicação na produção de um projeto nacional para o Brasil. Milton Santos apontou caminhos, como alternativas à globalização e à construção de um projeto nacional que não seja altamente permissivo com a globalização “tal como ela é perversa, entrar, em lugar de, ao contrário, o país encontrar ele próprio as formas de sua integração. Que terá que ser sempre negativa, hoje ou amanhã.” E inicia uma definição ao dizer que ela é “uma expressão baseada no velho ideal da humanidade da comunhão universal, mas que é feita exatamente para eliminar, reduzir a possibilidade dessa comunhão.

No “Roda Viva”, Milton Santos considerou que “a globalização é o estágio pleno do imperialismo”, em que as empresas ‘enormes’ têm um papel de centralidade, mas que são poderosas e cegas. Essas grandes empresas, e as instituições super nacionais que as perseguem direta e indiretamente, através de seus condutores principais, abandonaram a ideia de finalidade, de moralidade, de solidariedade e outros valores.

E o professor segue em sua análise crítica a partir de uma pergunta do também baiano e professor da UFBA, Fernando Conceição, ao questioná-lo sobre o Brasil, numa época em que era governado “por um intelectual conhecido internacionalmente, e o seu projeto de governo tem por trás de si uma série de outros intelectuais que apresentam esse projeto como um projeto irreversível”. Em resposta, Milton Santos afirmou que o intelectual se caracteriza pela sua força crítica. “Quem, dotado de força crítica for, jamais vai imaginar que é uma só perspectiva, uma só alternativa”. Sobre a pergunta que aborda a globalização como um processo cerrado, sem alternativas para o país que não seja a integração nesta dinâmica da economia do mundo internacional, Milton Santos considerou:

Acho que esse é um raciocínio anti-histórico. Se a gente olha para trás e observa tudo o que o mundo se tornou através do tempo, a gente vê que as possibilidades de uso daquilo que é criado são numerosas, e por que neste fim de século seria assim, uma só senda, um só caminho, um só resultado? Eu creio que isso que a gente tem que começar a discutir, entender porque é assim, e buscar através da análise as formas de sugerir outras maneiras de combinar o que aí está. (Milton Santos, Programa Roda Viva, 1997)

Vítima de um câncer aos 75 anos de idade, a nossa referência negra, Milton Santos faleceu em 24 de junho de 2001 e deixou um vasto legado. Em tempos em que o “novo normal” é um termo que veio à tona durante a pandemia da Covid-19 e trata-se, ainda, de ideias sobre as formas de convivência e sobrevivência frente às possíveis mudanças nas relações sociais, ambientais e comportamentais, esse conjunto de possibilidades propostas para um futuro próximo tende, nas visões otimistas, a conjeturar relações mais humanitárias e cooperativas a partir do estabelecimento desse novo padrão. Já as visões mais pessimistas vislumbram que não ocorrerão mudanças significativas nessas relações e chegam a imaginar que o pior ainda está por vir. Longe de buscar um consenso sobre essas duas visões, este texto buscou um breve diálogo com o legado do geógrafo Milton Santos e apresentar algumas de suas ideias para nos ajudar a pensar sobre o mundo (pós) pandêmico.

*A frase dita por Milton Santos no filme “Encontro com Milton Santos” (Sílvio Tendler, 2006) faz referência ao pensamento de outro geógrafo, Josué de Castro, que escreveu: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. CASTRO, Josué de. Geografia da fome. p.22. Rio de Janeiro: Antares, 1980.

Para saber um pouco mais:

Artigo: Um intelectual na mira da repressão Milton Santos e o golpe de 1964 Autor:Thiago Machado de Lim /  Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/137230

Transcrição da Entrevista – Programa Roda Viva com: Milton Santos (31/03/1997) – TV Cultura Transcrição: FAPESP / Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/112/milton%20santos/entrevistados/milton_santos_1997.htm

Site: http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/por-dentro-da-historia-15-anos-sem-milton-santos Texto: Ademir Barros dos Santo

Revisão de texto: Sandra Souza

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*George Oliveira é doutorando em Educação / UFBA

grbo2003@yahoo.com.br                             @grbo26

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