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Os desafios do ensino remoto em tempos de pandemia da COVID-19

Os desafios do ensino remoto em tempos de pandemia da COVID-19: a experiência do pré-vestibular Steve Biko


Há 28 anos preparando jovens negros para o vestibular, Instituto Steve Biko utiliza videoaulas, lives em uma plataforma digital e material de apoio como listas de exercícios, vídeos, textos, animações, apresentações e apostilas em um blog para manter atividades durante pandemia.

*Camila França

As acaloradas aulas no segundo andar do casarão rosa, no Largo do Carmo, n°04, precisaram ‘dar espaço’ às telas dos smartfones e computadores ‘ligados’ por ‘fibra’ óptica, aquela que nos ‘conecta’ à internet. As medidas de restrição de isolamento social impostas pela pandemia do novo coronavírus mudaram o modo que, há 28 anos, o Instituto Steve Biko vem promovendo ações afirmativas voltadas para jovens negrxs no acesso à universidade através do pré-vestibular.

Tudo já estava preparado para receber os 75 estudantes matriculados na turma Ida Mukenge e os 47 alunxs aprovados no Enem 2019. No entanto, a aula inaugural de acolhimento dos nossos bikudxs, marcada para o dia 16/03, homenageando a professora e socióloga Ida Mukenge, titular da Morehouse College (EUA) e parceira da Biko, precisou ser cancelada em virtude da Covid-19, que ganhava maiores proporções. Através de um decreto municipal, todas as instituições de ensino foram proibidas de abrir as portas a partir do dia 18/03.

Diferentemente das tradicionais aulas inaugurais, recebemos no dia 17/03, cerca de 40 novos estudantes em nossa sede para um bate papo sobre o que era o coronavírus, como essa pandemia poderia nos afetar e dar os direcionamentos de como seriam as aulas do pré-vestibular. Era tudo novo: da pandemia à possibilidade de aulas em um formato não presencial.

“Precisávamos de uma solução emergencial. Fomos todxs pegos de surpresa. Apesar de o estudo EAD ser, também, um desejo antigo da Biko, naquele momento não tínhamos qualquer estrutura técnica e nenhum cronograma de “aulas virtuais”, lembra Tarry Cristina, diretora pedagógica do Instituto.

A metodologia escolhida pela direção da Biko e colaboradorxs foi o combo de videoaulas, lives em uma plataforma digital e material de apoio como listas de exercícios, vídeos, textos, animações, apresentações e apostilas em um blog direcionado especificamente para a turma.

Mas como “aproximar” alunxs e professorxs neste modelo denominado pela Biko de “estudo remoto”? Na opinião do professor de Redação Ivo Ferreira, que está na instituição desde a sua fundação, o desafio maior era estabelecer relações. “A educação não é só a técnica de ensinar alguém, e sim ela se faz por troca, existem os debates e embates (professor x aluno, aluno x aluno) necessários para que a pessoa avance, sobretudo no que diz respeito à humanidade”, pontua.

As atividades remotas começaram no dia 23/03. O ambiente das Lives, propício à interação através dos comentários dos alunxs, em tempo real, tirando dúvidas com os professorxs, esbarrou no acesso limitado dos estudantes à internet ou má qualidade do sinal, identificados a partir de uma pesquisa realizada pela gestão do pré-vestibular. Com a pesquisa foi possível fazer ajustes como mudanças de horários, maior interação através de aplicativo de conversas e videoaulas maiores, onde era possível assistir off line.

“O estudo remoto para o público da Biko é um desafio ainda maior, pois há nos estudantes uma defasagem de base e, no presencial, nós, em poucos meses, nos debruçamos em suprir as ausências do ensino público durante toda uma vida escolar”.  “A Biko, antes de tudo, resgata a autoestima desses jovens, que muitas vezes acreditam que a incompetência do aprendizado é culpa deles”, enfatiza Ferreira.

A estudante Amanda Chung, 18, é dessas alunas comprometidas. Participa das aulas ao vivo, tira dúvidas, manda textos para correção da redação. Aluna pelo segundo ano consecutivo do pré-vestibular da Biko, diz que o motivo dela se manter motivada a estudar é a possibilidade de ascensão social através da educação. “Consigo enxergar que a minha chave pra mudar de vida e ajudar minha mãe é conquistando meu lugar na faculdade e mantendo uma linha de aprendizado para que eu tenha todo conhecimento que posso ter”, vislumbra.

Chung não é a única que tem feito esforços extremos para permanecer focada nos estudos, sobretudo de forma remota.  De acordo com o perfil social traçado a partir das respostas de um questionário virtual aplicado à turma, com retorno de 59 estudantes (90% do grupo), foi identificado que quase não existia a familiaridade dos alunos com o ensino à distância. Apenas 01 (um) alun@ sinalizou já ter estudado através desta metodologia.

