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O VOO DA ESCRITA NEGRO-FEMINISTA DE VÂNIA MELO

20/08/2018 | ás 15h28

Por Cristian Sales

Após realizar seu primeiro voo desde a estreia em 2011, quando publicou na coletânea Sangue Novo: 21 poetas baianos do século XXI, a poeta negra baiana Vânia Melo lançou sua primeira obra individual Sobre o breve voo da Borboleta e suas esquinas (julho de 2018) pela Organismo Editora.

Mestranda em Literatura e Cultura pela UFBA (2018), feminista negra, pertencente a nova geração da literatura negra brasileira, a escritora Vânia Melo também possui publicações na antologia literária Cadernos Negros organizada pelo Quilombhoje Literatura (1980).

Na entrevista concedida a Cristian Sales para Coluna Levantes Literários,  Vânia Melo compartilha o processo de elaboração da coletânea poética Sobre o breve voo da Borboleta e suas esquinas, assim como etapas de seu processo criativo.

Dentro de um cenário efervescente da literatura negra brasileira, na tentativa de pensar políticas de afirmação e demandas ligadas ao cotidiano das mulheres negras, Voo da Borboleta e suas esquinas evidencia que nossas escritas negro-femininas experimentam várias metamorfoses. Sobre o fluxo dos ventos, elas borboleteiam esperanças e voos cada vez mais ousados.

Das borboletas, seus voos e suas simbologias ancestrais, as poesias de Vânia Melo incorporam novos elementos, signos e significantes para performar através da linguagem outros modos de resistência. Borboletear é uma ação de resistir, re-existir e jamais se calar diante das dores. Tal borboletear apresenta uma escrita negro-feminina que faz um voo delicado e imprevisível como tradutora das lutas de corpos negros femininos diaspóricos. Doces são águas cujos fluxos também borboleteiam!!. Doces são as poesias que podem nos fazer voar e criar novos sentidos para a vida.

“É o escudo e a espada” de nossos dias, diz Vânia Melo.

Cristian Sales.  Quando acontecem os primeiros voos da borboleta-escritora? Como nasce a escritora-poeta Vânia Melo?

Vânia Melo – O processo de descoberta foi muito doloroso. Comecei meu processo de escrita poética sem ao menos saber que se tratava de poesia. Eu, na adolescência, rabiscava os cadernos e iniciava os contornos e desenhos do que ainda quero ser um dia, mas tudo o que eu escrevia parecia muito diferente e distante das aulas de literatura do colégio… O que a professora me ensinava e os livros repetiam incessantemente parecia destoar de mim, da minha escrita e da minha forma de enxergar o mundo. Após o ensino médio, quando acessei a UFBA, comecei a ter contato com muitas pessoas, a ouvir e a observar coisas e foi a partir dessa experiência proporcionada pelo adentramento na universidade, do contato com pessoas e livros e aulas e as pessoas ressignificando os livros e as aulas é que eu entendi que tudo o que eu escrevi podia, e pode, sim ser poesia. A partir daí, a coragem brotou, comecei a pensar em me matricular em componentes curriculares que trouxessem a proposta da escrita poética, da criação literária e iniciei o processo de amadurecimento da escrita, da produção de novos textos e, principalmente, o processo de reconciliação comigo e com minha escrita para que eu pudesse voltar a enxergar que a poesia nasce das mãos pretas, e como nasce!

Cristian Sales – Com uma dicção sofisticada e elegante, Sobre o breve voo da Borboleta e suas esquinas (2018), lança-se com fôlego no mercado editorial brasileiro pela Organismo Editora. Como o livro foi construído?

Vânia Melo – Os poemas do livro trazem a proposta da maturação da escrita poética que é lenta e marcada por muitos cerceamentos e dificuldades de toda ordem. Eu acreditava que todo lento processo para publicar esse livro era decorrente da minha timidez para mostrar meu texto às pessoas, eu acreditava que nunca estaria bom o suficiente, já comecei a escrever achando que nunca estaria bom, que nunca chegaria a ser poesia. Mas com o tempo e as minhas leituras e práticas do feminismo negro, compreendo, definitivamente, que o racismo e o machismo atuaram de forma violenta e perversa neste processo; continuará atuando se nós, mulheres negras, não nos armarmos rápida e inteligentemente da nossa ação e da nossa memória para lutarmos contra esse movimento que nos afasta da nossa consciência negro-feminista e retarda o nosso ‘torna-se negra’, pensado nas palavras da intelectual negra Neusa Santos Souza ao denunciar as formas sistemáticas de violências tão específicas que o racismo opera no cotidiano negro-feminino.

