A 2ª edição da Marcha pauta não só o Bem Viver, como em 2015, mas a reparação histórica, que envolve financiamento, políticas públicas e valorização cultural.

Por Dindara Paz |Alma Preta.
Quando se fala em reparação histórica, o que é possível imaginar para as mulheres negras? No mês do Novembro Negro, a Alma Preta ouviu lideranças e ativistas da Marcha das Mulheres Negras para entender quais são os caminhos para adoção de medidas reparatórias da população negra no Brasil.
Este ano, a Marcha realiza a 2ª edição com caráter nacional e internacional com participação de movimento de mulheres negras das 27 unidades federativas do país e ao redor do mundo com o lema pela Reparação e o Bem Viver. A marcha acontece no dia 25 de novembro em Brasília.
Atualmente, o movimento negro e parlamentares articulam a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 27/24, chamada de “PEC da Reparação”. O texto propõe a criação de um fundo nacional de R$ 20 bilhões para Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial, além da responsabilização financeira do Estado brasileiro pelos prejuízos históricos causados à população negra.
Segundo o texto da PEC 27/24, uma das fontes de recursos financeiros do Fundo serão as indenizações a serem cobradas das empresas que, reconhecidamente, lucraram com a escravidão da população negra brasileira no Brasil.
Uma dessas empresas é o Banco do Brasil. Em 2023, o banco foi alvo de um inquérito inédito do Ministério Público Federal (MPF) que apurou o envolvimento e a responsabilidade histórica da instituição no tráfico e escravidão de africanos no país durante o século 19.
No mesmo ano, a instituição reconheceu sua dívida histórica e pediu perdão ao povo negro no país e se comprometeu a adotar medidas de reparação.
Em abril de 2025, o Banco do Brasil divulgou um relatório com 114 iniciativas voltadas à promoção da igualdade racial. Entre elas estão o apoio à infraestrutura de unidades educacionais em comunidades periféricas e quilombolas, fomento à diversidade no ingresso de novos colaboradores no concurso da empresa, além da criação de um edital específico para seleção de expositores em espaços dedicados à memória da escravidão.
Reparação requer ressarcimento financeiro
Um dos caminhos da reparação passa por exigir um ressarcimento financeiro do Estado. Isso inclui instituições públicas como o Banco do Brasil, analisa Tássia Mendonça, cientista social e consultora em filantropia para movimentos de mulheres negras.

“Não bastam ações do campo da representação artística ou do financiamento de cultura. A gente quer acesso a crédito. É saber o quanto o Banco do Brasil lucrou com a população negra e o quanto que ele deixou de investir nessa população, seja no desenvolvimento econômico, no acesso a casas e no desenvolvimento de negócios liderados por pessoas negras”, avalia Mendonça.
Ela pontua que a discussão sobre reparação histórica para a população negra no Brasil encontra referências em experiências internacionais concretas de políticas reparatórias implementadas ao longo do século 20.
O caso das robustas políticas instituídas no pós-Segunda Guerra para o povo judeu, como a instalação de museus, políticas de memória e reassentamento, serve como um marco fundamental, apesar das diferenças inerentes às catástrofes humanitárias da escravidão transatlântica e do genocídio, destaca Mendonça.
“As empresas que lucraram com o trabalho do povo judeu em campos de concentração tiveram que tomar tais medidas para ressarcir essa comunidade. São medidas de ressarcimento individual, familiar, mas também coletivas sobre como falar dessa história, sobre políticas públicas que precisam ser implementadas para que isso não ocorra”, avalia a cientista social.
Mulheres negras precisam participar da mesa de decisões
Para entender o debate em torno do conceito de reparação histórica, integrantes do movimento pontuam que as mais de três séculos de escravidão no Brasil provocaram desigualdades raciais e de gênero que resultaram em desigualdades sociais e violências, especificamente às mulheres negras, como a violência sexual.
Nesse contexto, a pesquisa “DNA do Brasil”, da Universidade de São Paulo (USP), identificou que o DNA masculino da população brasileira é majoritariamente de homens europeus, enquanto o DNA feminino tem origem principalmente em mulheres africanas e indígenas.
A historiadora e pesquisadora de lutas abolicionistas e pós-abolicionistas, Luciana Brito, considera que o resultado da pesquisa reflete o histórico de abusos sexuais e violências ao qual as mulheres negras estão submetidas.

