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O CENSO 2020 E A DÉCADA DOS AFRODESCENDENTES

Por Diosmar Filho especial para a Coluna Eta Mundo

 

“o papel branco vive me jogando

desafios na cara

ser marginal todavia

só interessa à paixão

bastaria ao poeta apenas

a cor da minha pele?”

Paulo Colina (1950-1999)[2]

 

Retornando os diálogos sobre espaço e pensamentos no Sul Global, convido a continuarmos as celebrações dos 93 anos de nascimento do pensador e intelectual do século XX, o professor e geógrafo Milton Santos, aniversariante do dia 03 de maio, que caminha ao centenário em memória geográfica.

Dez anos após seu nascimento, nascia, em 29 de maio de 1936,o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a ciência Geografia no Brasil. Diante das celebrações cabe a reflexão sobre a Geografia como ciência, ser questionada, pensada e criticada, para que seja uma ciência da humanidade, avançando sobre o lugar de origem, uma ciência limitada por teorias deterministas ou estatísticas sobre a vida no território colonizado.

Nesse ponto, as reflexões da geógrafa Lia Osorio no artigo Origens do Pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930)[3], tem grande importância pela memória do pensamento geográfico e como essa ciência foi reconhecida pelo Estado, moldada pelo institucional e técnicas, se adaptando ao determinismo ambiental e a antropogeografia, absolvendo sem questionar as práticas de racialização da civilização dos trópicos.

Portanto, na contemporaneidade, a Geografia está sendo convocada a pensar o povo e o território, em desafios e possibilidades, diante das questões que envolvem o reconhecimento da cidadania e população no espaço – assim como, no século passado a ciência precisa protagonizar – a transformação do território Brasil XXI.

Pensando em desafios e possibilidades, é preciso responder a questão “Há cidadãos neste país?”, apresentada pelo professor Milton Santos na obra o Espaço do Cidadão[4]. Aqui interpretada na invisibilidade da ideia de nação e cidadania no espaço brasileiro, diante do aprofundamento dado pelo autor:

Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil são cidadãos? Quanto nem sequer sabem que não o são? (SANTOS, 2012)

Os questionamentos devem sim, serem vistos no Brasil atual, governado pelo autoritarismo em diálogo com o estado de exceção (ainda não consolidado, já que não revogaram os poderes e a Carta Constitucional de 1988). O país, pensado pela extrema direita em tempos Globalização, é o mesmo que tem a responsabilidade (mesmo negando pelas ações racistas), de implementar uma das grandes conquistas da população negra e africana, em escala global – a Década Internacional dos Afrodescendentes da Organização das Nações Unidas – ONU (2015-2024), uma agenda em atenção aos povos e populações nas diásporas africana, sendo o Brasil, a nação com a maior população afrodescendente.

O que torna a realização do Censo Demográfico 2020 importante para a população negra, diante das estimativas populacionais do IBGE (2017), as pessoas autodeclaradas (preta e parda), representam 55% do total 205,5 milhões de habitantes em território nacional. E a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD (2018), apresenta indicadores de desigualdade na educação, saúde, trabalho, habitação e renda, entre os grupos de brancos e pardos, brancos e pretos, brancos e povos indígenas.

Nos dados da PNAD, quanto a gênero, mostram pequenos avanços, mas se mantém as desigualdades sobre as mulheres negras quanto a trabalho, renda e habitação, em relação aos grupos de homens brancos e mulheres negras, mulheres brancas e mulheres negras, homens negros e mulheres negras.

Nesse caso é importante olhar o Censo 2020 na Década dos Afrodescendentes, a partir da reflexão do cientista político e antropólogo Partha Chatterjee[5], pela analise que faz das discussões filosóficas sobre direito do cidadão no Estado moderno ocidental industrializado, diante dos conceitos de liberdade e comunidade, que produziram distinção entre cidadãos e populações, pois:

Cidadãos habitam o domínio da teoria, populações, o domínio das políticas públicas (CHATTERJEE,2004).

O autor argumenta que o conceito de população é descritivo e empírico, não trazendo nenhuma carga normativa, sendo com isso uma grande diferença ao conceito de cidadão, que carregará a conotação ética de ser a soberania do Estado.

