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O Inhotim recebe Mestre Didi e Mônica Ventura em exposição na Galeria Praça

Dois artistas negros de diferentes gerações nos levam a reflexão sobre arte e ancestralidade no Brasil

Arte, tradição e ancestralidade… podemos encontrar todos esses elementos reunidos na mais nova exposição do Inhotim, maior museu a céu aberto da América Latina. Com o título “Os iniciados no mistério não morrem”, e com a curadoria de Igor Simões, e equipe curatorial do museu, Mestre Didi chega em grande estilo. E conta com a companhia de Mônica Ventura, que nos apresenta “A noite suspensa ou o que posso aprender com o silêncio”. 

Créditos: Paula Pepe

Filho de Maria Bibiana do Espírito Santo (Mãe Senhora, terceira Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá) e do alfaiate Arsênio dos Santos, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, artista plástico, escritor e sacerdote afro-brasileiro ganhou o mundo com sua arte. São muitas faces de um homem simples, que não costumava dar entrevistas. Mas usou a arte e a escrita como forma de se comunicar com seu público. Através de suas obras, uniu arte e ancestralidade, e compartilhou com o mundo, em exposições nacionais e internacionais. Ao longo de toda a sua vida artística encontrou muita dificuldade de inserção neste grande mercado da arte brasileira. Um trabalho que iniciou na década de 1960, e que ocupou poucas galerias no Brasil. Mas encontrou espaço em muitos outros países, saiu de Salvador, para expor em locais como Frankfurt, na Alemanha; Washigton, Estados Unidos; Dacar, no Senegal; Lagos, na Nigéria; Londres, Inglaterra, e muitos outros. O artista baiano se fez conhecer e contribuiu com a valorização da arte produzida por pessoas pretas no mundo.  

A exposição Mestre Didi – “os iniciados no mistério não morrem” exibe cerca de 30 obras do artista, feitas em consonância com a sua atividade de liderança religiosa no Candomblé e pertencentes à Coleção do Instituto Inhotim. Seu título, de acordo com o curador convidado Igor Simões, é um trecho de uma cantiga entoada durante as cerimônias fúnebres de um Ojé, sacerdote da tradição Egungun. As obras expostas são feitas, em geral, de fibras do dendezeiro, búzios, contas, sementes e tiras de couro, com a presença de símbolos que remetem às tradições iorubá.

Além de sua atuação no campo cultural, Mestre Didi foi sacerdote supremo – também conhecido como Alápini – do culto aos ancestrais Egungun, e fundou a Sociedade Religiosa e Cultural Ilê Asipá, em Salvador, em 1980. Além das obra de arte, as vivências da trajetória de Mestre Didi estão registradas na exposição, através do acervo da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (SECNEB), com uma série de documentos e imagens cedidos por uma de suas filhas, a cantora e bailarina Inaicyra Falcão. 

Apesar de se inspirar na religiosidade de matriz africana praticada no Brasil, Mestre Didi construiu sua própria identidade, a partir de muitas pesquisas, trabalho e dedicação. Publicou diversos livros, visitou países do continente africano e atuou incessantemente pela valorização da cultura negra, ao longo de toda a sua trajetória. Em textos escritos sobre ele, sobretudo na década de 1980, a arte de Mestre Didi é sempre retratada como artesanato ou mesmo naif (com pouco nenhum valor de mercado, tendo em vista que designa a produção de artistas autodidatas que desenvolvem uma linguagem pessoal e original de expressão, sem utilizar uma técnica específica). Segundo Igor Simões, a arte negra é sempre colocada à prova, “ninguém questiona se uma Madona do Leonardo da Vinci é uma pintura ou uma peça sacra, o mesmo acontece aqui. De fato há um diálogo com a prática ritualística, mas essas peças são obras de arte, são esculturas tridimensionais feitas por um artista extremamente hábil, com um domínio muito preciso”, afirma.  

A arte realizada por artistas negros e negras foi considerada de menor valor durante boa parte da história do Brasil e do mudo. Sobretudo toda aquela relacionada às tradições e/ou religiões de matrizes africanas. O que muitas vezes foi confundido com o sagrado propriamente dito, porém o curador da mostra reitera a importância de tal dissociação, “nós temos aqui a produção artística de um escultor profundamente informado, em conexão com um legado afro diaspórico produzindo a partir de Salvador, na Bahia”. Há um marco histórico na exposição dessas obras neste espaço onde a arte tem mais valor, que tem início quando o Inhotim abraça a “arte negra” de Abdias do Nascimento, em dezembro de 2021. A parceria com o Ipeafro abre espaço para que outros artistas negros e negras ocupem as galerias deste grande museu de arte contemporânea. 

