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“O turismo é um espaço que nós, pretas, precisamos ocupar”. Entrevista com Manoela Ramos, a jovem escritora negra que colocou a mochila nas costas e ganhou o Brasil

Manoela Ramos, 27 anos, e o seu livro “Confissões de viajante”

*Por Gilvan Reis

Imagine passar anos viajando por lugares desconhecidos, paradisíacos, isolados, conhecendo pessoas de diferentes partes do mundo. O que pode parecer, a primeira vista, uma loucura ou uma realidade muito distante para muitos é a experiência cotidiana que a jovem escritora Manoela Ramos, 27 anos, natural de Cabo Frio (RJ), tem vivenciado nos últimos anos.

Ao terminar a faculdade de publicidade e propaganda, percebeu de imediato que não se encaixaria numa rotina de trabalho formal, dentro de uma agência ou de um escritório. “Senti o chamado”, diz e, então, começou a sua viagem.  

 “Como sua família lidou com essa decisão?”. “Mas como você tem feito para viver?”, “Você não tem dinheiro?”. Essas eram algumas das perguntas recorrentes que ouvia por onde passava – ela conheceu 24 dos 27 Estados brasileiros, e decidiu responder tudo em um livro. Na verdade, dois: além de “Confissões de Viajante”, publicou, mais recentemente, “Em busca do Norte”, ambos feitos de forma independente. 

Nesse bate-papo com o Correio Nagô, Manoela, que atualmente reside na Ilha de Boipeba, Cairu, Bahia,  conta um pouco dessa aventura e do seu trabalho como escritora viajante.

Quando o desejo de sair viajando pelo mundo virou uma decisão concreta?

Depois que terminei a faculdade, não conseguia me ver inserida no mercado tradicional e resolvi tirar um ano sabático. O perigo do ano sabático é que ele pode nunca acabar. Fui morar em Aiuroca, em Minas, e conheci muito viajante que estava na estrada com pouca grana. Comecei a pegar essas manhas de como viajar sem grana. Depois que morei lá, mudei para Salvador e uma amiga da minha mãe me ofereceu diversos artefatos indígenas que ela tinha comprado para ajudar outra menina que também estava viajando. Como ela comprou todo o artesanato, não sabia o que fazer e eu me ofereci para revender. Montei um painel, comprei uma passagem para a Paraíba e comecei a subir, trabalhando nas praias para conhecer o litoral do Nordeste.

Como foi esse primeiro contato com o mundo dos viajantes?

Além da revenda dos artefatos, tinha uma plataforma colaborativa de consumo consciente com minha irmã. Comprava peças e revendia pelo site.  Vendia mesmo eram miçangas porque a galera olhava para mim, rasta, preta, e já achava que era uma viajante sem grana. Foi aí que o mundo dos viajantes sem grana se abriu para mim e as pessoas começaram a oferecer coisas e nunca pagava o preço cheio. Percebi que a grana que tinha juntado nem precisava ser usada para continuar viajando.

Foi nesse primeiro momento que surgiu a ideia de escrever sobre essa experiência?

Enquanto vendia na praia, as pessoas me faziam muitas perguntas: “-Menina, como sua família reagiu?”, aí criei um capítulo. “-Como você faz com hospedagem?”, outro capítulo. “-Como você faz para comprar a passagem?”, outro capítulo. Fui juntando essas respostas e criei um guia de viagem, um diário de bordo, em que respondo como viajar sem grana com todas essas questões de hospedagem, de passeios, de alimentação. Quando as pessoas fazem as perguntas, eu digo para ler o livro.

Qual foi o impacto do livro na sua viagem?