O conceito de população torna acessível aos funcionários governamentais um conjunto de instrumentos racionalmente manipuláveis para alcançar largos setores dos habitantes de um país enquanto alvos de suas “políticas” – políticas econômicas, políticas administrativas, justiça e mesmo mobilização política (CHATTERJEE,2004). 

As questões não podem serem vistas pela dicotomia, se a centralidade da análise for a população negra no espaço do Estado brasileiro. E o professor Milton Santos sempre deixou claro que a sociedade brasileira, diante do pensamento da elite, a cidadania posta é a do consumo, nesse caso o conceito de cidadão apresentado por Chattterjee é algo distante da ideia de cidadania nacional. Contudo, o cidadão em soberania deve ser visto em ontologia na luta da população negra em território brasileiro, desde o tráfico e escravismo dos povos africanos, com a invasão das terras dos povos originários (indígenas). O que torna os dados censitários realizados desde 1872, pelo Império, serem mais que números manipulados pelo Estado institucionalizado, para a população negra são estruturas e formas capazes de consolidar o Estado Pluriétnico – Heterogêneo.

Principalmente diante dos dados demográficos produzidos na segunda metade do século passado e a primeira década do século XXI, conforme o Quadro I e o Mapa População Negra 2010.

Quadro I: Dados Demográficos
POPULAÇÃO/ANO 1950

Total 52 mil hab.

1980

Total 121 mil hab.

1991

Total 147 mil hab.

2000

Total 170 mil hab.

2010

Total 190

mil hab.

Preta 11,0% 5,9% 5,0% 6,1% 7,52%
Parda 26,5% 38,8% 42,4% 38,9% 43,43%
Branca 61,7% 54,2% 51,6% 53,4% 47,51%
Indígena 0,4% 0,42%
Amarela 0,6% 0,6% 0,2% 0,5% 1,1%

Fonte: IBGE (2018)

Mapa População Negra 2010

O quadro acima e o mapa ao lado afirmam o movimento pelo reconhecimento identitário pela população negra nos censos demográficos e pesquisas amostrais, confirmando mudanças na totalidade populacional, conquistas que se materializaram em políticas pública de reparação histórica e valorização da cultura afro-brasileira e indígena na formação do povo brasileiro.

 

 

Território Quilombola de Baixão Velho (Seabra-BA) Foto: Maurício Reis

E o Censo 2020, único na Década dos Afrodescendentes está sendo reduzido em 32% pelo governo, com o questionário de 112 questões reduzidas para 76, o que irá sim impactar e reduzir informações capazes de ampliar as análises sobre desigualdades e reconhecimento da população a partir do quesito raça/cor.

Por fim, o Brasil em retrocessos, realizará o Censo 2020, o primeiro na história da formação do Estado, reconhecendo as comunidades certificadas, territórios titulados e a população negra quilombola, como sujeita(o) populacional. Mesmo com limitações e reduções, que impactarão nas pesquisas e na formulação de políticas públicas, que avançam na redução das desigualdades sociorraciais no território nacional.

#EuDefensoOCenso2020

#VidasNegrasImportam

#DécadadosAfrodescendentes

#PalmaresDeNovo

[1] Diosmar Filho é Geógrafo, Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisador do GPHHD-UFBA. e-mail: ptfilho@gmail.com

[2] Fragmento do poema Corpo a corpo, em Letras em cor, em linhas-margens, por Alex Ratts em Ogum’s Toques Negros: Coletânea Poética (2014).

[3] MACHADO, Lia Osorio. Origens do Pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930). Geografia: conceitos e temas / org. Iná de Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto Lobato Correia. – 15ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 309-349.

[4] SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão / Milton Santos. – 7. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 176p.

[5] CHATTERJEE, Pathar. Colonialismo, modernidade e política / Pathar Chatterjee: tradução do inglês: Fabio Boqueiro Figueiredo; revisão da tradução e cientifica: Valdemir Zamparoni. – Salvador: EDUFBA, CEAO, 2004. 173p.

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