O aparentemente singelo oferecimento é uma postura política
As festividades da independência da Bahia se estendem por uma semana no bairro de Pirajá, na periferia de Salvador, em decorrência das batalhas que expulsaram as forças portuguesas do país definitivamente. Como é um dos bairros de maior população evangélica de Salvador, as igrejas também disputam a festa tradicionalmente profana. Neste ano, todas elas fizeram cultos públicos, de olho nos possíveis fiéis e clientes que estavam em massa nas ruas. E lá estavam os indefectíveis panfletos, disponíveis e baratíssimos em qualquer estabelecimento evangélico, entregues a todos que passassem por qualquer lado do caminho. As pessoas recebiam e guardavam. Um jovem que não parecia ser evangélico deixou cair o seu a poucos metros de onde recebeu, mas se abaixou para recuperá-lo e guardá-lo no bolso, seguro, como se fosse um objeto sagrado em si.
O panfleto, naturalmente, não é sagrado. O que fez o rapaz se esforçar tanto para apanhá-lo? O que faz as pessoas aceitarem os mesmos panfletos, com as mesmas informações, distribuídas exaustivamente nos mesmos lugares todos os dias? Por que leem, releem, dizem frases habituais como “isso tudo é verdade”, como se conseguissem de fato discernir a “verdade” na profusão de comportamentos aceitos e condenados pelas mais diversas vertentes do evangelicismo que dominam as culturas populares?
As pessoas recebem o panfleto porque devem fazê-lo. É a maneira tácita de reconhecer a hegemonia cultural evangélica. Trata-se de uma norma de conduta social, apreendida por mimese, a mesma que impõe o tratamento de “doutor” para o médico ou a formação de uma fila quando mais de uma pessoa pretende realizar o mesmo ato individualmente no mesmo lugar. Esses pequenos comportamentos cotidianos não têm forma prescrita em lei, mas são tão importantes para o processo de convivência civilizatório quanto as normais legais. A recusa em cumpri-los não resulta em punições pelo Estado, mas gera reprovação social, a depender da gravidade da ação ou inação e da importância do hábito.
Mas quem desrespeita uma fila desrespeita as pessoas que chegaram antes. Da mesma forma, quem chama um médico por um título ou pronome mais equitativo recusa-se a lhe conferir tratamento especial por causa de sua formação ou como forma de negociar o cuidado com sua saúde. Já quem rejeita um panfleto evangélico declara insubmissão aos valores que se impõem cada vez mais aos costumes sociais, para além daqueles que professam essa religiosidade.
Para compreender porque essa recusa é importante, é preciso compreender o que significa esse costume social em específico. Note-se: não é o mesmo que não aceitar uma outra propaganda qualquer, dessas oferecidas no centro da cidade por jovens desinteressados. É mais importante que isso. Primeiro, porque quem oferece, em geral, dá importância ao ato, e as normas de conduta social exigem que essas pessoas sejam tratadas com gentileza. Mas não é apenas isso.
Os evangélicos têm invadido eventos públicos e privados, supostamente para entregar esses panfletos. Da festa da Independência da Bahia em Pirajá às caminhadas de junho, passando pela Marcha das Vadias, onde parecem dizer às mulheres livres que sua ideologia está tão consolidada que nem as principais vítimas do fundamentalismo evangélico resistem. E eles têm razão. A recusa de um panfleto evangélico pode ser punida com censura social, até mesmo vinda de religiosos de matrizes africanas ou gays. “É uma questão de gentileza”, dizem eles. E fica estabelecido o seguinte: os evangélicos podem invadir a Marcha das Vadias para pregar contra o direito das mulheres, mas se você interromper uma pregação na rua ou em um transporte coletivo para reivindicar o respeito aos direitos humanos, pode ser socialmente repudiado.
E assim a hegemonia evangélica se consolida da mesma maneira que outras hegemonias ao longo da história: pela força, inicialmente ideológica, mas eventualmente física. Entregar um panfleto não é, portanto, um ato isolado, sem maiores repercussões sociais. Tem sido uma marca evangélica, uma conduta definida, a exigir uma e apenas uma reação possível: a aceitação tática ou expressa da sua hegemonia. Uma postura política de uma comunidade, com o objetivo explícito de ampliar sua influência na sociedade.
Pode-se definir postura política como uma ação ou reação que evidencia uma posição igualmente política. Pode ser individual, mas costuma ser coletiva. De acordo com a alienação social vigente, uma postura política só é reconhecida quando é institucional ou eleitoral. Mas todo comportamento que resulta das interações sociais é político. Eles reconhecem, geram, modificam ou extinguem relações de poder.
As posturas políticas podem ser ações, como fazer ou rir de piadas machistas nas mesas de bar, ou omissões, como fingir não ouvir a piada. Pode mesmo ser uma reação à tentativa de oposição – por exemplo, negar a possibilidade de crítica à citada “piada inocente”. Sim, até a rejeição de posturas feministas é, em si, uma postura política.
Com tudo isso, se ainda lhe parece um exagero rejeitar um panfleto evangélico, experimente fazê-lo. A primeira reação provável é o espanto da pessoa que entregou o panfleto. Ela pode te questionar o porquê, e aí você deve se perguntar se outras pessoas se sentiriam no direito de te perguntar por que não recebe um simples panfleto. Ela também deve tentar de convencer do contrário e, caso você não responda ou reivindique sua liberdade, muitas vão insistir – por dever religioso, diriam alguns, mas já aí não seria um dever invasivo? Eventualmente, outras pessoas a quem ela entregar o panfleto vão reagir de forma apaixonada, convicta, como quem quer exibir o comportamento adequado àquela postura política, ou como se quisessem mostrar que você não tem o direito de recusar o panfleto. A contrariedade com a reação diferente da esperada se torna evidente: é a força da norma social.
Isso não ocorre porque as pessoas têm consciência da importância política de sua ação, mas porque elas se acostumaram ao conforto de sempre ter a resposta requerida. Esse conforto em si deve ser contrariado: ele leva muitas pessoas a alienar-se e aderir à hegemonia, simplesmente para angariar um status melhor. Para além disso, o mecanismo de sustentação das desigualdades se reproduz através das condutas sociais reiteradas. O simples ato de denunciar a piada machista e recusar o panfleto evangélico tem o importante impacto de interromper esse processo, justificando a reação combativa das forças que querem manter o status quo. Condutas individuais e triviais que geram imensa repercussão no combate às injustiças sociais.
Por algum tempo, eu respondia “não, obrigado” quando alguém me oferecia um panfleto evangélico. Hoje eu respondo “não recebo panfleto evangélico”. Não é apenas uma forma de reagir taxativamente, esmaecendo no meu interlocutor o ânimo de me questionar pela recusa ou a tentativa de me convencer a aceitá-lo. Trata-se de dizer para as demais pessoas que estão ao lado que recuso me submeter ou, mais ainda, que é possível não se submeter. Basta adotar uma outra postura política.