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Gênero e música

 

Como sempre, esse mundo virtual me fascina. Antes, o que só era acessível na academia, nas rodas de conversa e nos cafés científicos, pode com relativa facilidade ser encontrado nas redes sociais. E que ferramenta incrível é o Facebook! Nela, fico sabendo de eventos acadêmicos, eventos culturais; recebo livros, músicas e tudo mais que essa rede possa oferecer.

E foi navegando mais uma vez nesse mundo virtual que soube do lançamento de um livro intitulado Pagodes Baianos: entrelaçando sons, corpos e letras, de Clebemilton Gonçalves do Nascimento, e tive a ideia de escrever esse texto. O livro me fez lembrar de um dos primeiros textos que fiz para o Escrevivência, e retomo essa ideia porque além de sentir mais uma vez a necessidade de falar sobre a violência contra a mulher, creio que seja de total pertinência compartilhar algumas ideias, e, quem sabe, esclarecer algumas dúvidas entre a relação estabelecida entre gênero, sexualidade e poder presente nas estruturas sociais existentes.

E é falando de violência contra a mulher que retomo a discussão acerca das músicas do pagode baiano, pois é do conhecimento de todas nós, mulheres, que ainda temos uma dívida irrestrita de servidão e obediência aos padrões morais de nossa época, ao regime patriarcal de Estado. Ainda que em tempos atuais essa ideia possa parecer contraditória, mas se constata numa triste realidade.

E é nesse contexto que muitas mulheres têm sofrido consequências drásticas por conta de um discurso machista alimentado pelos poderes e representações do Estado (não só por parte do Estado, mas da sociedade civil como um todo; afinal, a burocracia estatal não consegue controlar tudo – por mais que os prepostos do Estado queiram isso). E esse discurso é veementemente legitimado pelo Estado, e sustentado pela mídia, que não só fomenta as ações vistas como “normais” por parte desse grupo de cantores de pagode, como reafirma a cada instante o que essas músicas trazem em suas letras inserindo novos conceitos na sociedade, que por sua vez, não questiona os aspectos imbricados nesse cenário, e assumem daí novas posturas e constroem valores que deixam de ser questionados, por doravante pertencerem ao campo da normalidade.

Quando falo de conceitos, vos trago o termo recente criado no cenário musical baiano, que atingiu dimensão nacional graças às novelas da Rede Globo, e vem sendo adotado por indivíduos que ultrapassam a linha de limite do bom senso, e utilizam do entretenimento sensacionalista midiático para reforçar o ataque violento às mulheres. E este novo conceito é o da piriguete: mulher dona da própria vida e da própria sexualidade, que não se detém às imposições patriarcais sobre o que fazer com o seu corpo, e se arvora de autonomia sobre seu vestuário e estilo de vida. E Clebemilton do Nascimento (autor do livro citado no início do texto) nos diz em seu artigo intitulado; Piriguete: a construção discursiva da mulher nos Pagodes baianos, que “Nas letras de pagode, o corpo se apresenta como uma arena de disputa e de relações de poder e veicula um discurso masculino que quer ter um poder de controle sobre a sexualidade da mulher”.

E é divagando nesse campo que discuto sobre a representação que o corpo traz na sociedade, e as conotações de hibridismo cultural em que está inserido. Porque se atentarmos para os conteúdos, as ideias fomentadas e os tipos de comportamentos que as músicas promovem, serão notados os efeitos que elas geram diante a incitação em que é feita. E com isto as provocações que se abrem para que sujeitos se ponham diante de um corpo, que ele entende como seu num jogo de conquista de poder e dominação que irá exercê-lo.

Sendo assim, não se faz mais notório os atos de violência contra a mulher, bem como os desmembramentos que isso gera por conta dessas músicas. Pelo menos é isso que os cantores dessas bandas colocam nas cabeças das pessoas que ouvem as músicas que eles cantam, pois estes trazem consigo um público cativo, que além de consumirem essas músicas, alimentam as ideias que elas trazem. E não só isso: adequam-nas ao seu cotidiano. Pois quando uma música nos diz que “mulher é igual a lata: um chuta e outro cata”, e vimos isso repetido no comportamento dos homens, já não mais pertence ao campo da normalidade, creio eu.

E essa síndrome violenta que deixa de ser subjetiva e tem se materializado fora do campo da abstração, pois os índices de atentado violento às mulheres estão aí para nos fazer inferir sobre os desajustes que vêm ocorrendo, não é coisa dos dias atuais tão e unicamente promovida pelos cantores de pagode baiano. Claro que essa temática tem ganhado mais notoriedade em dias atuais, mas outros músicos brasileiros também trouxeram em suas composições/interpretações atitudes de incentivo à violência contra a mulher. E me desculpem as fãs e amantes de Chico Buarque, mas na música Geni e o Zepelim, Chico fez a mesma incitação que as músicas do pagode baiano fazem, quando disse que “Joga pedra na Geni/Joga pedra na Geni/Ela é feita pra apanhar/Ela é boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!”. Creio que pensem que isso não passa de um blefe, e como sou muito cuidadosa com o que escrevo e publicizo é que vos trago aqui a letra da música, a fim de que possam constatar o que acabei de dizer.

Doravante, é válido pensar de que modo esse tipo de comportamento vem ganhando espaço que não os shows e eventos públicos em que encontramos essas tais músicas, mas como isso tem moldado o comportamento das pessoas. De que forma essas letras são personificadas nas atitudes de homens que arrogam (reivindicam para si) o direito sobre o corpo e a sexualidade da mulher. Por mais que isso pareça assustador, é a mais pura e dura realidade.

