Cleidiana Ramos
Uma mulher vivia em meio a episódios de violência doméstica, o que, em um bairro de estreita convivência comunitária como é o Engenho Velho da Federação, os vizinhos próximos sabiam. Em uma das muitas brigas do casal, ela reagiu. A confusão atraiu a chegada da polícia e, ela, nervosa, partiu para cima dos policiais e de possível vítima virou a agressora.
Mas eis que, em sua defesa, surgiu uma autoridade que não apenas intercedeu como se dispôs a acompanhá-la. Foi uma romaria entre delegacias porque em uma avaliou-se que teria que ser uma especializada e assim se perdeu quase um dia inteiro, mas a protetora da moça não arredou o pé. Tanto que em uma das delegacias foi convidada pelo delegado a ajudá-lo no interrogatório porque era a única pessoa que conseguia acalmar a apontada como agressora que, agora, graças à sua intervenção, entendia-se como vítima.
Enquanto isso, a comunidade do Cobre já estava em polvorosa devido à preocupação. Isso porque a defensora da mulher envolvida nesta aventura policial era a sua ialorixá, Mãe Valnizia Bianchi, que, devargazinho, como quem não quer nada, estava lá na defesa das causas que ela considera em que não apenas se mete a colher, mas se toma à frente de todo o preparo do prato.
Mãe Valnizia não tolera nenhum tipo de violência, especialmente as de gênero. É uma das causas que mais a mobiliza, afinal é filha de um orixá dedicado à Justiça com o toque da Sabedoria: Ayrá.
São muitos os episódios em que Mãe Valnizia Bianchi impediu agressões a mulheres. Voltando de uma festa familiar, ela visualizou uma cena estranha: um homem em uma moto encurralava uma moça. Em um momento, desceu e começou a espancá-la. Ela correu e ele continuou a perseguição até que perdeu o equilíbrio. Levantou e se dirigiu em direção à moça com muito mais furor. Nesse momento, Mãe Valnizia já tinha descido do carro, tirado os sapatos e um aplique que completava seu penteado de festa para ir em socorro da moça. Se não interferisse, a história ia acabar, possivelmente, em mais um caso de feminicídio.
Em outro episódio, acordou de madrugada com o barulho de gritos. O que viu da janela fez o seu coração estremecer: um homem estava com uma garrafa na mão ameaçando a companheira, que ela conhecia de vista. De camisola, Mãe Valnizia foi até a rua. Com a urgência nem observou que o portão que lhe dava acesso à rua estava trancado, mas foi de lá que começou a repreensão ao agressor e incentivo à moça para que repensasse o que poderia acontecer se insistisse em um relacionamento abusivo.
Nesses casos, ela atua combinando autoridade sem agressividade. Tanto que já aconteceu de se tornar uma conselheira recorrente para essas mulheres que defende. E sempre as orienta a pensar em como deve ser a vida sem agressão, ou seja, um incentivo ao resgate da autoestima.
Direitos
Há 17 anos, a reação de Mãe Valnizia veio em outra direção. Uma unidade da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ao instalar-se no Engenho Velho da Federação, um bairro que tem um número significativo de terreiros das mais variadas tradições, passou a atacar seguidamente as religiões afro-brasileiras. Os ataques ocorriam nos discursos via o sistema eletrônico da igreja com caixas de som direcionadas para as comunidades próximas, como o Cobre. As ações foram ficando mais ousadas, como a distribuição de panfletos no estilo de proselitismo diretamente da calçada do Cobre. Foi o dia do limite para Mãe Val como também é carinhosamente chamada.
Ela saiu durante a tarde e foi em várias das comunidades religiosas do bairro explicando que era necessário tomar uma atitude não de guerra, mas de impor respeito. E assim nasceu a caminhada pela paz, contra a violência e o ódio religioso realizada, anualmente, pelos terreiros do bairro, o Cobre incluído, em 15 de novembro.
Na condição de líder de uma comunidade de candomblé, uma das poucas religiões em que o protagonismo feminino no comando não é uma novidade, Mãe Valnizia ensina sobre autonomia, emancipação e política no entendimento mais amplo desse termo. É escritora porque, como ela mesmo afirma, não queria que apenas outras pessoas contassem sua história.
O primeiro livro, Resistência e Fé, publicado em 2009, é sua autobiografia. Em Aprendo Ensinando (2011), escreveu sobre as lições que absorveu no exercício da experiência de educar. Há dois anos lançou Reflexões, uma coletânea dos artigos publicados no período em que foi colunista do jornal A Tarde, de dezembro de 2014 a agosto de 2016.
Avessa às redes sociais por conta de conflitos que esses espaços alimentam, ela tem feito um esforço e faz participações nesses espaços, pois em tempos de pandemia e isolamento físico, avaliou que há como explorar os benefícios dessa tecnologia, especialmente para discutir questões que considera importantes. Assim, não é tão comum, mas ela tem participado de lives e webinários.
As participações de Mãe Valnizia em eventos presenciais ou online costumam ter enorme repercussão. Foi assim durante o Ori Literário, realizado em fevereiro desse ano com transmissão online. No evento ela falou sobre a filosofia do candomblé ao lado da cantora Margareth Menezes. O resultado dessa interação foi um conteúdo emocionante. Confira aqui:
Estas tantas faces da trajetória de Mãe Valnizia traduzem esse julho dedicado às batalhas das mulheres negras contra o racismo, o sexismo e outras formas de violência celebrado em 25 de julho. É só um indicativo de como as comunidades de terreiro têm uma potencialidade política em um formato único. São espaços que desenvolvem à perfeição uma pedagogia que em todas as suas formas aponta para trajetórias libertadoras, especialmente com mulheres como Mãe Val à frente. A vontade que ela possui de experimentar, conhecer e viver novas experiências em campos como a literatura, as tecnologias de comunicação, a gastronomia, que é outra de suas paixões, só alimenta essa percepção para quem tem a sorte de estar próxima ao seu convívio, como eu, uma das suas muitas filhas de santo.