A viagem mudou completamente porque, do lance das muambas no primeiro ano, eu virei uma escritora viajante. A visão das pessoas deixou de ser aquela “menina vida louca”, “pombo sujo”, e passou a ser a da jovem escritora que está ali, viajando na raça, e que quer divulgar o trabalho dela. A receptividade dos nativos ficou muito maior. As pessoas começaram a me oferecer estadia nas suas próprias casas através do meu Instagram. E eu ia. O livro virou meu principal produto porque 90% do dinheiro que usava eram das vendas. Vendia, em média, 100 livros por mês.  Quando viajei pelo Norte foi muito forte porque poucos escritores do Sudeste chegam ao Norte, mesmo tendo editora. Com o livro, as pessoas me levavam para as universidades, escolas técnicas, concurso de redação para ser júri, e começaram a dar muito valor ao que fazia. Teve um pescador, numa ilha do Norte,  que disse que o meu trabalho era muito importante porque ali não chegavam livros.  Não existia biblioteca, nem trabalho de incentivo à leitura. Eu era a pessoa que estava trazendo livros para o local. Outra mulher contou que houve uma maré forte que levou todos os livros dela e o meu livro seria o que ela ia ter agora.

As experiências de Manoela nas estradas serviram de base para a publicação de dois livros autorais

Com esse alcance, você chegou a ser procurada por editoras, por exemplo?

Por jornalistas, sim, mas não por editoras.  No segundo livro que fiz, eu já sou uma escritora viajante que viaja vendendo livros. Nesse segundo momento, inclusive, a conexão com a população preta ficou muito mais forte porque começaram a perceber que o que estava fazendo e vivenciando tratava-se de uma narrativa preta de liberdade, que não é muito usual. Queriam saber como era isso: uma preta experimentando a liberdade. Eu queria me conhecer. Esse foi o lance.

Justamente por se tratar de uma experiência tão pessoal é que quem ouve a sua história deve se perguntar de imediato: como é viajar sozinha pelo Brasil sendo preta e rastafári?

No começo, eu poderia ter ficado ofendida pelo fato das pessoas acharem que não tinha grana. Eu tinha trabalhado e juntado o dinheiro pra viajar. Mas, quando se faz um mochilão, quanto menos se gasta, mais tempo a gente consegue viajar. A galera estava me oferecendo, então, decidi que aceitaria.  Muita gente falou que, sendo uma mulher preta, estaria muito vulnerável, mas, na verdade, na estrada, uma preta de dread gera uma percepção diferente da cidade. Parece que esse lugar, o da estrada, é comum para uma preta de dread e não causa tanto estranhamento. As pessoas sabem qual é a sua. Eu não tive problemas com homens, com nada disso. Por ser preta, usar dread e estar viajando, fugia ao estereótipo no senso comum de que era vulnerável.

Com o tempo, começaram a fazer essa leitura de que era mesmo uma rastafári em movimento e não uma menina. Alguns me chamavam de irmão.  Teve um pedreiro que me deixou dormir numa obra e, uma vez, me disse que nunca tinha tentado nada comigo porque tinha medo de perder o abraço que dava todo dia de manhã. Eles desabafavam coisas comigo. Homens, especialmente, são muito solitários e queriam fazer amizade.

Manoela explica que viaja para conhecer pessoas e não somente lugares

Se tivesse que relatar algum episódio que vem à mente quando você revisita esses três últimos anos, qual seria?

Uma coisa que me marcou muito foi uma menina de 7 anos lá no Oiapoque. Um dia, conversando comigo, ela disse que não queria ser preta, que era muito ruim ser preta.  Aí comecei a entender que eu viajava com respostas de perguntas que as pessoas estavam procurando e que não sabia que estavam procurando. Elas queriam saber como era ser preta no meu lugar e aqueles eram os momentos de trocas em que poderiam conversar sobre isso sem julgamentos.

Essa relação com a comunidade negra esteve presente durante toda a viagem?

A comunidade preta acolheu muito. Em todos os lugares que passei, as pessoas achavam que eu era do lugar. Tem preto em tudo quanto é lugar e era lida como nativa, inclusive, porque passava por situações que os nativos viviam como, por exemplo, os turistas que não cumprimentam os locais porque acreditam que eles estão lá apenas para prestar serviços. Fui experimentar esse lugar de ser rejeitada pelos turistas.  

A sua circulação dentro das comunidades tem sido mais fácil?  

