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O lugar do corpo de Helena no Leblon

O LUGAR DO CORPO DE HELENA NO LEBLON

 

Por Diosmar Filho[1]

Os jornais acodem para catequizar e doutrinar leitores

confessando a seus olhos castos

que os clandestinos fugiam de lutas ditas tribais

cruéis golpes militares e da fome.[2]

Fragmento do poema Clandestino do escritor Edson Cardoso.

 

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As Helenas de Manoel Carlos

 

As mudanças nas relações de poder no Brasil não são tão compreensíveis e por isso tenho buscado a aproximação sobre essa realidade com uma pergunta: o que aconteceu com o Brasil de 15 de dezembro 2002? A questão tem ficado sem resposta, mesmo tentando ver algo nas previsões de Nostradamus … nenhuma coisa se relaciona.

Sem encontrar respostas, busco um diálogo por três eventos, pensando no que significa a escala da corporeidade numa totalidade espacial. Para melhor compreensão me encontro com os conceitos do professor Milton Santos numa citação de K. Kosik que define o espaço como um fator social que pelos fenômenos sociais é:

Um fato histórico, na medida que em que o reconhecemos como um elemento de um conjunto e realiza assim uma dupla função que assegura, efetivamente, a condição de fato histórico: de um lado, ele se define pelo conjunto que também o define (…) e, ao mesmo tempo em que adquire uma significação autêntica, atribui um sentido a outras coisas. Segundo essa acepção, o espaço é um fato social, um fator social e uma instância social.[3] 

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O primeiro evento se passa na cidade de Estocolmo (Suécia) em 16 de dezembro de 2002, quando miro na janela a neve caindo e, na sala, a tv noticia mundialmente que o Brasil diplomou no dia 15 de dezembro de 2002, para presidente da República um metalúrgico, nordestino, sem diploma universitário. A situação já conhecia, mas visualizar por uma tela num apartamento na Escandinávia foi diferente. Sentia uma transformação que me levava de Passagem dos Teixeiras-Candeias para Salvador na Bahia. O evento produzia novas possibilidades no tempo presente e futuro e não poderia ficar distante do desafio, já que tínhamos consciência sobre os limites também desse evento.

A paisagem e a tela se conectavam com palavras do professor Sinval de Geografia no ginásio, sobre o melhor lugar do mundo – tirando qualquer dúvida que o Brasil entrava no novo milênio. O outro evento discorre quatorze anos após a diplomação do ex-presidente Lula, no segundo turno da eleição para Presidência da República em 2014. Após o primeiro turno, estava no Rio de Janeiro participando do I CONGEO[4] na PUC-Rio, próximo ao Leblon, no dia 09 de outubro, resolvi observar como Manoel Carlos produz suas Helenas para as novelas global. Caminhei buscando localizar um restaurante para almoço e, observando a paisagem, encontrei um que satisfazia o bolso e promovia a observação da complexidade para produzir uma Helena no Leblon.

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A observação se interrompe pela tv, na emissora da Helena, com o horário eleitoral. Naquele momento era apresentado o candidato do PSDB que protestava pelos privilégios da elite do século passado contra o programa de reeleição da presidenta Dilma Rousseff do PT, baseado unicamente na valorização dos números com o compromisso do ex-presidente Lula em 2002, decorrentes do crescimento econômico e a redução da fome e da miséria.

Encerrado o horário, vi que Helena estava na conversa da mesa ao lado com cinco homens jovens não-negros que denunciavam o Bolsa Família, os Programas de Moradia e as Cotas Raciais nas universidades como ações que estavam quebrando o país para sustentar os filhos dos pobres preguiçosos. Na outra mesa, um outro homem não-negro questionou os semelhantes, perguntando: “onde estamos? nós abandonamos a política para esse analfabeto que mal sabe escrever, que nem sabe o significado do título Honoris Causa, e agora é doutor! Estão quebrando o país, temos que voltar para política, ocupar as ruas e tomar nosso país das mãos do PT, estão entregando nosso dinheiro para ditadura cubana”.

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Naquele momento, no bairro da Helena, se apresentou as profundas desigualdades e o racismo, com todas as formas de violência, que vinham pela corporeidade.

