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O holocausto não-branco segue em curso no Brasil: uma atualização do projeto genocida

A forma perversa, com aparência de “loucura” e incompetência, com que o governo federal e seus parceiros institucionais estão lidando com a pandemia e seus efeitos sobre a população não-branca revela continuidade do projeto genocida.

            Por Marcelo Arouca*

O mundo assiste com apreensão e perplexidade ao comportamento do governo brasileiro diante da pandemia que assolou o mundo e colocou o ano de 2020 como o mais crítico, do ponto de vista humanitário e econômico, desde a Segunda Grande Guerra. Para nós, negros e negras, ou qualquer pessoa que possua um mínimo de bom senso e capacidade reflexiva sobre a história do Brasil, estamos diante de mais uma etapa do projeto de genocídio[1] das populações negras e indígenas (humanos não brancos).

A história do Brasil nos mostra que práticas genocidas sempre fizeram parte do modelo de desenvolvimento adotado por aqui em que a regra era subjugar e assassinar, física ou simbolicamente, o outro, o não branco. Entretanto, este texto não tem por objetivo descrever todas elas e sim estabelecer uma análise entre o final da escravidão, a imigração europeia e os dias atuais. Período que marca a intensificação de um projeto genocida, eugenista, que visa intencionalmente eliminar, de maneira gradual, contínua e, sobretudo perversa, a presença não branca e tudo aquilo que remetesse aos povos negro e indígena.

Como dito acima, e tomando como marco temporal, a abolição da escravidão[2] em finais do século XIX, já era possível notar que o Estado não tinha a intenção de incorporar os ex-escravizados na nova sociedade do trabalho que estava em formação.

De acordo com Florestan Fernandes (2008, p. 28), para ficar em apenas um autor, após a abolição,
“os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho”[3].

Em paralelo, incentivou-se a imigração europeia, custeando-se, inclusive, as despesas das viagens de seus países de origem até o Brasil, consolidando, portanto, a exclusão dos povos não brancos, fomentada pelas elites políticas e econômicas do país. Esse momento é de fundamental importância para se compreender a situação atual das populações não brancas brasileiras, pois representou a etapa seminal para eliminação de tudo que não era branco e, ao mesmo tempo, por incrível que possa parecer, construir a ideia de harmonia entre as raças distintas e, portanto, negar qualquer tipo de segregação de cunho racial, o que Abdias do Nascimento, sabiamente, denominou de genocídio do negro brasileiro[4].

Mesmo com um discurso negacionista do racismo e, ao mesmo tempo, construindo estratégias de eliminação de tudo que era não-branco, o Estado promoveu ações que favoreceram o seu projeto genocida por meio de negações de direitos e da adoção de leis persecutórias contra a população negra. O Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 que, entre outras coisas, considerava criminoso (vadio) o sujeito que não exercesse alguma atividade que lhe permitisse “ganhar a vida” seria açoitado e preso; a proibição de atividades culturais como samba, capoeira, cultos religiosos e até o uso da maconha foram formas de repressão praticadas pelo Estado dentro de seu projeto genocida.

Destaca-se ainda as barreiras impostas no acesso à educação, à moradia minimamente digna, à saúde e também à participação política seja como candidato a cargos públicos ou simplesmente poderem votar para escolher seus representantes. Complementando esse quadro, ainda há o papel fundamental desempenhando pelas forças de segurança do Estado e do aparelho de justiça. Ao longo da história, tais instituições assumiram a função de vigiar, punir e aprisionar corpos não-brancos em espaços cada vez mais precarizados. 

De acordo com o historiador Luiz Antonio Simas, o principal problema das polícias no Brasil é que elas deram certo. Ou seja, elas assumem a função de, além de garantir a propriedade privada da elite (econômica e política), atuar diretamente na aceleração do holocausto não-branco quando adotam protocolos diferenciados a partir do público-alvo de suas operações. Tal situação, coloca a população negra como principal vítima da violência no Brasil.