Acredito que, para viajar sem grana, a primeira dica é fazer amizade com quem mora. Ninguém conhece um lugar melhor do que um morador. Não é sobre conhecer lugares. Eu vou para os lugares e nem sei coisas sobre os lugares, não pesquiso antes as paisagens que vou conhecer. Vou para conhecer pessoas e, a partir dessa relação com as pessoas, elas me apresentam ao lugar. Conheço, muitas vezes, lugares que estão fora da rota dos passeios em que o turismo não chega justamente porque são os lugares que os nativos acessam. Passo a conhecer a culinária que o nativo faz na casa dele, por exemplo.

Manoela chegou a vender 100 livros por mês durante a viagem

Você criou algumas estratégias para circular mais tranquilamente pelos lugares, de forma mais segura?

A gente tem que criar esses mecanismos para se sentir mais seguro. Sempre penso assim: está com medo? Não vai. Sentir medo fora de casa é horrível. Tem essa preocupação mental, emocional de você não se permitir pensar em coisas ruins. Muitas vezes, aparece gente oferecendo ajuda e, se você tem medo, pode recusar a ajuda e aí, sim, se colocar numa situação de perigo. Além disso, criei outro mecanismo que foi parar de beber. Foi uma defesa porque achava que ia ficar muito vulnerável bêbada ou parecer muito doidona, me envolver em qualquer confusão que a bebida poderia trazer. Passei a usar roupas muito mais largas, não uso parte debaixo do biquíni. Só shortinho. A gente sabe que não é pela vestimenta, mas sabe também que a roupa mais curta tem os seus simbolismos que, no universo masculino, opera de forma diferente do nosso. Ali, na estrada, não é o momento de você combater isso de forma direta, pela guerrilha. Não adianta fazer a militância assim frontal para o cara que tá ali. É melhor você entender os simbolismos que permeiam aquele universo e aprender a lidar. Tomo posição, olho no olho, falo firme.

Teve algum episódio que te deixou mais assustada?

Senti medo duas vezes. Uma vez ia ficar na casa de um cara e tinha que pegar um barquinho para chegar, subir uma montanha, muito isolado. Pensava: “se acontecer alguma coisa não vou saber sair daqui”. Poderia até brigar, me defender, mas não saberia sair. Quando cheguei lá, ele fez de tudo para me tranquilizar. Chamou duas meninas e um menino para dormirem também, fez fogueira, depois me ensinou como sair dali, foi me tranquilizando e vi que era de boa. Até mesmo na primeira noite, estava morrendo de frio e falei para dividir o cobertor. Ele dividiu e colocou uma barreirinha de travesseiros no meio.

A segunda vez foi na pandemia. Por isso, inclusive, voltei e parei de viajar porque não está no clima. O viajante virou o perigo, ninguém mais queria receber. As pessoas começaram a ter medo de mim. Virei a portadora do vírus. Voltei pra Salvador e depois fui pra Chapada Diamantina e, finalmente, retornei a Boipeba.  De todos os lugares que conheci, Boipeba foi o que mais me identifiquei.

Quais reflexões você tira dessa experiência?

Sempre digo que não estou incentivando que as pessoas larguem tudo e vivam viajando, mas que a pessoa, quando for viajar, mesmo que uma semana só, que vá mais com o olhar de viajante e menos com o olhar de turista, mais aventureira, para conhecer pessoas, não só tirar fotos do lugar e consumir. Também é uma experiência para os artistas que, através da viagem, podem potencializar a própria arte, divulgar, sem precisar de patrocínio ou edital.

Fico muito feliz de ver muita gente que começa a viajar depois de ler o livro porque, de fato, tem muitas dicas de como viajar sem grana. É a experiência de alguém que passou por esse caminho, que deu certo, que passou alguns perrengues, mas que aprendeu uma nova forma de planejar e que funciona.

Viajar é um espaço que a gente precisa ocupar. Sempre pensava que, se seria resistência dentro de uma empresa, por que não poderia ser na estrada também? Esse lugar também nos pertence. A gente também tem que ganhar o mundo e contar as nossas histórias. Quando a gente é preto, temos todo o respaldo da comunidade porque ninguém deixa a gente sozinho. Se vamos numa viagem afetiva à procura de conexões com a galera da diáspora, não ficamos sozinhos. Apesar de estarmos expostos ao racismo, a comunidade abraça e você consegue acessar os espaços de forma segura.

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