“Eu tento seguir a rotina proposta pela Biko: duas matérias por dia, leitura, resumo e atividade que geralmente faço acompanhando as lives, além de manter uma rotina leitura de pelo menos 01 (um) livro por mês. Tô curtindo muito a estratégia porque não está sendo cansativa, a mesclagem entre uma semana de lives e outras de videoaula dá uma dinâmica legal, as vezes é difícil acompanhar pela falta de costume com o EAD, mas a Biko sempre traz incentivo nas aulas e nas postagens”, pondera Chung.

Acesso à Internet

A falta de acesso à Internet é uma realidade em muitos lares. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em abril deste ano, em 2018 cerca de 15 milhões de lares brasileiros  ainda não tem acesso à Internet. Dados apontam que um em cada cinco domicílios não está conectado, considerando o uso por computador, celular, tablet ou televisão. O Nordeste é a região com menos famílias conectadas: cerca de 6 milhões de casas.

O estudante Sandro Rocha, 37, é motorista por aplicativo e tenta conciliar o estudo com o trabalho, que diminuiu bastante a frequência de clientes durante a pandemia. Além de lutar com uma internet que não pega bem no bairro onde mora, ele precisa se manter motivado a estudar depois de um longo dia de trabalho. “Rodo à tarde e à noite, chego cansado, mas procuro estudar à noite, às vezes adentro a madrugada. Por isso não participo muito das lives, também. Eu não sou um cara de ficar muito na frente da tela, seja ela computador, celular ou Tv, pra mim tem que ser mesmo do modo antigo, mas eu tenho me esforçado”.

Acolhimento

Apesar do ensino remoto, o Instituto mantém o atendimento psicossocial aos estudantes, mesmo à distância. A assistente social Heide Damasceno explica que, além de tentar manter uma rotina de estudos, os alunxs estão passando por momentos difíceis dentro do isolamento social. “Estudar é um ato solitário e doloroso e precisa de apoio. Com a pandemia as desigualdades entre nossos alunxs são mais evidenciadas e, sem os recursos tecnológicos necessários e os conflitos sociais que se acentuaram durante a pandemia, encontrar motivação para os estudos é um ato de coragem e de muita resistência”, reflete.

As famosas aulas de CCN – Cidadania e Consciência Negra também foram mantidas de forma remota e são uma dose extra de entusiasmo e motivação. “O racismo não para e precisamos ser vigilantes, sentinelas dos nossos meninxs.  Entendermo-nos como indivíduos complexos  e conscientes dos nossos direitos, nos traz munição para lutar e exigirmos nossos lugares nos espaços de poder.”, observa Tarry Cristina, diretora pedagógica da Biko. Temas como autocuidado em tempos de pandemira, diversidade de gênero, pós-abolicionismo e Enem foram alguns dos assuntos já abordados no CCN.

E falando em Enem, neste cenário pandêmico ficou mais evidente que os alunxs de escolas públicas, que desde a início das medidas de isolamento social, em março deste ano, estão sem aulas, serão os mais afetados nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio. Por esse motivo, não só o Instituto Cultural Steve Biko como diversas entidades de movimentos sociais, e a sociedade civil, pressionaram o governo federal para o adiamento das provas do Enem 2020, o que traz um fôlego para que os nossos alunos tenham mais tempo para estudar, porém não resolve as desigualdades.

“É uma conquista, mas nem tanto. Acredito que essa pandemia ainda vai durar muito tempo e, mesmo com o adiamento, ainda seremos extremamente prejudicados”, expõe a estudante Amanda Chung.

A professora de Inglês da Biko, Jussara Jorge reforça que enquanto instituição, o objetivo da Biko é contribuir para o acesso desse jovens ao ensino superior nas universidades públicas. “Hoje, diante dessa pandemia, não podemos deixar que a nossa juventude mais uma vez seja excluída pela falta de ferramentas que colaborem para o seu aprendizado, haja vista a defasagem do ensino no sistema público de educação”, pontua.

E é neste cenário de incertezas sobre o “novo normal” que o Instituto Cultural Steve Biko prossegue inquebrantável desde o sia 23/03 com aulas no modo remoto no pré-vestibular e, já planejando novas estratégias para o segundo semestre.

“Tudo é muito novo. Estamos aprendendo a lidar com tudo isso. Mas a Biko sempre encontrou no rastro de dificuldades, soluções assertivas. Nossa leitura é que estamos conseguindo fazer um bom trabalho para aqueles que ainda estão entendendo esta metodologia de ensino. Popularmente falando, é uma troca de pneu com o carro em movimento. Isso é a Biko”, finaliza Ivo Ferreira.

“O maior desafio é compreender as limitações que a nossa juventude negra tem para se instrumentalizar diante de tantas dificuldades que enfrentam em uma sociedade racista e patriarcal”, completa Jussara.

*Camila França é jornalista. Texto originalmente publicado no site: www.stevebiko.org.br

09/06/2020

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