Ato da campanha Reaja ou Será Mort@, por Mauro Akin Nassor

A especialista independente sobre minorias da Organização das Nações Unidas, Rita Izsák, aponta que cerca de 23 mil jovens negros são assassinados por ano, inclusive pelas mãos do próprio Estado brasileiro, apoiado por uma política equivocada de enfrentamento ao tráfico e consumo de substâncias ilícitas:

A política de “guerra às drogas” do Estado brasileiro é marcada por “ambiguidades”, que permitem a policiais criminalizar indivíduos com determinado perfil étnico e social. Enquanto os negros encontrados portando drogas são acusados com o crime mais sério de tráfico, brancos talvez sejam acusados de posse de drogas ou simplesmente receberão uma advertência.

Desde 2005, um ano antes da aprovação de lei de drogas 11.343/2006, o número de pessoas encarceradas por violações associadas a drogas aumentou 344,8%. Estima-se que, atualmente, 25% dos homens e 63% das mulheres na prisão foram acusados e condenados por infrações vinculadas a drogas. (IZSÁK, Rita. Relatório da ONU, 2016).

Corroborando a afirmação acima, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN 2017 apontou que 176.091 pessoas presas foram condenadas ou aguardavam julgamento pelos crimes de tráfico de drogas e associação com o tráfico de drogas, correspondendo a 28% do total de encarcerados no Brasil.

A política de guerra às drogas implementada pelo Estado brasileiro produz outras consequências, não menos nefastas, para um segmento da população que já padece de outros problemas como falta de acesso aos bens e serviços públicos entre outros direitos: as pessoas que vivem em situação de rua. Essa população, além de possuir demandas que não são minimamente atendidas pelo Estado, acabam por fazer um uso abusivo de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas – inclusive para suportar as intempéries da vida nas ruas, tornando-se alvo de inúmeras formas de violência e violação de direitos.

Apesar de todo esse contexto, ainda assim, o nosso holocausto não-branco é sistematicamente negado. E essa negação esteve e está presente em todos os setores da sociedade, inclusive dentro da classe política que se propõe a fazer um debate mais igualitário e democrático. O holocausto não-branco é negligenciado até pelos setores que reivindicam reparação para os desaparecidos e torturados pela Ditadura militar (1964-1985), mas que pouco ou quase nada é abordado em relação ao massacre de comunidades indígenas no referido período.

Portanto, engana-se quem acha que o projeto genocida está circunscrito a setores da direita tradicional ou extrema direita. Não podemos e não devemos esquecer o aumento exponencial da morte de jovens negros durante os governos de esquerda no país, sobretudo na Bahia, cujo governador parabenizou a operação policial que resultou em 12 mortes de jovens negros, comparando os policiais a “artilheiros diante do gol”.

Dizemos, com isso, que o projeto de genocídio não-branco não pertence a um partido político em específico, mas a um conjunto de forças políticas e econômicas que determinam o funcionamento do Estado, estabelecendo quem deve ou não sobreviver e usufruir das riquezas que ele produz. Liderado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (mas não apenas por ele), atual empreitada de extermínio de população não-branca atende pelo nome Covid-19.

A forma perversa, com aparência de “loucura” e incompetência, com que o governo federal e seus parceiros institucionais estão lidando com a pandemia e seus efeitos sobre a população não-branca revela continuidade do projeto genocida. Nesse sentido, o que vem ocorrendo atualmente no país, e que causa certo espanto na comunidade internacional, é apenas uma atualização das formas de exterminar a população não-branca desse país.


* Marcelo Arouca é cientista social pela Universidade Federal da Bahia; professor; consultor de projetos sociais; e pai de Beatriz, Letícia e Martin.

[1] Adotamos aqui o conceito desenvolvido por Raphael Lemkin, advogado judeu que, na década de 1940, definiu genocídio como um processo de extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso.

[2] Vale destacar que o Brasil foi o último país do mundo a abolir o sistema escravocrata como modo de produção.

[3] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. V. 1: o legado da “raça branca”. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.

[4] NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro. ed. Paz e Terra. 1978

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