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No peito e na raça: mulheres negras no poder em Salvador – Pretas por Salvador (PSOL)

*Cláudia Correia

Para concluir a série de entrevista “No peito e na raça: mulheres negras no poder em Salvador”, da Jornalista Cláudia Correia, em homenagem ao “Julho das Pretas” apresentamos as “Pretas por Salvador”, candidatura coletiva, inédita na história política da cidade, lançada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no último pleito. Em outras capitais brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte também já existe a experiência desse tipo de mandato. Porém, como a legislação brasileira ainda não prevê essa modalidade formalmente, apenas uma das três covereadoras, Laina Crisóstomo, assumiu o mandato, que é gerido coletivamente pelo grupo. Para garantir democraticamente o “lugar de fala” delas, as três foram ouvidas para a série.

Covereadora Cleide Coutinho – Mandata Coletiva Pretas por Salvador (PSOL)

Mulher preta, feminista, evangélica, dirigente do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), membra do setorial estadual de mulheres do PSOL.

Como a senhora analisa o racismo no Brasil? Há avanços obtidos pela sociedade no combate a esse crime?

Até um determinado período, o Brasil tinha um racismo velado e, com essa eleição do Jair Bolsonaro, esse presidente genocida, esse racismo tem saído do armário e se colocado com cada vez mais intensidade. Eu acredito que o assassinato de George Floyd, lá nos Estados Unidos, refletiu muito aqui no Brasil e a população brasileira tem ido às ruas contra o assassinato dos nossos jovens negros, da nossa população negra. A gente tem se colocado, foram feitas diversas manifestações e o povo negro tem se organizado para fazer esse enfrentamento.

Como a senhora vê a presença da mulher negra na política no Brasil e os desafios que se colocam para essa participação?

Eu vejo que nós, mulheres negras, temos avançado muito na política, a gente tem se lançado  candidatas nesses pleitos eleitorais, acredito que muito através da influência da companheira Marielle Franco, que impulsionou muito essa participação dessas mulheres negras na política. Acho que a gente saiu com uma grande vitória com essas eleições de 2020, com o percentual da distribuição da verba eleitoral proporcional. Eu acho que isso foi um resultado muito positivo, o pessoal encabeçou isso também e eu acredito que as mulheres ainda precisam avançar mais, cada vez mais, se fortalecendo através desses instrumentos que nos dão a condição de nos colocarmos nessa posição de candidatas, de participação na política. A gente precisa não só da igualdade, mas também da equidade para que a gente possa ter direito e condições de participar de um pleito eleitoral e, de fato, concorrer a esses pleitos com equidade e podendo sim chegar onde a gente quer chegar.

Como a mandata coletiva tem atuado especificamente para defender e assegurar os direitos das mulheres e em particular das mulheres negras?

A nossa mandata, Pretas do Salvador participa de duas comissões na Câmara 

Municipal de Salvador: uma é a Comissão da Mulher e a outra é Comissão de Reparação Racial. Essas duas comissões tratam, diretamente, com a vida dessas mulheres, das mulheres negras. Então, para a gente, é essencial a permanência da gente nessas comissões, porque a gente consegue fazer política, através dessas comissões, que direciona para essas mulheres e as mulheres negras no sentido de oferecer condição para que essas mulheres consigam sobreviver nessa sociedade. A Comissão de Reparação é uma comissão muito importante, tanto a de Reparação, quanto a de Mulheres na Câmara Municipal de Salvador.

Covereadora Gleide Davis – Mandata Coletiva Pretas por Salvador (PSOL)

Feminista preta, suburbana, de axé, estudante de Serviço Social, militante e pesquisadora das áreas de gênero, raça, classe e saúde mental.

Como a senhora analisa o racismo no Brasil? Há avanços obtidos pela sociedade no combate a esse crime?

Em relação à questão do racismo, eu avalio que houveram avanços significativos nos últimos anos, acho importante a gente pontuar a questão das políticas de ações afirmativas como um importante avanço para as pessoas negras adentrarem as universidades públicas, concorrer a concursos públicos e outras questões mais, que envolvem a questão da distribuição de renda aliada à questão racial. No entanto, é importante a gente salientar que, nos últimos anos, com a questão do governo Bolsonaro, desgoverno Bolsonaro e o cenário da pandemia acirrou ainda mais as questões raciais no Brasil. Hoje, a gente tem um número de encarcerados ainda maior, a violência policial está ainda maior, as porcentagens de jovens negros, nos últimos anos, segundo os dados do IPEA, aumentaram os jovens negros que são assassinados por arma de fogo no Brasil. Então a gente tem uma dualidade na qual, na dividida, as pessoas negras ainda estão em uma desvantagem muito grande. Então há muito o que se fazer. O racismo estrutural no Brasil ainda está longe de ser combatido, mas é importante a gente compreender que esse cenário de lutas continua acontecendo e as representações negras dentro da política institucional dos movimentos sociais têm um papel fundamental nesse sentido.

Como a senhora vê a presença da mulher negra na política no Brasil e os desafios que se colocam para essa participação?

