Sabe-se que as principais hierarquias operam sobre os corpos, a unidade de interação social, de modo que as categorias disputam a possibilidade de marcá-los. Como essa marca visa a dominação, os corpos marcados são os corpos dominados – os corpos não marcados sugerem uma certa universalidade, que lhes possibilita representar a humanidade sem questionamentos aos seus privilégios. Nessa disputa, os marcadores de raça e gênero têm se sobressaído, historicamente. Saber a cor e supor os órgãos genitais de alguém diz mais sobre essa pessoa do que qualquer outro dado em nossa sociedade.
Se uma pessoa é negra, é possível “saber” seu nível de escolaridade, de que lado da cidade mora e a performance sexual. Se uma pessoa é mulher, é possível “inferir” sua habilidade para dirigir, tomar decisões ou executar trabalhos domésticos. Outras marcas complementam esse julgamento inicial, como a roupa, que vai dizer se o jovem negro representa perigo, dada a tendência para o crime que a ideologia lhe imputa, ou se a mulher é “decente”.
Entre as razões para que raça e gênero sejam tão importantes está a dificuldade de burlá-los (reconhecer é fundamental para dominar) e a vinculação a caracterizações biológicas (cor e órgãos sexuais), o que transmite uma falsa ideia de naturalização e imutabilidade.
O fato é que ambos os marcadores detêm posições privilegiadas no posicionamento dos agentes sociais na hierarquia da dominação. As mulheres negras são infligidas por ambos, e a eles reagem. Não é à toa que se deve a elas as primeiras e principais produções intelectuais e militantes sobre as interseções de raça, gênero, classe e sexualidade.
Foram as mulheres negras que começaram a inserir múltiplas pautas nas agendas dos movimentos sociais. Antes delas, só se falava de uma por vez – se tanto. Quem estuda sexualidade, gênero, raça ou classe sem referência em grandes intelectuais negras desconhece a complexa conformação das hierarquias sociais e está longe de contribuir eficazmente com sua dissolução.
Mas a contribuição das mulheres negras não se limita à luta política. Ou melhor: se as hierarquias marcam nos corpos dominados o símbolo da diferença, esses corpos serão necessariamente políticos. Pois está nas mulheres negras negras, em especial, os símbolos da resistência cotidiana à desigualdade, mesmo que elas não estejam inseridas nos espaços políticos reconhecidos.
Basta lembrar que foram elas, principalmente as sacerdotisas e as soberanas, que mantiveram vivas as memórias e tradições de África, o que impediu o completo apagamento de nosso orgulho e permite, para muitos de nós, reescrever uma identidade com elementos próprios.
As mulheres também têm garantido a sobrevivência da comunidade negra. O esgarçamento da família negra nem sempre foi tão devastador, aprofundado com o advento da “guerra às drogas” (só nos tempos áureos do período escravagista a mão-de-obra negra fora tão útil, barata e descartável). Resta a essas mães criar sozinhas os filhos, muitas ao custo de uma dedicação ainda maior aos filhos das sinhazinhas do século XXI, como condição para sustentar os seus.
O que ocorre na presença do racismo e do machismo é uma inversão do papel e da importância da mulher negra. A hegemonia branca e masculina usa ambas as diferenças para opor interesses e privilégios de homens negros e mulheres brancas. O mecanismo é seguinte: enquanto as mulheres brancas, quando conscientes da dominação masculina, receiam perder os privilégios conferidos pela sua posição racial, os homens negros, mesmo consciente do machismo, receiam perder o status na hierarquia de gênero. Vide a hegemonia masculina, no movimento negro, e branca, no movimento feminista. Também são notórios os casos de reprodução de outras formas de discriminação em espaços que combatem uma em específico.
Por que isso se configura de modo tão importante? Parece arriscado, mas não destituído de nexo, argumentar que as mulheres negras oferecem um grande perigo para o status quo. As mulheres negras constroem uma ponte entre as duas principais categorias de diferenciação entre os seres humanos, a raça e o gênero. E isso se apresenta, na luta social, como uma das experiências mais importantes para o enfrentamento das múltiplas formas de dominação.
Para ficar apenas nas questões de raça e gênero, vamos contrapor o 25 de julho com o 8 de março e o 20 de novembro. No Dia Internacional da Mulher, comemoram-se conquistas como a possibilidade de trabalhar, mas as mulheres negras sempre trabalharam. Também se relembra que as mulheres conquistaram o direito ao voto, mas as mulheres negras figuravam duplamente nas legislações racistas que também impediam o voto dos negros. Por fim, uma das principais pautas do movimento feminista atualmente, o direito ao aborto, é especialmente importante para as mulheres negras, principais vítimas das diversas causas de morte materna.
O movimento negro escolheu o dia do assassinato de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, como data histórica da luta negra. Anos depois, percebe-se a importância de resgatar a História das inúmeras lideranças femininas, como Maria Zeferina, que reinou sobre o Quilombo do Urubu, do tamanho de uma cidade. A questão é: se mulheres como Maria Felipa, Carolina de Jesus ou Lélia Gonzalez foram guerreiras, intelectuais e ialorixás de destaque e importância histórica, por que seus nomes foram riscados dos livros de História, mesmo nas poucas vezes em que eles registravam os homens negros?
Fica nítido que as mulheres negras estavam presentes e são fundamentais à luta contra o machismo e o racismo ao mesmo tempo. Seu próprio corpo em movimento questiona os estereótipos de raça e gênero. É como se elas estivessem conclamando a assunção da luta das mulheres pelo movimento negro e o enegrecimento do feminismo. Com isso, também sugerem uma aproximação dessas lutas que, afinal, produzem uma hierarquia social, sustentada por várias redes e seus marcadores.
Imagina se mulheres brancas e homens negros percebessem que podem se unir e combater ambas as opressões em conjunto? Imagina se outros se juntassem a eles e forjassem dali uma nova sociedade, igual na diferença e diversa na semelhança?
As possibilidades abertas aos mais diferentes movimentos sociais que se associassem não podem sequer ser vislumbradas. O risco de superar a polarização das identidades torna as mulheres negras potencialmente perigosas para a dominação. E particularmente importantes para as lutas contra o racismo e o machismo, associados ou não, e todas as formas de discriminação a ser superadas.