Lições
O Terreiro do Cobre, a comunidade religiosa liderada por Mãe Valnizia, tem uma larga história. Embora não se tenha uma data precisa de fundação, a combinação entre a tradição oral e registros historiográficos e antropológicos estima que o Cobre está situado em meados das décadas finais do século XIX. Este é o contexto da institucionalização mais forte do candomblé, ou seja, a definição de ritos, estrutura e liturgias comuns bem definidas, inclusive com as diferenças entre modelos- chamados nações- a partir da diversidade das contribuições de civilizações africanas que deixaram suas heranças culturais em Salvador.
O Cobre surgiu pela ação de Margarida de Xangô, que essas narrativas apontam como uma africana. O endereço inicial era a Barroquinha. A transferência para o Engenho Velho da Federação ocorreu no governo da filha de Margarida, que era consagrada à orixá Oxum: Flaviana Bianchi. Essa já estava perto dos 90 anos quando foi protagonista de um capítulo inteiro de A Cidade das Mulheres, o livro de Ruth Landes que, apesar de algumas controvérsias, tem o mérito de mostrar algo geralmente ausente das etnografias, especialmente as deste período: a voz das mulheres que são líderes de terreiro.
Na narrativa de Ruth Landes nós conseguimos visualizar o protagonismo de Mãe Menininha, líder do Gantois, de Mãe Sabina, mesmo com as críticas a ela, e visualizar a importância de Flaviana Bianchi, ainda que tenha sido a única das “mães de terreiro”, como Ruth Landes geralmente se refere a elas, que não lhe deu entrevista. Mas lá está a trajetória e a sua importância, como no trecho em que Ruth Landes, a partir da entrevista com uma filha de santo de Mãe Flaviana, destaca sua beleza e imponência nos tempos em que ainda era jovem e forte.
Mãe Flaviana foi sucedida por Maria Eugênia da Boa Morte, sua filha biológica. Esta fechou o terreiro para atividades públicas. Uma história me foi contada por uma fonte dos considerados antigos de candomblé. Segundo este relato, em uma conversa com Mãe Flaviana sobre a ascensão de Maria Eugênia ao comando do Cobre, Mãe Caetana Sowzer, da família Bamboxê, que tem protagonismo no candomblé baiano, perguntou se estava tudo certo para a transição. Mãe Flaviana então disse que sim, mas que a sua sucessora de fato ainda não havia nascido. Confirmou que Maria Eugenia iria governar o Cobre, mas ao que ficou patente em uma ação discreta para dentro dos seus muros. E assim aconteceu.
Após a morte de Maria Eugênia o Cobre ficou fechado e a comunidade religiosa se dispersou. Só após mais de 50 anos, o terreiro foi reaberto. O processo consistiu em uma total reconstrução, pois do amplo território restou apenas 1% da área total. Foi necessária a recuperação de espaços, como o barracão e a área onde estavam os assentamentos dos santos. Além disso, essa renovação foi marcada pela entrada de um barco, como se chama no candomblé o grupo de iniciadas. Foram oito e com uma configuração bonita e forte para uma história de recomeço: filhas de Ogum, Xangô, Oxum, Oxumarê, Iansã (duas), Oxóssi e Iemanjá. À frente deste processo estava uma jovem de apenas 27 anos. Cinco anos depois de já ter começado o seu governo no Cobre, iniciou as primeiras iaôs dessa fase de renovação do terreiro.
Filha de santo do Ilê Axé Iya Nassô Oka (Casa Branca do Engenho Velho da Federação), iniciada no fim da sua adolescência, Valnizia Bianchi recebeu a notícia que estava em seu caminho religioso tornar-se a nova ialorixá do Cobre. Naquela conversa entre as duas filhas de Oxum, outras duas grandes lideranças do candomblé baiano- Mãe Flaviana e Mãe Caetana- era ela, portanto, a “sucessora ainda não nascida” de Mãe Flaviana, a que novamente faria o Cobre ser conhecido, como foi no reinado de sua bisavó.
Elegante nos gestos e palavras, discreta e reservada, mas muito firme no que acredita, Mãe Valnizia tem aquela personalidade que conquista. Carisma ela tem de sobra. Lembro dos elogios dirigidos a ela pela grande Ebomi Cidália Soledade, que, como gostava de dizer, a viu nascer, ser iniciada no candomblé e ter que aprender a conciliar a sua condição de juventude com uma responsabilidade de “mais velha”.
“Mas Valnizia é daquelas que tem tombo de ialorixá”, dizia ebomi Cidália.
E ao conhecê-la, entende-se o que é esse tombo: uma condição que não se aprende facilmente porque não depende da vontade. É destino ou caminho, como se diz no candomblé. Mas dá para perceber facilmente que Mãe Valnizia Bianchi compreende o tamanho da responsabilidade e da importância para traduzir, a partir da sua condição de liderança religiosa, a máxima tão presente nos movimentos de mulheres que é a frase “Nossos passos vêm de longe”. Os de Mãe Val, no caso, vêm não apenas de longe, mas da herança de um campo ainda mais complexo e forte: ancestralidade.
Cleidiana Ramos é iaô de Oxum do Terreiro do Cobre, jornalista e doutora em antropologia.
Confira o conteúdo da série “Mulheres Negras em ação de resistência” na Revista digital da Flor de Dendê: http://flordedende.com.br/revista/mulheres-negras-em-acao-de-resistencia/