A questão da presença de nós, mulheres negras, na política envolve também uma outra dualidade que é a questão da representação política no que diz respeito às agendas. Nós, as Pretas por Salvador, fazemos parte da agenda Marielle Franco, que é uma agenda que traz uma série de políticas públicas voltadas para a questão da mulher negra na sociedade. Então nós temos projetos que foram para votação na Câmara, como a Casa de Parto, que é um projeto que visa abarcar as mulheres que estão em vulnerabilidade social, porque nós sabemos que as mulheres negras são as maiores acometidas pela violência obstétrica, então a gente tem essa questão da agenda Marielle e a gente entende também que é importante que nós estejamos nesses espaços para trazer, justamente, essas demandas que nos competem. Eu acho importante a gente pensar nisso e entender que nós estamos cansadas de demandar, de sermos demandadas, melhor dizendo, nós queremos demandar as nossas questões. Nós, estando dentro da política institucional, conseguimos pautar as nossas questões. Claro que com muita dificuldade porque, hoje, o cenário político ainda é extremamente conservador, ainda é muito masculino, ainda é muito branco, ainda é muito heteronormativo, mas a gente entende que essa colocação, que essa representatividade se coloca num importante patamar para que nós possamos, ainda que de forma embrionária, inserir esse debate e conseguir colocar as nossas pautas em xeque, trazendo pra sociedade que essas pautas são importantes, precisam ser debatidas, precisam ser colocadas na mesa pra que a gente consiga, gradualmente, implementar essas demandas,  essas pautas políticas.

Como a mandata coletiva tem atuado especificamente para defender e assegurar os direitos das mulheres e em particular das mulheres negras?

Nós temos a agenda Marielle, mas, para além disso, nós somos três mulheres negras. Então, toda a nossa vida política, nós somos de movimento social: Cleide vem do movimento de moradia, Laina vem do movimento de mulheres contra a violência e eu venho do movimento de mulheres de periferia da juventude, então a gente vem pautando isso desde os movimentos sociais e, quando nós chegamos  na vereança, nós levamos as nossas questões de movimento social enquanto mulheres negras de candomblé, evangélica, como Cleide é evangélica, LGBTs, como Laina é lésbica e eu sou bissexual, eu sou de periferia, moro na Suburbana, Cleide também é de periferia, então nós trazemos  as nossas pautas, as nossas vivências para dentro da política, transformando as nossas vivências em política porque, querendo ou não, nós somos uma representação da massa que nos acompanha e que nós acompanhamos. Então a nossa agenda, além da agenda Marielle, é uma agenda muito voltada, justamente, para as demandas das mulheres negras. Para além da Casa de Parto, nós temos outros projetos como, por exemplo, aprovamos a sessão especial contra a violência obstétrica e outras questões mais que estão dentro das nossas pautas principais que competem, justamente, à questão de gênero, de raça e também de classe, porque é importante a gente salientar que esses são os três pilares que fazem com que a desigualdade no Brasil seja ainda mais acirrada. A gente tem que debater gênero e raça sob a perspectiva de classe também, sabendo que o racismo estrutural e o machismo patriarcal acompanham a desigualdade de classe no Brasil.

Covereadora Laina Crisóstomo – Mandata Coletiva Pretas por Salvador (PSOL)

Advogada feminista, mulher negra, lésbica, de candomblé, gorda, mãe, antiproibicionista, fundadora da organização não governamental TamoJuntas, que nasceu em Salvador e que, hoje, está em dezenove estados do Brasil, atendendo mulheres em situação de violência, numa perspectiva multidisciplinar.

Como a senhora analisa o racismo no Brasil? Há avanços obtidos pela sociedade no combate a esse crime?

Então, acho que a gente tem uma lei de combate ao racismo de 1989, a lei Caó, a lei 7716, infelizmente, a gente tem tido inúmeros casos que seguem acontecendo de racismo e, infelizmente, a Justiça encara esses casos como injúria racial, que é um crime de menor potencial. Na verdade, isso tem a ver com o processo do estado colonial, eles não querem punir os seus. Então eu acho que, para além da perspectiva do combate ao crime de racismo, – que a gente sabe que o Judiciário é extremamente racista, extremamente misógino, extremamente colonial – a gente tem dificuldade nos acessos em todos os processos de violência. Então a gente tem se batido com situações tão perversas do acesso aos direitos, enfim, da tortura, da morte, são essas chacinas que têm nos acometido e, nesse período de pandemia especialmente, o quanto os nossos corpos seguem tombando, nós fomos os primeiros a morrer de Covid no Brasil. A primeira pessoa a morrer de Covid no Brasil foi uma mulher empregada doméstica, que foi obrigada pelos seus patrões brancos, que foram para Europa, voltaram com Covid, a continuar trabalhando e servindo a eles. Isso é resquício do estado colonial. Acho que a gente avança no movimento, a gente avança na luta por direitos, mas, infelizmente, esse governo genocida tem feito com que a gente perca direitos e aí o cenário atual é não investimento em políticas públicas, enfim, os absurdos que têm acometido a comunidade quilombola, os povos originários, os indígenas e, para além disso, por exemplo, agora, o desmantelamento da Fundação Cultural Palmares, que é um espaço de luta e resistência da história preta do Brasil. Então isso tem a ver com o processo de como o racismo tem se reinventado em todo esse período, muito extermínio da população negra, mulheres negras que seguem morrendo e que seguem sendo colocadas em condições análogas à escravidão. Enfim, tem muita resistência para fazer, né?