“Historicamente, essa nação escravista, violenta, racista, misógina, que odeia mulheres, em especial mulheres negras e indígenas, nos deve um estado dessa tal real democracia: um estado de cidadania, de cuidado, de uma vida segura, saudável, com a infância, vida adulta e as velhices garantidas”, observa a especialista.
O rompimento dessas estruturas passa também por exigir do Estado a proteção de lideranças negras para evitar que casos como o da vereadora Marielle Franco e de Mãe Bernadete voltem a acontecer, observa a cientista social Tássia Mendonça.
“O Estado brasileiro, da maneira como está organizado, não está só falhando com a população negra. Ele está ativamente contribuindo para o extermínio da juventude negra, para o assassinato e para a morte das nossas lideranças”, destaca.
Políticas públicas como reparação
Para aproximar o debate da reparação às mulheres negras, é preciso pensar no aprimoramento de políticas públicas que garantam o direito a serviços de assistência como o Bolsa Família; à educação, como as cotas nas universidades; e a políticas de saúde para mulheres negras é crucial para a Marcha das Mulheres Negras.
Apesar do avanço, Brito observa que essas políticas estão sob ataque e aponta a necessidade para o combate dos discursos conservadores que enxergam as mulheres negras como aquelas que oneram o Estado.
“Há uma série de pesos sociais nas costas de mulheres negras […]. É preciso que mulheres negras façam parte da mesa de decisões para que outras políticas sejam criadas e para garantir o aprimoramento e a existência dessas que já existem”, conclui a historiadora.
A valorização de figuras históricas, principalmente heroínas negras como Maria Felipa, Aqualtune e Dandara dos Palmares, também é apontada como uma das propostas de reparação no campo da memória e da valorização dos saberes ancestrais de mulheres negras.
Para Naiara Leite, ativista do movimento de mulheres negras, jornalista e coordenadora executiva do Odara – Instituto de Mulheres Negras, a disputa desse campo é necessária para que outras imagens sejam construídas para as atuais e futuras gerações.

“A gente quer outras imagens, outros símbolos do ponto de vista da nação brasileira. A gente precisa reconhecer essa história e precisa se reconhecer”, comenta.
Bem Viver como horizonte
O conceito de Bem Viver é proposto na agenda da Marcha das Mulheres Negras como uma nova estrutura social baseada na justiça socioambiental, com a titulação de terras indígenas e quilombolas; na desmilitarização como forma de garantir a vida da população negra; e na valorização dos saberes ancestrais em contraponto às atuais estruturas históricas de violência, racismo e desigualdade no Brasil.
Ao vincular a reparação ao Bem Viver, o movimento faz um convite para que o Estado se responsabilize pelo seu passado e presente violento e garanta uma vida digna, segura e saudável para as mulheres negras e suas famílias.
Leite reflete que a Marcha deixa de legado a inclusão da reparação nas agendas contínuas de luta.
“Se não reparar não tem vida negra, não tem sonho, não tem política afirmativa que tenha um efeito para a gente garantir o mínimo equilíbrio do ponto de vista de uma ideia de equidade na sociedade brasileira”, opina.
Já Brito enxerga o Bem Viver como ações concretas de comprometimento com a vida das mulheres negras, a exemplo da adoção de políticas de combate à pobreza, de financiamento para empreendedoras negras e de equiparação de salários.
“Essas políticas, muito mais do que falas vazias de representatividade, vão garantir que as mulheres negras tenham o seu estado de vida, de cidadania e façam parte desse dito estado democrático”.
No horizonte, Mendonça posiciona o Bem Viver como a construção de um mundo sobre outros paradigmas. “O Bem Viver é a janela do futuro”, finaliza.