O terceiro evento é um processo dos anteriores em dois atos: no primeiro, o movimento da presidenta Dilma no último debate eleitoral na tv, em 24 de outubro de 2014,  encerra a campanha pela reeleição convocando a totalidade do povo (mulheres, jovens e negros) para votarem na frente progressista; e o outro é o movimento das pessoas não-negras nas ruas das grandes cidades durante o ano de 2015, convocados pela tv responsável por Helena, para criminalizar a derrota do candidato do privilégio, clamando pela intervenção militar, contra a corrupção, pelo impedimento do mandato da presidenta eleita nas urnas, culminando no final trágico, em  17 de abril de 2016, a Câmara Federal aprovou o Golpe Parlamentar contra a Constituição Federal de 1988.

As ideias e as ações que envolvem o terceiro evento não devem ser confundidas com ética e moral. Trago ao diálogo as ideias de Sartre sobre O Existencialismo é um Humanismo, para análise do engajamento da elite nacional contra o Estado de Direito, não julgando os homens com afirmações de má-fé, mas definindo que a situação humana como sendo de uma escolha livre, sem escuras e sem auxílios, todo homem que se refugia por trás de desculpa de paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má-fé.[5]

Perante a realidade Sartre responde que:

Não o julgo moralmente, mas defino sua má-fé como erro. Aqui, não podemos evitar um julgamento de verdade. A má-fé é, evidentemente, uma mentira, pois dissimula a total liberdade do engajamento.[6]

No processo a realidade nos lugares é tomada pela má-fé e o fator social se reconstrói em narrativas que violentam a diversidade e as diferenças, a dimensão de classe construída pela frente de esquerda e progressista não se sustenta frente à cultura de ódio, clamado com uso da fé, trazendo a representatividade da corporeidade de Helena para anular o heterogêneo que se afirmar em movimento no espaço.

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O movimento patriarcal anula 54 milhões de votos e coloca em debate a moralidade da família não-negra, contra todos os princípios humanos presentes em corpos negros, ignorados do debate central pelos progressistas ao pensar o desenvolvimento nacional. O Leblon não suporta Jessica no cinema e o sistema de educação deve ser mudada pelo moralismo, conhecimento sobre gênero e relações étnico-raciais devem ser excluídas dos currículos escolares, assim como a representação do corpo trabalhador deve pagar por abandonar as fábricas e ocupar as cadeiras do poder numa sociedade que a cidadania é para o privilégio.

Sobre a reflexão Milton Santos coloca que a globalização faz redescobrir a corporeidade, repetindo Edgar Moran, “hoje cada um de nós é como o ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que o contém”.[7]

O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender.[8]

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O processo analisado pela corporeidade traz as condições de como se realiza o Golpe Parlamentar da minoria não-negra sobre a maioria negra, os caminhos trilhados pelos apaixonados da esquerda e progressista, não deixa espaço para compreensão de como a mídia e o judiciário, construíram narrativas políticas necessária para o êxito sem um levante da maioria negra.

As paixões não reconheceram que o capitalismo se estrutura pelo racismo em sociedades ocidentais colonizadas e garante as relações de poder para se levantar como ocorre no Brasil, produzindo sua própria justiça e legalidade para que pessoas negras e não-negras sejam violentadas fisicamente e moralmente.

O efeito por hora é devastador sobre a totalidade negra – e as eleições municipais de 2016, apresentam que 1/3 dos votantes protestaram com votos brancos, nulos e abstenção, do outro lado, os opressores conseguem dos seus oprimidos o direito de se eleger como possibilidade de solução para relaxar a violência que os mesmos produziram.

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[1] Geógrafo, professor, ativista do Movimento Negro – E-mail: ptfilho@gmail.com

[2] CARDOSO, Edson Lopes. Gravatá da fonte. Brasília, Ed. do Autor, 2016. p. 34.

[3] SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica / Milton Santos. – 6. ed., 2. reimpr. – São Paulo: EDUSP, 2012.p. 163

[4] I Congresso Brasileiro de Geografia Política, Geopolítica e Gestão do Território

[5] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução João Batista Kreuch. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 54.

[6] Idem.

[7] SANTOS, Milton. A Natureza do espaço – técnica e tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. 259p. (Versão em PDF)

[8] Idem.

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