A borboleta guarda a temática da vida curta, cheia de esquinas para dobrar; nunca se sabe o que vem depois da esquina. Uma vida cheia de impedimentos e cerceamentos impostos pelo racismo; paradoxalmente, é bela a borboleta, celebrada em tantas representações e significados espirituais principalmente. A capa do livro traz letras embaralhadas em confusões diversas e não entendimentos de si, mas à medida que evolui o livro, desenvolve-se a lagarta, enegrecem as páginas e, na contracapa, organiza-se o título do livro e voa a borboleta preta.

Cristian Sales – Na perspectiva do agenciamento de um discurso negro-feminista tecido no contexto da poesia negra brasileira contemporânea, como pensar Sobre o breve voo da Borboleta e suas esquinas?

Vânia Melo – Sabemos que o feminismo não nos chegou negro. Nós, mulheres negras, é que o moldamos, nós moldamos a teoria feminista que precisava contemplar as nossas pautas, lembrando as palavras da intelectual bell hooks e assim fazemos todos os dias. Com a poesia não tem sido diferente, os conceitos se renovam a cada dia, nossas vivências múltiplas, subjetividades e atravessamentos fazem de nós escritoras de nós mesmas e principais vozes em histórias que dividimos, performamos, escrevivemos, como nos ensina Conceição Evaristo em seus brilhantes textos.

Sobre o breve voo da borboleta e suas esquinas traz essa questão da evolução, de perceber-se negra, de entender todas as questões que envolvem esse processo e que se desenvolve junto à consciência de que o que fazemos é poesia e que ela tem múltiplas formas, que não está presa a uma escrita da literatura canônica tradicional, não tem que estar, porque é livre e há muito vem sendo escrita por nós mulheres negras. Somos muitas, escrevemos há muito tempo e não vamos parar!

Cristian Sales – Li um dos poemas da coletânea intitulado Borboleta Preta e, imediatamente, fiz um intertexto com o conto À procura de uma borboleta preta da escritora negra Esmeralda Ribeiro (Cadernos Negros/volume 16). Diante desse encontro, como você observa o diálogo geracional entre escritoras negras (das mais novas com as mais velhas)?

Vânia Melo – Nós mesmas, mulheres negras, fazemos nossos caminhos. As mais velhas são as mais importantes nesse processo. Elas começaram numa época em que não havia entendimento nem respeito às nossas pautas e às nossas escritas e ainda é uma luta muito difícil que envolve desinteresse de editoras, de crítica e uma má vontade racista e machista em não nos ler com respeito. As escritoras negras que começaram, nos abençoaram com inteligência, sabedoria e coragem, abriram os caminhos com as mãos e espalharam as sementes pelas quais nos guiamos até aqui. Façamos o mesmo e continuaremos as nossas negras escritas pelas mãos das próximas, das que, um dia, seremos as mais velhas.

Cristian Sales – Num olhar voltado ao processo criativo, à composição da obra, suas metáforas e as expectativas em relação a uma recepção teórico-crítica, como seus poemas podem ser lidos? Quais são as pistas?

Vânia Melo – Eu escrevo sobre tudo que vejo e também sobre o que não mais consigo ver. Já morri muitas vezes por isso. Escrevo sobre mulher negra, sobre minha fé nos Orixás, sobre meu corpo, sobre os corpos que atravessam os nossos corpos pela experiência compartilhada da negritude em pele, carne, sangue, espírito, em inteligência e memória, em tantos sentidos. O livro é uma observação de mim, das vidas das minhas e dos meus e das vidas tantas que passam sempre, mas as pretas passam mais rápido como num breve voo, tem esquinas com surpresas, outras com morte, tem morte em cada canto do livro, mas também tem vida que vibra na carne, tem muita vida no livro, mas repito, já morri muitas vezes para conseguir relembrar tudo e escrever. Sinto que, quando escrevo faço meus caminhos com as palavras que eu bordo, com a garganta que está sempre prenhe de um grito que já não quero mais sufocar, porque já entendi que não posso, não devo mais me calar, perde-se muita vida calando poesia. A poesia é pra todo mundo que quer poesia, mas identificação com poesia feminista e negra, precisa de impacto e atravessamento das vivências, precisa de empatia, de respeito, de entendimento das subjetividades, caso contrário não há acordo, não há pacto possível.

Mulher negra, moradora da Ilha de Itaparica, professora universitária e doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia-UFBA, onde é integrante do projeto de pesquisa Traduzindo no Atlântico Negro (2014). Desde 2003, dedica-se ao estudo da Literatura Negra produzida no Brasil, e, mais recentemente, no Caribe, sempre voltando a sua atenção para obras publicadas por mulheres negras. Fez parte do conselho editorial da Ogums Toques (2015-2016). É feminista negra, crítica literária e já atuou como avaliadora dos textos publicados na antologia Cadernos Negros (2011-2014). Inspira-se na luta e na resistência de nossxs ancestrais. Acredita na força da
ancestralidade que rege os nossos Odus (destinos) e escrituras… Da ação da palavra
agindo sobre os nossos corpos negros.

conteúdo desta coluna é de responsabilidade da autora.

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