Aproveito a ocasião para contar um caso verídico que me foi relatado por um conhecido que serve muito bem para mostrar a que ponto chega a naturalização da violência sexual contra a mulher, e também denunciar como os homens são criados desde cedo para tratar as mulheres como bens pessoais dos quais eles podem dispor como bem entender. Disse esse conhecido que, em uma aula, estava discutindo sobre a qualidade do sistema de transporte coletivo de Salvador, especialmente sobre como as pessoas são obrigadas a pagar caro para viajar em ônibus lotados, desconfortáveis, sujos além de ter de passar horas esperando no ponto e enfrentar os famigerados engarrafamentos. Ao que uma estudante disse que, no caso das mulheres, a situação é pior porque, como se isso tudo não bastasse, ainda têm de enfrentar as “roçadas” dos homens. Após a menina ter falado isso, um estudante sentado ao lado dela pediu a palavra e disse o seguinte: “o que é que tem, professor? Besteira! Uma roçadinha de vez em quando é até bom”. O meu conhecido ficou escandalizado com o que ouviu e perguntou ao estudante dele se ele não tinha consciência do que havia acabado de falar. Ao que ele completou: “Bobagem. Eu só não admito que ninguém faça isso com a minha mãe, pois se eu ver algum gaiato procurando ousadia com ela, eu dou um murro. Mas com a mulher dos outros…” Ou seja, ele só não admite que ninguém faça isso com a mãe (ou a namorada) dele. Já com a minha mãe ou comigo, os homens podem fazer o que quiserem. Pimenta no rabo da mãe – ou da namorada – dos outros é refresco.

O que faz um jovem pensar em agir assim diante às mulheres que não pertençam ao seu círculo familiar? Só porque é a mãe dele merece mais respeito que as outras? Ou melhor, só a mãe dele merece o devido respeito? As demais que se danem?

Cenas como essas são presenciadas cotidianamente por muitas mulheres que lutam para não perpetuar esse cenário de horrores em que vivem e sofrem atentados violentos por conta disso. E são homens com esse tipo conceito formado, que promovem ações mais danosas que as “roçadas” nos coletivos.

Pois o ataque deixa de ser verbal e passa a ser físico. Os ataques violentos saem das ofensas ditas nas letras das músicas e ganham espaço nas casas, nos bares, nas ruas e avenidas que essas mulheres frequentam, e, por não serem consideradas donas de si, são agredidas física e sexualmente. Ou melhor, essas músicas são nada mais do que a naturalização de práticas violentas contra a mulher já existentes em nossa sociedade, e que esta encara, também por conta dessas músicas, encara com naturalidade.

No início desse ano, mas precisamente em fevereiro, foi amplamente noticiado um caso estarrecedor ocorrido na cidade de Queimadas, na Paraíba: um estupro coletivo organizado como festa de aniversário. Um caso que chocou o país por conta dos requintes de crueldade utilizados em seu exercício. Dez homens envolvidos, sendo dois irmãos. O fato consistiu no seguinte: um dos envolvidos, ex-cunhado de uma das vítimas estuprada e posteriormente assassinada, faria aniversário e pediu de presente ao seu irmão uma sessão de estupro com algumas garotas do bairro. Nesse aniversário em que as meninas estariam presentes, haveria uma simulação de assalto promovida pelos próprios envolvidos, a fim de assustar as garotas, e, com as mulheres assustadas, eles partiriam para o ataque. Nesse atentado, seis mulheres foram vitimadas. Ou seja, o caso é tratado com total escárnio a ponto de homens fazerem do atentado sexual às mulheres algo que está para além do objeto de desejo que elas representavam. Eles detinham o direito de usá-las da forma como quisessem e bem entendesse, e depois dispensá-las do modo que os conviesse, matando-as. E tudo isso foi feito como uma festa!

Conseguem perceber até aqui o grau de seriedade e complexidade de tudo o que falei até então? As relações de poder postas nas músicas sejam do pagode baiano, como a exemplo de Na Geral, da banda No Styllo, ou de célebres da música popular brasileira como Chico Buarque, atingem dimensões que são propositalmente criadas para que sejam executadas. As relações sociais, de gênero, e, sobretudo de poder que estão entrelaçadas nestas constituem os fatos que presenciamos nos noticiários, e nos casos que nos parecem alheios, mas que são mais pessoais do que nós mesmas possamos determinar. Digo isso, porque quando um homem, “faceiramente” chama uma mulher de piriguete, ele previamente sabe a que tipo de mulher ele está se referindo. Esse novo conceito referencia um conjunto de valores que são atribuídos e personificados na figura de uma mulher que merece ser desvalorizada por ser uma piriguete, e sendo assim, deve ser desrespeitada, linchada física e verbalmente.

As músicas são veiculadas numa proporção extraordinária, e à mesma proporção mulheres têm sido vitimadas por atores – porque encenam em si a necessidade de dominar uma mulher – que creem piamente na vertente que essas músicas trazem. Enquanto isso acontecimentos como o da Paraíba se reverberam causando pouco estranhamento público, por ser considerado simplesmente como mais um atentado homicida, mas um caso de violência a ser registrado e ponto. Sem mais, seguimos em frente num país que alimenta uma estrutura perversa de desrespeito à mulher, e tem sido formalizado desde a letra de uma música ao ato violento em si.

Fonte: Escrevivência

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