Uma pareceria entre Inhotim e IPEAFRO leva a arte negra para o maior museu a céu aberto do mundo, durante dois anos.
A principal bandeira de Abdias Nascimento sempre foi multiplicar conhecimento e levar a arte e a cultura negra a todos os espaços. E dez anos depois da sua partida, seu legado ganha novos horizontes. Uma parceria entre o IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros) e Inhotim leva o Museu de Arte Negra, idealizado por ele, ao maior museu a céu aberto do mundo. Com muita emoção e cantando uma música em homenagem à Mãe Menininha do Gantois, a socióloga e viúva de Abdias, Elisa Larkin Nascimento, abriu a exposição, no último dia 03. E revelou que era um sonho antigo: “A primeira vez que eu vim aqui ao Inhotim, eu tive esse sonho de ter o Inhotim para os orixás do Abdias. É um privilégio esse espaço da natureza, espaço que é sagrado por ser o lugar dos orixás, que são as forças da natureza. Não há nada mais apropriado para mim, do que essa exposição acontecer aqui no Inhotim”.
A presença do Museu de Arte Negra no Inhotim é um marco para a cultura negra no país. A arte como um todo sempre foi um espaço eurocêntrico e elitista, porém o que Abdias fez ao longo de sua trajetória foi valorizar a arte negra e em 2021 vem marcar a história do povo negro brasileiro e reiterar a importância dele no cenário artístico nacional. Para Júlio Menezes Silva, jornalista, curador do IPEAFRO e coordenador do Museu de Arte Negra, deve haver uma reparação por parte do Inhotim neste sentido: “A nossa ideia é mudar por dentro, num processo de cura frente a esse racismo estrutural e estruturante, que nos aleja de espaços como este. A gente vai fazer deste espaço um quilombo, com uma perspectiva reparatória, no sentido de ouvir a necessidade das populações do entorno e perguntar para eles o que podemos fazer para mudar essa situação”, afirma.
É a primeira vez que o Inhotim sedia outro museu dentro de seu espaço. E é a primeira vez também que o MAN ganha uma sede própria. O Museu de Arte Negra foi idealizado por Abdias em 1950, juntamente com os demais integrantes do Teatro Experimental do Negro.
Um ser múltiplo e um dos mais atuantes militantes do Movimento Negro brasileiro, Abdias nasceu em 1914, foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, panafricanista e parlamentar, foi indicado ao prêmio Nobel da Paz em 2010, e nos deixou em 2011. Sua longa trajetória foi trilhada no ativismo e na luta contra o racismo e pela igualdade de direitos.
Neste primeiro ato da mostra, de um total de quatro, a curadoria feita coletivamente entre Inhotim e IPEAFRO reuniu pinturas, desenhos, fotografias e instalações de ambas as instituições. Cada ato possui duração de cinco meses, desdobrados a partir de indagações postas à coleção do Museu de Arte Negra. O primeiro ato traz o diálogo entre as obras de Abdias, Tunga e o acervo do MAN, em um espaço que remete às origens do Inhotim: a Galeria Mata, situada próximo à Galeria True Rouge, uma das primeiras da instituição e que expõe de forma permanente a instalação de título homônimo de Tunga.
Tunga é um dos artistas mais emblemáticos da coleção do Inhotim, com a Galeria Psicoativa e a obra Deleite, no local. Foi o primeiro artista contemporâneo e o primeiro brasileiro a ter uma obra exposta no icônico Museu do Louvre, em Paris. O pernambucano, da cidade de Palmares cresceu convivendo com Abdias, ele era filho de Gerardo Mello Mourão, poeta que, na década de 1930, fez parte da Santa Hermandad Orquídea ao lado de Abdias Nascimento e outros escritores. Foi Gerardo que indicou Abdias Nascimento pela primeira vez ao prêmio Nobel da Paz, em 1978.
Abdias é determinante para compreender a história do povo negro no Brasil, se envolveu em várias frentes do Movimento Negro, que vão da arte à política. Subiu a Serra da Barriga incontáveis vezes, e muito contribuiu para fazer do dia 20 de Novembro, o dia Nacional da Consciência Negra. Abdias fez e faz o negro brasileiro acreditar, quando ainda não se falava sobre “representatividade”, ele impôs a nossa presença em todos os espaços, sobretudo nos espaços de poder. Certamente foi um homem à frente do seu tempo. E ainda hoje, segue nos inspirando. Através do IPEAFRO, segue garantindo acesso a população preta e pobre deste país à arte e à cultura.
Fazer parte deste momento histórico, que tem tanto valor para arte negra brasileira, sobretudo em momento de tamanha polarização e desigualdade social é profundamente inspirador. O IPEAFRO e o Inhotim se uniram não somente para manter vivo o legado e a arte de Abdias, mas como afirmou Júlio Menezes, a ideia é transformar o espaço em um quilombo. E assim garantir acesso à população negra e da periferia, que não tem oportunidade de frequentar esses espaços. Enquanto mulher negra e militante do movimento negro e feminista, me sinto privilegiada por ter conhecido Abdias pessoalmente, e por ser neta de Mãe Hilda Jitolu, que subiu a Serra da Barriga ao lado dele, para lutar juntos por igualdade e respeito. Que possamos seguir seus passos, e fazer seus nomes chegarem às próximas gerações.
Valéria Lima
Editora do Portal Correio Nagô
Jornalista / Mestre em Estudos Étnicos e Africanos