Como a senhora vê a presença da mulher negra na política no Brasil e os desafios que se colocam para essa participação?

Acho que, hoje, a gente tem, acho que desde 2018, o próprio processo de assassinato de Marielle nos mostra como o espaço da política invisibiliza as nossas lutas e pautas. Muitas pessoas, no Brasil inteiro e no mundo, não conheciam Marielle, mas conheciam, por exemplo, Freixo. É sobre isso assim, é sobre as nossas invisibilidades, as nossas inexistências. É como se as nossas lutas e pautas fossem cada vez mais invisibilizadas e eu acho que o assassinato brutal de Marielle nos mostrou a importância de nós sermos mais na política. Na verdade, a gente já tem feito esse debate e esse combate, esse enfrentamento há muito tempo, mas, desde 2018, a gente entendeu a potência que era ter uma Marielle na política. Então imagine ter várias Marielles na política. Por isso que a gente continua reivindicando que nós somos sementes de Marielle. Não tem sido fácil, mas os nossos corpos incomodam. Incomodam porque mexem com as estruturas, quebram as estruturas e quebrar estrutura gera dano para todo mundo que se beneficiou durante tanto tempo com o racismo, com o machismo, com a LGBTfobia, com a intolerância religiosa que sempre, sempre nos explorou. Então é sobre abrir olhos, abrir mentes e derrubar máscaras, é sobre isso, sabe? É um espaço de muita resistência, mas o mais bacana é que a gente tem atuado em rede. Ontem a gente protocolou um projeto de lei, também se inspirando num projeto de lei que foi protocolado por Mônica Francisco lá no Rio. Então a gente protocolou aqui em Salvador também, criando rede, criando eco para esse projeto que ela protocolou lá. É sobre isso, a gente atua em rede e, por isso, a gente se fortalece. É isso, é aquilombamento. Nós somos poucas, mas a gente é retada demais e aí eles piram. Eles não aguentam com a gente não.

Como a mandata coletiva tem atuado especificamente para defender e assegurar os direitos das mulheres e em particular das mulheres negras?

Nós somos o próprio reflexo do processo de luta, da importância da luta por representatividade com projeto político de transformação e de combate à violação dos direitos humanos. Nós somos três mulheres pretas, três mulheres pretas diversas: tem lésbica, tem bissexual, tem heterossexual, tem cristã, tem candomblecista, tem gorda, tem magra, tem mãe, tem, enfim, mulher que mora na Suburbana, que mora em Cajazeiras, que mora em Brotas. Nós somos muito diversas, e eu acho que isso tem sido algo potente, inclusive, no pensamento e na construção e elaboração de políticas públicas. A gente tem muitos projetos que a gente tem encaminhado. A gente encaminhou um projeto de lei que é, justamente, para criar uma semana de conscientização da violência obstétrica que a gente sabe a quem acomete. A gente protocolou o projeto de lei do dia municipal de enfrentamento ao lesbocídio, em homenagem a Luana Barbosa, companheira que foi assassinada, mulher, negra, mãe e lésbica que foi assassinada em razão da violência policial. A gente tem construído projetos de indicações e sessões especiais que visam tratar sobre isso, sessão do orgulho LGBT, sessão especial para dialogar sobre a importância do enfrentamento ao genocídio da mulher negra, sessão em homenagem e comemoração da existência da TamoJuntas, que é uma organização que atende mulheres, e a gente tem tido projetos de lei como, por exemplo, de priorizar mulheres na intermediação de mão de obra junto ao Simm, mulheres negras e mulheres em situação de violência. A gente tem um projeto de lei para combater a pobreza menstrual. Então, hoje, a gente constrói a Comissão da Mulher e a Comissão da Reparação, mas a gente também criou a Comissão de Direito à Cidade, para dialogar sobre o direito à cidade e tem a ver com combate ao racismo ambiental e com o combate, todos os dias, do machismo e do patriarcalismo. Então isso tem a ver com a nossa história de vida, com a nossa formulação de políticas públicas, mas também com as nossas trajetórias. Então é sobre sim lugar de fala, é sobre sim. Dói na gente, dói na nossa carne, por isso a gente sabe como conduzir o processo da política, porque é sobre as nossas dores, é sobre as nossas dificuldades. A gente não se pinta de povo, a gente é povo. A gente não visita a comunidade a cada dois anos, a gente mora na comunidade. Então isso tem a ver com a nova forma de fazer política. Eu acho que esse é o grande diferencial da gente e de tantas outras mandatas potentes que estão espalhadas por todo Brasil.

*Cláudia Correia é Jornalista, Assistente Social e colaboradora do Portal Correio Nagô

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