Quando falamos em arte negra, estamos falando sobre arte criada por pessoas negras, e por muito tempo ela esteve restrita a espaços exclusivos, como se não merecesse espaço nas grandes galerias de arte do Brasil e do mundo. Mas para falarmos em arte negra, precisaríamos falar em arte branca, como afirma o curador da mostra, Igor Simões, que trabalha com o conceito de história da arte branco-brasileira, “se nossos acervos nos museus tem uma imensa maioria de artistas brancos, se essas instituições são geridas por pessoas brancas, se os críticos, historiadores produzem história da arte a partir de referenciais europeus, na sua grande maioria brancos, e se a gente nomeia que isso é arte afro-brasileira, a gente precisa falar o nome da outra também. Se arte produzida por pessoas negras é afro-brasileira, a arte produzida por pessoas brancas também tem marca, ela é arte branco-brasileira.”

Abdias e Mestre Didi abrem espaço para que as novas gerações de artistas negros ocupem os espaços que merecem com as suas produções, como é o caso de Mônica Ventura, que expõe suas obras no vão central da Galeria Praça, uma das mais visitadas no museu. A obra se destaca pelo seu tamanho, aproximadamente 4 metros de altura e 9 metros de largura. Mônica Ventura (São Paulo, 1985) traz uma proposta de olhar o entorno e a potência local, fazendo uso da terra da região na construção da obra – a parede, o leito e a escultura são feitas desse elemento.

“A noite suspensa ou o que posso aprender com o silêncio” nos leva a reflexão sobre vida e morte, ancestralidade e arte… tudo está conectado! A força que vem da terra, que é para onde voltamos. Apesar de terem estilos completamente diferentes, a arte de Mônica se conecta a Mestre Didi pela ancestralidade e pela força. Para Mônica, “estar no Inhotim é uma continuidade do seu posicionamento profissional, que é adentrar espaços institucionais, com meu corpo e minha obra, e levar vozes diversas, que tem narrativas singulares”. Neste trabalho, Mônica Ventura faz alusão a diferentes práticas religiosas de matrizes ancestrais, e o público é convidado a desvendar as camadas da instalação, cuja forma se associa aos zangbetos, espíritos ancestrais cultuados em algumas religiões no Golfo do Benim, responsáveis pela proteção e afastamento de males, e também aos praiás, elementos fundamentais da cosmologia Pankararu, povo originário brasileiro cujo território tradicional se encontra próximo ao rio São Francisco. Para os Pankararu, os praiás marcam a presença dos Encantados, entidades vivas ligadas diretamente ao plano espiritual. Ambos são manifestados por meio da dança e do uso de um tipo de máscara de corpo inteiro feita em palha. Nos dois casos, quem ocupa aquele corpo persiste como incógnita; ele observa, mas não pode ser observado.

Mônica Ventura nasceu na capital paulista, é Artista visual e designer, atualmente é Mestranda em Poéticas Visuais, onde pesquisa filosofias e processos construtivos de arquitetura e artesanato pré-coloniais, a partir do Continente Africano e dos Povos Ameríndios. Une gênero e raça em narrativas que buscam compreender a complexidade psicossocial da mulher afrodescendente inserida em diferentes contextos. Através de suas obras, Mônica se impõe como mulher negra, e permite que seu corpo político esteja sempre presente! Através do diálogo entre sua ancestralidade, suas pesquisas e sua trajetória, Mônica nos apresenta sua identidade única na Galeria Praça, no Inhotim. 

Sua presença neste momento, junto a Mestre Didi e Abdias Nascimento no Inhotim, nos mostra quem é essa grande artista. Nascida na década de 1980, já nos mostra a força dessa geração, que já nasce com tantas referências, e faz jus ao chão que está pisando. Ver seu trabalho ao lado daqueles que a inspiraram nos permite ver a continuidade do legado, e o nascimento de muitos outros que virão e encontrarão um campo fértil, e a possibilidade de ver na arte um caminho possível. Que o Instituto Inhotim se mantenha firme na missão de levar às suas galerias cada vez mais artistas negros, que a cor da pele não seja barreira para nós negros adentrar o espeço, sempre tão segregado que é arte no Brasil. 

Valéria Lima
Jornalista, Mestre em Estudos Étnicos e Africanos

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